Ensaio sobre a cegueira

Se no nosso mundo existissem órgãos de informação dignos deste nome, o que segue seria de domínio público. Mas não é.  E isso é mal, porque ajuda a perceber um aspecto da actual crise que não é secundário.

Falamos de bancos? Óbvio, quando houver algo de mal não é preciso esforçar-se muito: cedo ou tarde, no meio, acabará com o surgir uma instituição bancária. Parece uma lei da Natureza.

A Grécia e o buraco sem fim

É bem documentado que os grandes bancos, como Goldman Sachs, ganham dinheiro apostando contra os investimentos que eles mesmo prepararam e venderam aos clientes.

Já falámos disso há muito e esta pratica tem piorado a crise dos subprimes nos Estados Unidos, por exemplo.

Seria possível observar que esta é uma conduta imoral e ilegal, mas não vamos tratar agora destes insignificantes pormenores.

Vamos, pelo contrário, perguntar: mas os bancos limitaram-se aos privados ou fizeram o mesmo com os Estados?


Os Leitores mais antigos já conhecem a resposta: porque raio um banco não deveria usar a mesma táctica aí onde as possibilidades de lucro são ainda maiores?

A Grécia tem uma dívida total de cerca de 330 mil milhões de Euros (olé): mas como foi possível que esta dívida saísse do controle?

Como sabemos, os maiores bancos dos EUA, especificamente JP Morgan Chase e Goldman Sachs, têm ajudado o governo grego a mascarar a verdadeira extensão do seu deficit com um acordo sobre os produtos derivativos que legalmente contornou as diretrizes do Tratado de Maastricht sobre o deficit.

Ou, dito de forma mais simples: os bancos ajudaram a Grécia a falsificar as contas. E para fazer isso utilizaram produtos financeiros, os assim chamados “derivativos”.

O que o Tratado de Maastricht previa eram multas pesadas no caso de deficit superiores a3% do Produto Interno Bruto e uma dívida pública superior a 60% do PIB. Valores, estes, que a Grécia ultrapassava com toda a tranquilidade.
Por isso Atenas, que tinha como objectivo a entrada na Zona Euro e, ao mesmo tempo, evitar as multas, começou uma “contabilidade criativa”, feita de custos esquecidos (os custos das forças armadas, por exemplo).

Todavia isso não era suficiente e é neste contexto que aparecem os nossos heróis: desde 2002 vários bancos de investimento têm oferecido produtos financeiros complexos com os quais o governo adiantam o pagamento das próprias obrigações.

Em outras palavras, com a ajuda de Goldman Sachs e JP Morgan Chase, a Grécia foi capaz de esconder a sua dívida no futuro, escondida nas aberrações…desculpem, nos simpáticos produtos derivativos.

A solução: CCS!

Neste sentido, um importante acordo foi assinado em 2002 com a Goldman Sachs sobre os cross-currency swaps (CCS).

O funcionamento deste derivativo pode parecer um pouco complicado, por isso vamos simplificar: eu, governo, tenho uma dívida em Dólares (a moeda utilizada nos mercados internacionais para a adquisição de petróleo, por exemplo), com o cross-currency-swap (CCS) transformo esta dívida em Euros e Yen (moeda japonesa) ao longo de um determinado período.

No fim, volto a converter tudo em Dólares.

Qual a vantagem? A vantagem é a seguinte: com o CCS a dívida não está nas minhas mãos, mas nas mãos do banco: de facto, torno a dívida uma operação financeira e não conta como passivo.

A Zona Euro pode perguntar: Olha lá, mas tu não tinhas uma dívida?
Resposta: Eu? Sim, mas já não é dívida, agora é um CCS, com o qual até posso ganhar dinheiro no futuro.

Obviamente a dívida permanece dívida, e quem ganha com isso é o banco que, claro está, não faz toda esta operação de graça. Pelo contrário, cobra bons juros para ficar com a dívida.
A qual, lembramos, uma vez acabada a operação CCS volta nas minhas mãos como dívida pura e simples.
Mais: uma dívida sobre a qual eu paguei bons juros ao longo de toda a operação CCS.

Mas, como afirmado, a vantagem é de não ter de declarar a dívida como tal, pois enquanto CCS é uma operação financeira.

Da mesma forma que os proprietários das casas forma “aconselhados” a activar uma segunda hipoteca para pagar as dívidas dos cartões de crédito, Goldman Sachs, JP Morgan Chase e outros bancos ajudaram os governos a adiar a dívida no futuro com o mercado dos derivativos.

A Europa? Não vê, não houve, não sabe

Isto foi feito na Grécia e…já, onde?
Não sabemos com certeza, mas é bem provável que outros Países da Zona Euro utilizaram o mesmo esquema.

Em dezenas de acordos realizados na Europa, os bancos anteciparam dinheiro em troca de pagamentos no futuro, o que foi deixado de fora dos saldos das contas dos Estados.

Mas a história não acaba assim.
Porque enquanto Goldman Sachs tratava com o governo da Grécia acerca dos pormenores do CCS, também comprava seguros sobre a dívida grega, juntamente com outros derivativos para se proteger contra uma eventual falência da Grécia.

Dito de outra forma: Goldman Sachs estava em negociações com a Grécia e, ao mesmo tempo, apostava contra a Grécia com um outro instrumento financeiro, o Credit Default Swap que aposta, literalmente, na falência.

Sim, eu sei, haveria outros aspectos a considerar.

Por exemplo: ninguém na Zona Euro sabia destas manobras? Ninguém foi capaz de imaginar uma operação com derivativos e bancos? Ninguém em Bruxelas pensou “Ok, vamos espreitar as contas da Grécia e fazer duas contas?”.

Mas esta é outra história.

Ipse dixit.

Fonte: Washington’s Blog

3 Replies to “Ensaio sobre a cegueira”

  1. Já leu o livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago?
    É, vi o título e lembrei, um livro bom.
    Todos ficam cegos, o mundo vira um caos, reaprender a ser humanos e enxergam novamente (simplifiquei demais '-').

    Será que teremos que passar por uma 'cegueira' (uma crise?) para nos tornarmos humanos novamente?

  2. Parabéns por sua motivação e empenho.

    Como você consegue escrever tantos artigos em 1 só dia?

    Aposto que tem muita gente que nem sequer conseguem acompanhar o ritmo do blog.

  3. Olá Anónimo e muito obrigado pelas boas palavras!

    Como faço? Tenho sorte: sempre gostei escrever e nunca tive dificuldade nisso.
    Já na escola funcionava da mesma forma: perante uma equação matemática desmaiava, mas perante uma folha branca e uma caneta sentia-me bem.

    É assim, há pessoas que sabem cozinhar, outras sabem tocar a guitarra, eu consigo escrever.

    E já levei na cabeça pelo facto de escrever muito, verdade!

    Abraço!!!

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: