A Conversão de Álvaro

Contam as Sagradas Escrituras que um dia, enquanto Paulo de Tarso ia de Jerusalém para Damasco no séc. I d.C., viu uma grande Luz e ouviu uma voz que dizia mais ou menos: “Ó Paulo, porque estás a meter-te comigo, eh?”. Porque de facto Paulo tinha como passatempo a perseguição dos Cristãos.

Paulo percebeu: “Desculpe, Engenheiro, não queria incomodar, já estou arrependido”. E a partir de então escolheu a profissão de mártir pela Igreja. Menos divertido mas mais em linha com os tempos.
Fala-se portanto da Conversão de São Paulo.

Também Portugal tem a sua própria conversão, cujo protagonista é São Álvaro.

Hoje Álvaro é uma pessoa feliz. Ministro da Economia do governo de Pedro Passas e Coelhos, participa activamente nos cortes que tanta alegria espalham entre a população local, não recua perante as privatizações e difunde aqueles que são os seus pontos de vista::

Os cortes vão ser feitos, independentemente da magnitude. Os números
ainda não estão fechados. Este Governo vai fazer um corte de despesa
histórica, de uma maneira que não foi feita desde 1950.[…]
O Governo está absolutamente empenhado em combater o principal problema da economia nacional, que é o défice externo.

Um economista perfeitamente em linha com os objectivos do actual governo. O défice é “o principal problema da economia”.

Então, porque falar de Conversão?

Porque nem sempre Álvaro foi assim. Pelo contrário, durante muito tempo percorreu as ruas da perdição e da amargura. Vagueava o pobre Álvaro sem rumo, sem saber qual a sua verdadeira missão: na mente dele agitavam-se estranhos pensamentos, teorias filhas do Maligno.
Foram tempos difíceis.

Vamos portanto conhecer mais de perto a experiência místico-económica deste grande homem.

Os tempos do pecado
Corria o longínquo ano 2009 d.C. e Álvaro Santos Pereira, na altura mero docente e jornalista, publicava um virulento livro: “O Medo do Insucesso Nacional”, com prefácio do dono de Álvaro, o simpático e fascinante Belmiro de Azevedo.
Em 2009 o jovem Álvaro ainda não tinha visto a Luz, portanto enchia as páginas com afirmações heréticas. Por exemplo, veja-se o título do capitulo 7 (pág. 153 da primeira edição):
O défice orçamental não interessa para (quase) nada.
Outros tempos, sem dúvida, tempos nos quais Portugal era uma potência económica de primeiro plano do nosso planeta e não só. Lógico que o jovem Álvaro pudesse gozar com o défice e com todos aqueles que apontavam este pequeno pormenor como um dos grandes problemas do País:
Pelo que ouvimos dizer aos nossos políticos nas rádios, pelo que vemos nas televisões e lemos nos jornais, […] se não acabarmos com o défice orçamental do Estado, o País não vai a lado nenhum.
E a seguir a lista de quem, evidentemente, tinha como único objectivo assustar o País e/ou era incapaz de individuar os verdadeiros problemas: Cavaco Silva (actualmente Presidente da República), Durão Barroso (ex-primeiro Ministro que abandonou o cargo para entrar na Comissão Europeia), José Sócrates (ex-Primeiro Ministro), Manuela Ferreira Leite (ex-Ministro das Finanças), Medina Carreira (fiscalista). Todos, segundo Álvaro, estavam errados. Para depois assim concluir:
E muitos outros(as) atribuem ao défice as causas da nossa desgraça.[…] Veremos que as coisas não são tão dramáticas como nos fazem crer, e que muito do alarmismo atribuído ao défice tem origem nas imposições que nos vêm de Bruxelas.

Imposições de Bruxelas. Interessante.
Nas páginas seguintes, o jovem Álvaro explicava porque o défice é sim importante mas até um certo ponto. Tratava da dívida pública, do saldo orçamental primário, do PIB, das consequências dum défice orçamental.

Quando um défice se torna insustentável? Explicava o bom Álvaro:

Quando um défice ameaça seriamente uma economia? Serão os 3% do PIB o limite máximo para a sustentabilidade de um défice orçamental? Será que se o défice do Estado ultrapassar os 3% da dívida (e a dívida pública for maior do que 60% do PIB), as finanças públicas de um país ficam em risco de colapsar?

Boa pergunta, pois este era e é o caso de Portugal. Resposta:
Não. Claro que não. Não há nenhuma lei económica nem sequer qualquer tipo de evidência empírica que demonstre que 3% do PIB é o limite a partir do qual o défice orçamental derrapa irremediavelmente, ou que uma dívida pública acima dos 60% do PIB é intolerável economicamente.
E lembra que:
Já vivemos outros episódios na nossa história em que o défice orçamental foi superior ao actual.

