A metástase dos juros

Vamos enfrentar um assunto importante para perceber a nossa sociedade e todo o Capitalismo: os juros.

Os juros são hoje considerados normais, indispensáveis para o funcionamento dum qualquer banco.
De facto, parece normal: o banco empresta dinheiro, o banco ganha uma percentagem do dinheiro emprestado.

É isso normal? Sim, na sociedade contemporânea é normal.
Este é o conceito de juro? Sim, e de usura também.

Pois temos que entender uma coisa: “juros” e “usura” são a mesma coisa. A única diferença é que a usura é um juro “excessivo”. Mas que significa “excessivo”? Quem estabelece quando um juro deixa de ser legal e torna-se usura?

Não existe uma lei natural que possa ajudar: é o homem que decide isso. A demonstração é que a “fronteira” entre juros e usura não é igual em todos os Países.

Mas vamos com ordem.

Antiguidade: juros? Não, usura

Wikipedia, que tudo sabe e ensina, explica:

Documentos históricos redigidos pela civilização suméria, por volta de 3000 a.C., revelam que o mundo antigo desenvolveu um sistema formalizado de crédito baseado em dois principais produtos, o grão e a prata.

Antes de existirem as moedas, o empréstimo de metal era feito baseado em seu peso. Arqueólogos descobriram pedaços de metais que foram usados no comércio nas civilizações de Troia, Babilónia, Egipto e Pérsia. Antes do empréstimo em dinheiro ser desenvolvido, o empréstimo de cereal e de prata facilitava a dinâmica do comércio.

Pergunta: mas o que isso tem a ver com os juros? Em verdade nada, aqui fala-se de empréstimos, de créditos, não de juros. Mas serve: serve para que o Leitor comece a considerar o juro como uma componente natural do empréstimo. O que é falso.

No artigo Os bancos do Islão é explicada a forma como os bancos islâmicos funcionam: sem juros, pois estes são expressamente proibidos pela religião (riba, proibição de juros).
Mas, surpresa, os juros são condenados também na Bíblia:

Não deves emprestar com juros ao teu irmão; interesse de dinheiro, interesse alimentar, interesse de tudo o que é emprestado
(Deuteronomio 23:19)

E se emprestardes àqueles de quem esperais receber, que mérito há nisso? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto.
(Lucas 6:34)

Mas ainda antes do Novo Testamento, os Gregos tinham chegado à mesma conclusão: neste caso Wikipedia versão italiana explica que

além de Aristóteles, outros pensadores da Antiguidade condenaram a usura: Platão, Cato, Cícero, Séneca e Plutarco.  

O que é outra vez falso. O que Aristóteles diz é o seguinte:

nummus nummum parere non potest

isso é: o dinheiro não pode gerar outro dinheiro. Aristóteles e companhia não tinham condenado a usura, mas todas as formas de ganhar dinheiro a partir do dinheiro. Tinham condenado os juros.

Também a Republica de Roma proibia os juros; a Lex Genucia de feneratione, de 340 a.C., previa que o empréstimo com juros fosse proibido.

E ao longo da Idade Média as coisas não mudaram: São Tomás de Aquino (séc. XIII) argumentou que a cobrança de juros era errada, porque equivalia a “dupla cobrança”, cobrando tanto para a coisa que ao uso da coisa (São Tomás tinha ideias um pouco confusas acerca do assunto, mas enfim…).

A Igreja (e com ela toda a sociedade ocidental) considerou este como um pecado da usura: o Concílio de Lyon II, em 1274, e o Conselho de Vienne, de 1311, condenaram expressamente a cobrança de juros, entendendo o empréstimo como uma venda de dinheiro com pagamento diferido, cujos interesses não eram justificados pelo passar do tempo, sendo o tempo um “bem comum”.

A fórmula é um pouco contorcida, mas a síntese simplificada faz sentido: o empréstimo de facto é uma venda de dinheiro, então, enquanto venda, não é justo que o preço varie com o passar do tempo. O preço tem de ser estabelecido antes e não pode variar.