O “truque”, por assim dizer, é que o rácio entre a dívida pública e o PIB permaneça estável.
E se este rácio mudar de forma preocupante? Aqui vê-se a inexperiência do jovem Álvaro que na altura afirmava (pág. 160):

Uma das maneiras de diminuir o défice orçamental é simplesmente fazer com que a economia cresça mais. Quando o crescimento económico é mais elevado, o número de transacções financeiras efectuadas aumenta e os rendimentos sobem mais rapidamente. Por isso, o Estado consegue arrecadar mais impostos, quer com o IVA, quer com o IRC ou o IRS. Ou seja, as receitas do Estado crescem com a própria economia: quanto mais a economia crescer, maior é a colecta de impostos.

A ingenuidade do jovem Álvaro é assustadora, tal como a mão do Maligno que conduzia a caneta da pobre alma: na sua inocência, pensava que aumentar o crescimento económico fosse uma maneira para melhorar as contas do Estado também. Exactamente o contrário da sabedoria mostrada até aqui pelo Primeiro Ministro Passas e Coelhos, que escolheu (com grande sucesso) a estrada da recessão.

Mas juventude e sabedoria são pérolas que raramente podem conviver de forma pacífica. Eis portanto as conclusões apressada do simpático Álvaro (pág. 161):

Ou seja, uma das formas de alcançar uma melhor situação das contas públicas, ou até mesmo o equilíbrio orçamental, é introduzir medidas que estimulem o crescimento da economia. Pelo contrário, quando insistimos somente numa estratégia fundamentalista de combate ao défice penalizamos o crescimento económico, as receitas fiscais tendem a descer e, consequentemente, o défice agrava-se. E esta é uma das razões por que devíamos dar com os pés ao fundamentalismo que nos vem de Bruxelas.
Ainda sem um Mestre capaz de indicar-lhe a estrada da rectidão e dos sacrifícios (dos outros), Álvaro esquecia qualquer moderação atingindo picos de total irresponsabilidade:
Contrariamente à percepção dominante, a crise actual não é uma crise orçamental. Há (ou, pelo menos, houve) uma crise orçamental, mas a verdade é que o défice do Estado  não é o nosso principal problema.
Os verdadeiros problemas? Na confusa mente dele:
O principal problema será a lentidão da Justiça. O principal problema serão os nossos atrasos educacionais que são estruturais e se mantêm há décadas. O principal problema serão as dificuldades que os nossos exportadores sentiram com a valorização desmesurada do euro. Não, o défice do Estado não é o nosso maior problema.[…] Para além do mais, a ideia de que o défice orçamental dos últimos anos é extremamente grave é simplesmente errada. 
E continuava, já sem poupar ninguém:
Se o défice é um “monstro”, como Aníbal Cavaco Silva nos alertou num célebre e importante artigo de opinião, então em quase todo o período democrático vivemos assombrados e ameaçados por toda a espécie de Adamastores orçamentais. Aliás, é interessante observar que, em 7 dos 10 anos de governos chefiados por Cavaco Silva, se registaram “monstros” ainda maiores do que aqueles observados na última década.

E assim concluía o debate acerca do défice (pág. 164):

Para além do mais, não há nenhuma teoria económica que nos diga que o crescimento económico é maior quando os défice são menores. De facto, […] nos últimos 30 anos a economia portuguesa registou vários períodos de crescimento económico elevado em altura de défice orçamentais igualmente altos.

Uma época sem dúvida triste esta do jovem Álvaro, que deambulava nas trevas sem que fosse possível vislumbrar a ténue luz do raciocínio no fundo do túnel. Sentado no seu humilde escritório, utilizava a própria raiva reprimida contra os alvos errados, sem perceber que mesmo entre eles residia a faísca da sabedoria.

Por isso, temos de arranjar coragem e fazer aquilo que se impõe nesta crise que se arrasta há demasiado tempo: é chegada a altura de dizer “Não!” e dar nos pés a Bruxelas [o negrito está no original, nda]. 

Sem limites na caneta, atrevia-se a dar aconselhamentos acerca de futuro:

E, já agora, se por acaso algum dia nos esquecermos daquilo que é realmente importante para o futuro do país e para o bem-estar dos nossos filhos e netos, vale a pena relembrar:

NÃO É O DÉFICE, ESTÚPIDO!
NÃO É O DÉFICE, ESTÚPIDO!
NÃO É O DÉFICE, ESTÚPIDO!

Não, definitivamente, o nosso principal problema não é o défice.

Ironia do destino: como podia imaginar o jovem Álvaro que mais tarde teria ocupado o lugar de fiel seguidor da Luz, o Messias cuja existência tem como único objectivo a luta ao défice? Teria hoje São Álvaro a coragem para a derradeira blasfémia, definir “Estúpido” o Mestre dos Mestres, o Primeiro e Melhor Ministro Passas o Coelho?
Claro que não, obviamente que não. E não por falta de coragem ou respeito de circunstâncias: Álvaro foi tocado pela Luz, hoje ele consegue distinguir entre Bem e Mal.
Hoje Álvaro sabe.