Resumindo: no Mundo Antigo as principais religiões eram contrárias aos juros (também o Budismo segue a mesma linha de pensamento), e por três razões:

  • não é correcto fazer dinheiro a partir de dinheiro
  • uma mera questão de transparência (o preço fixo e invariável, antes)
  • o perigo da usura (que depois são os mesmos juros).  

Mas tudo muda com a reforma luterana e, sobretudo, com Calvino: os juros são admitidos. Sucessivamente o Código Napoleónico (1804) liberaliza o contrato de empréstimos e vários economistas tentam fornecer uma base teórica ao conceito de juro: Irving Fisher e Eugen von Boehm-Bawerk nos últimos 200 anos.

Bawerk, em particular, afirma que os juros existem “por causa da manifestação das preferências temporais dos consumidores, já que as pessoas preferem consumir no presente do que no futuro”. Como dizer: os juros existem por causa dos consumidores, é apenas culpa nossa.

A ideia de fazer surgir no cidadão sentidos de culpa não é tão nova, afinal.

Qual a diferença?

Mas voltamos ao princípio: qual a diferença entre juro e usura?
Repito: não há. Cada País estabelece um limite, além do qual a lei não reconhece o juro mas a usura.

Na Europa é geralmente aceite um limite de 30%, além do qual fala-se em usura. Mas há diferenças.
Em Italia, por exemplo, o limite é 50%, em França 113%, em Espanha não há um limite, que é estabelecido a segunda dos casos pelos juízes; nos Estados Unidos a lei Garn-St. Germain estabelecia 10% como limite, mas foi abolida em 1982.

E também na Europa as coisas estão prestes a mudar: existe uma proposta para liberalizar completamente o mercado do crédito, sem limites para os juros. E os Países que ainda aplicam controles anti-usura (Italia, França, Alemanha, Holanda) serão obrigados a interromper qualquer forma de controle.

De facto estamos perante a medida mais inteligente para combater a usura: torna-se a mesma usura legal. E, como já sabemos, o mercado que sabe auto-regulamentar-se faz o resto…

Mas se os juros são maus, como é possível imaginar um banco que trabalhe sem eles? Não será ficção científica?

A resposta é: não.
Já existem bancos que trabalham sem juros: são todos os bancos dos Países muçulmanos. Lembramos: não podem trabalhar com juros, seria um pecado particularmente grave.

Mas não apenas muçulmanos: um banco europeu sem juros existe já, é o JAK Medlemsbank, um banco da Suécia.

JAK: banco sem juros

Como funciona? Como pode um pobre banco sobreviver sem juros?

A filosofia do JAK (que funciona desde 1933) é simples:

  • os rendimentos dos juros são inimigos da estabilidade económica
  • o juro provoca desemprego, inflação e destruição do ambiente
  • o juro desloca matematicamente dinheiro dos pobres para os bolsos dos ricos
  • o juro favorece projectos que atinjam altos lucros em pouco tempo

e desafio alguém a demonstrar o contrário.

JAK propõe um modelo financeiro alternativo e um conceito de poupança livre da ideia do juro especulativo, somando 35.000 sócios que emprestam o dinheiro um ao outro sem a intervenção dum banco clássico.

Obviamente, no JAK não existem juros (que o banco considera, justamente, como usura) e os custos administrativos e de desenvolvimento são pagos com a quota associativa e a “taxa sobre o empréstimo”, igual a 2,5 % (fixo) em linha com a taxa de inflação.

A ideia é simples: cada sócio acumula pontos-poupança e pontos-despesa, e estes dois têm de equilibrar-se. Ao pedir um empréstimo, é claro que os pontos-despesa serão maiores dos pontos-poupança; então o sócio terá de poupar para acumular outros pontos-poupança.

Como ganhar pontos-poupança? Com depósitos que, entretanto, servirão de empréstimo para outros sócios. Uma vez reembolsado o crédito, os pontos-despesa serão iguais aos pontos-poupança e tudo começa outra vez.
Sem juros.

Funciona? Sim, funciona: em 2008 os sócios tinham poupado 97 milhões de Euros, dos quais 86 utilizados sem empréstimos. E, tanto para não gerar confusões, a propriedade do banco pertence aos sócios: cada sócio uma acção, não mais (e mais seriam inúteis, pois o objectivo do banco não é o lucro).

Tendo como base o modelo do JAK, nasceram dois bancos do mesmo género na Dinamarca e um na Alemanha.

O sócio parasita e o regresso ao futuro

Como vimos, não existe diferença entre juro e usura: é exactamente a mesma coisa, só que um é legal, a outra não. E o limite entre legalidade e ilegalidade varia consoante o País.

Agora, pensamos nisso: ao pedir um empréstimo para iniciar uma actividade comercial, assinamos um papel com o qual reconhecemos que ao longo de X anos uma parte dos nossos lucros ficarão nas mãos duma terceira entidade (o banco): não para devolver o empréstimo (coisa justa), mas para pagar os juros do empréstimo.

É a mesma coisa que ter um sócio. Com a diferença que nós temos de trabalhar, enquanto o sócio nada faz e limita-se a ficar com o lucro.

Acham isso normal?

Esta é a actividade dum banco.
O banco ganha com as despesas ligadas à manutenção da conta.
O banco ganha com as comissões das operações.
O banco ganha com as despesas da prática.
O banco ganha com os juros sobre o montante emprestado.
O banco ganha com o fecho da conta (sic!).

Continuam a achar isso normal?

A doutrinação perpetrada pela sociedade ao longo dos séculos fez que hoje todos consideremos os juros como uma componente natural do empréstimo e da actividade dum banco. Até para alguns é difícil entender um banco que funcione sem empréstimos. Mas assim não é: é tudo falso.
 
Lembrem:

  • os rendimentos dos juros são inimigos da estabilidade económica
  • o juro provoca desemprego, inflação e destruição do ambiente
  • o juro desloca matematicamente dinheiro dos pobres para os bolsos dos ricos
  • o juro favorece projectos que atinjam altos lucros em pouco tempo

Para perceber até que ponto os juros desenvolvam um papel importante (fundamental) nas nossas vidas, pensamos na actual tragédia do Mundo Ocidental, a dívida pública, mas sem os juros.

Quem compraria a dívida dos Países sem juros? Ninguém, pois não haveria nada para ganhar: os Países seriam obrigados a orçamentos mais cuidadosos, pois bem poucos seriam propensos a emprestar dinheiro sem juros (isso é, sem ganhar nada).

Isso significa que os Países deveriam cuidar mais do próprio tecido produtivo, única fonte importante de liquidez: a verdadeira riqueza voltaria a identificar-se com a produção de bens e com a relativa venda, não com a capacidade de contrair dívida.

Agência de rating? Para quê? O que seria avaliado sem lucros e ninguém a comprar as dívidas dos Países?

Especulação na dívida? Especulação de quê?
Credit Swap Default? Futures e outros mecanismos financeiros? Seriam palavras sem sentido.

E os bancos? Na maioria estariam nas mãos do público, pois as margens dos eventuais lucros seriam muito reduzidas.

O que os homens do Mundo Antigo tinham percebido é que a verdadeira riqueza está na capacidade de produzir bens tangíveis (comida, máquinas) e no comércio: ganhar dinheiro a partir do dinheiro (isso é, sem fazer nada e desfrutando o trabalho dos outros) é uma aberração.

Eles tinham chegado a esta conclusão, nós temos que entende-la outra vez.

Ipse dixit.

Links:  Infelizmente não há um banco sem juros ou uma associação que trate deste assunto em língua portuguesa. Em Italiano há o JAK Italia, enquanto em Inglês existe The Reciprocal Bank; depois há o site sueco do JAK, disponível também em Inglês.

7 Replies to “A metástase dos juros”

  1. Ótimo artigo.
    Gostei muito.

    Todo mundo sabe que os juros existem, porém pouquíssima gente sabe como realmente funcionam.