A Conversão

A Luz (direita) e Álvaro (esquerda)

Como sabemos, Deus escreve direito com as tortas (experimente o Leitor fazer o mesmo), por isso até aqui descrevemos o jovem Álvaro Santos Pereira, antes da Conversão. Estes eram os erros dele, estas eram as heresias que atormentavam os sonhos dele.

Uma vida triste e mesquinha até que um dia, na estrada que liga Belém e a Calçada da Estrela, Álvaro viu uma Luz no céu e ouviu uma voz: “Ó Álvaro, gostarias ser Ministro, eh?”.

Ao que, o pasmado Álvaro respondeu: “Obedeço!”.
Esta é a conhecida Conversão de São Álvaro.
Hoje Álvaro é um homem novo. Fala calmamente e consegue individuar os terríveis erros que levaram Portugal até a triste situação actual:

O responsável salientou que a economia portuguesa esteve “quase uma
década de desequilíbrios externos e acumulação de défices” (revista Sábado, 16.08.2012)

Até o ponto de vista acerca de Bruxelas mudou, agora obedecer às directivas das Mentes Pensantes é sinónimo de credibilidade:

Portugal está a cumprir integralmente o memorando de entendimento e até a
ir além desse memorando em várias áreas. Voltámos a ganhar a nossa
credibilidade internacional em poucos meses (Jornal de Negócios, 05.06.2012)

Um ser humano que encontrou a serenidade, um homem com paz de espírito. Distantes são agora os tempos obscuros de “O Medo do Insucesso Nacional”. Hoje o sucesso está ao alcance duma alma que encontrou a Verdade e que caminha no sentido por esta indicada. Não acaso, como lembra Wikipedia:

Uma das suas poucas medidas sugeridas em seis meses de governo, para
além de vários anúncios do anúncio de medidas para breve, foi a
internacionalização do comércio dos pastéis de nata.

Sempre seja louvado o Pastel de Nata.
Ámen.

Ipse dixit.

Fontes: Expresso, APDC, Sábado, Jornal de Negócios, Wikipedia, O Medo do Insucesso Nacional, I Edição, Lisboa, 2009, Edições A Esfera dos Livros.

4 Replies to “A Conversão de Álvaro”

  1. Ih,ih,ih,ihhh;Ah,ah,ahhhh,rsrsrsrs..Olá Max:siga os interesses, que claro o dinheiro sempre é, mas também o poder, o sagrado exercício do poder sobre algo, alguém, ou "alguéns", razão suprema para qualquer conversão, para qualquer ruptura de discurso, para qualquer mudança de rota…Obrigada pelo exemplo, com tão bem humorado desenvolvimento. E não pensem que isso acontece só nas "grandes" esferas,relacionado a poderes maiores, não, acontece nas pequenas também, e quase sempre. Vale a pena prestar atenção, todos nós.Da minha parte,aprendi a prestar pouca atenção aos discursos, e mais atenção a essa cartografia fantástica que é a trajetória de vida das pessoinhas,grupos, coletividades,agrupamentos e concumbinatos, acontecimentos que marcam rupturas e continuidades nas suas vidas, e por extensão, na minha também. Abraços

  2. Não há como aguardarmos o milagre da internacionalização do Pastel de Nata.
    Até lá, já estou a ver que terei de percorrer as ruas da "perdição e da amargura", pois como São Tomé, por estes lados, esse tipo de sugestão é mesmo ver para crer.
    Assim sendo, aguardo o milagre da internacionalização dos Pastéis de Nata por São Álvaro.
    Isso ou a internacionalização definitiva de São Álvaro, porque a continuar assim sem nenhum milagre não lhe vejo grande futuro por estas paragens. Não que isso fosse mudar alguma coisa…
    Abraço
    Rita M.

  3. Max,
    É muito bem caçado este Alvarinho( os produtores do vinho com este nome que me desculpem, que o vinho é muito bom), também me recordo do "estudo" que ele efectuou no Canadá…em relação á necessidade dos institutos públicos em Portugal e em que recomendava o fecho de mais de 100, porque ele não sabia o que esses institutos faziam.
    Ora não era melhor, investigar e saber o que esses institutos fazem em vez de dizer mais uma barbaridade?

    Um abraço

    Zarco

  4. 1-) Com certeza o gajo só quando entrou ao serviço como ministro é que percebeu a tramóia que lá havia dentro e que um ministro só lá está para cumprir à força os interesse de quem nele manda.

    2-) O pastel de nata nem seria má idéia se fossem todos feitos cá…mas se é para internacionalizar…é para serem feitas em todo o sítio, não é?….

Obrigado por participar na discussão!

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