    Mas, as vezes me perco nestes pensamentos, pois temos a opção de estudar isso e colocá-los a nosso favor, digo, usar os juros para o nosso bem, sendo uma das únicas formas de subir financeiramente, através de um plano de previdência privada ou conta de fundo mútuo com juros compostos. Claro que para o nosso bem, os juros serão sempre menores e para os bancos sempre maiores, mas no momento é uma das únicas saídas que vejo para melhorar minha vida financeira e não ficar pobre quando me aposentar. Infelizmente.

    Muita gente se aposenta no Brasil e fica "sobrevivendo com um salário mínimo", mas se tivessem a educação e informação desde jovens e soubessem usar os juros a favor delas, estariam financeiramente muito melhor. Por isso, eu vejo um paradoxo as vezes nestas situações.
    Não sabendo direito a melhor coisa a se fazer para viver melhor.

  2. Existe a cobranca de juros pois as pessoas se submetem a paga-lo. Existe a necessidade carnal, materialista que a faz a aceitar esta situacao.Sociedade de consumo.

    Os bancos podem emprestar 9 vezes mais do que tem em depositos, por isso emprestam muito, aumentando a demanda de produtos e imoveis que aumentam entao de valor, gerando inflacao.

    Resumindo, o materialismo e a insatisfacao com que as pessoas possuem é que dao margem a cobrança de juros.

    Minha opiniao. Entre outras.

  3. Qual será a saída para isso tudo?
    Visto que muita gente se educa financeiramente justamente para poder usar os juros compostos a seu favor e conseguir uma vida com mais qualidade.

    As vezes um plano de investimento baseado nos juros é uma das poucas opções de quem não possui um negócio próprio.

  4. Meu nome é Marcos e sou brasileiro. Conheci o seu blog meses atrás e o frequento diariamente. Ando meio desanimado com as coisas porque já estudo sobre o funcionamento bizarro dessa sociedade há algum tempo e não sei exatamente o que fazer. Como poucas pessoas se prestam a ler e conversar sobre isso, seu blog é como a possibilidade de conversar e refletir com um irmão ou amigo sobre todas as coisas que deveriam ser questionadas mas que infelizmente são aceitas de modo passivo pelas pessoas.

    Por hora estamos nas mãos dos bancos e do sistema financeiro parasita, mas existem opções simples que podem levar nossa sociedade para outro rumo, como os que você citou. Muito pode ser feito, mas para isso as pessoas precisam querer as mudanças… e talvez isso é o que mais me intriga… as pessoas querem mudanças? Já não estão mergulhadas demais numa ilusão e desdenham qualquer possibilidade de mudança? Se assim for, por que existem pessoas como nós que enxergam o problema e tentam mostrar aos outros para ser em grande parte ignorados?

    Talvez a maior arma do sistema seja o medo. Todos temos medo e o sistema sabe disso, criando um ciclo cuidadoso de medo às pessoas para que essas já não reajam, com medo de perder as pequenas migalhas que lhes são atiradas…

    Acho que estou me direcionando além do assunto… talvez seja apenas a vontade de lhe dizer algumas palavras… de qualquer forma ótimo trabalho.

  5. Obrigado Max,

    gostei de ficar a conhecer os Bancos em Juros.
    Desconhecia tal coisa – eu era (até à 5min atrás) um dos que não concebia a ideia dos empréstimos sem juro.

    Efectivamente, agora tudo faz sentido!

    Abraço,
    — —
    R. Saraiva

  6. Mais um excelente artigo Max!
    Sabia que nos bancos em paises islamicas aplicavam-se alguns dos principios das leis Sharia. O que eu nao sabia e' como e' que na pratica os bancos acabariam por funcionar e muito menos pensaria que existiam bancos a operar dessa forma na Europa. Sem duvida que estes bancos seriam muito mais beneficos para a sociedade do que os que praticam agiotismo.

    Volto a dizer- excelente artigo!

Obrigado por participar na discussão!

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