O outro lado

O desastre nuclear do Japão podes ser uma boa ocasião para algumas reflexões acerca do homem. Nada mais, nada menos. Seria possível falar de coisas um pouco menos empenhadas, tipo a chegada da Primavera, mas não: vamos falar da Humanidade.

Energia, a qualquer custo

Nos últimos séculos, o Homem tem confiado com entusiasmo na tecnologia. Não é preciso lembrar todas as realizações que isso comportou: já o facto de poder ler num ecrã estas palavras, mesmo ficando a milhares de quilómetros de distancia, é um bom indicador das coisas positivas que a tecnologia conseguiu.

Este processo também trouxe factores negativos, tal como a poluição, o stress, a alienação entre outros. Mas o objectivo deste escrito é outro: entre o Homem moderno e as suas criações nasceu um relacionamentos novo e esquisito.

O uso duma calculadora aumenta as habilidades matemáticas? As minhas sem dúvida, pois detesto os números, mas as dum estudante? O GPS melhora o nosso sentido de orientação? Um videojogo desenvolve a fantasia duma criança? A medicina aumenta a esperança de vida, mas isso é sempre positivo?

Não estaremos a perder o sentido de “força contrária”?

E isso, repito, dito por quem gosta e utiliza amplamente a tecnologia.
Mas abandonamos esta última e vamos observar outros aspectos: o crescimento, por exemplo, parece estar ligado à proporcional queda dos valores. É um simples acaso ou as duas coisas são interligadas?

Perante esta dúvida, todavia, a ciência não oferece respostas. Aliás, ignora em boa medida o assunto.
Sim, existem a sociologia, por exemplo, e outras disciplinas que inspecionam o fenómeno, mas sempre do ponto de vista puramente científico, com dados, gráficos, estimativas. Não é esta a respostas que procuramos.

A realidade é que já desde vários séculos existe uma profunda laceração entre o conhecimento do Homem e o seu lado natural, interno (o nosso ser) e externo (a Natureza). Dois lados, o do conhecimento e o da Natureza,  que parecem não conciliáveis.

O terramoto do Japão e a consequente catástrofe nuclear são um bom exemplo disso. Repensar o nuclear? Não, não podemos, é a resposta: não temos alternativas. E é verdade: um País como o Japão não pode utilizar apenas energias renováveis, isso não seria suficiente. E quem diz Japão diz também todos os Países Ocidentais.

Chegámos a um ponto em que o Homem tem de arriscar um holocausto para poder salvaguardar a própria tecnologia. Então, surge uma pergunta: quem manda? Nós ou as máquinas? Exagerado? Dito desta forma sim, é exagerado.

 De catástrofe em catástrofe, com serenidade

Quando pensamos neste assunto, as recordações viajam logo até alguns filmes de ficção científica, em mundo dominados por máquinas feias e más que obrigam o Homem a um estado de escravidão.

Todavia acho que este ponto de vista está errado: não é precisa uma máquina feia que dá ordens, é suficiente menos do que isso. É suficiente que o Homem aceite de destruir o próprio ambiente natural para alimentar a infinita sede de energia: e já podemos falar de escravidão.

Pois é como se o Homem tivesse encontrado a resposta para a pergunta: o que é mais importante, o nosso ambiente natural ou a energia, isso é, as máquinas? O Homem escolheu a segunda possibilidade e arrisca ímanes catástrofes para permitir o funcionamento das máquinas.

Muitas vezes foi tratado o assunto petróleo. Lembram do desastre do Golfo do México, do poço Macondo?
Foi há poucos meses e já estamos perante algo de dimensões ainda maiores. Em ambos os casos, a motivação é a mesma: energia, para que as máquinas possam funcionar.

E porque não falar do caso Líbia também? Da guerra para o controle do petróleo e do gás? Energia, máquinas.

Pensar que tudo isso seja absolutamente necessário é um pensamento doente.
Eis porque talvez tenha chegado a altura para repensar o Homem.

Repensar o pensamento

O Homem ou o modelo de sociedade? Não, o Homem, porque é no Homem que nascem as ideias.

Uma sociedade criada por mentes desviadas será uma sociedade desviada também. Este não é um pormenor secundário pois há, na internet, projectos para sociedades melhores, melhor organizadas, mais respeitosas do ambiente, mais eficientes; como o Venus Project, por exemplo.

Boas ideias, se calhar excelentes ideias.
Que, todavia, concentram muitos dos próprios recursos no aspecto tecnológico e ignoram o tal lado”natura” do Homem. Eu acho que a nossa espécie não precisa de mais tecnologia, desta há o suficiente. Se o Homem quisesse construir uma sociedade melhor, mais justa, com recursos distribuídos, seria possível e já.
Não simples, mas possível sim.

Se isso não acontecer (e, de facto, não acontece) então significa que temos de repensar o pensamento.
Um jogo de palavras? Parece, mas é mais do que isso.

E, tanto para complicar um pouco as coisas, é bom realçar que para poder “repensar o pensamento”, em primeiro lugar temos que reconhecer o objecto que pensa. Isso é: nós.

E aqui as coisas complicam-se ainda mais. Pensar em nós? Pensar como? Que pensar acerca de nós?

Vivemos numa sociedade esquisita. Aparentemente, uma sociedade egoísta, na qual cada um pensa cada vez mais em si mesmo e menos nos outros.

Mas é verdadeiramente assim? Acho que não. Todas as mensagens que recebemos miram a satisfazer o nós “exterior”, nunca o interior: são as nossas necessidades materialistas a serem alvos dos vários “input”, nunca as necessidades mais profundas.

Alguém viu uma publicidade que diga simplesmente: “Pare e pense”? Uma publicidade que convide a reconhecer o que é bom e o que é mal? Não existe nada disso.

Temos publicidades para todos os gostos: carros com 400 cavalos, cremes para rejuvenescer, filmes, brinquedos, telemóveis. Não há uma publicidade que convide a ser responsável.

E atenção: não falo de publicidade comercial, esta tem outras finalidades. Falo da publicidade mais subtil, a mais importante, a que é espalhada continuamente não nos jornais ou na televisão, mas nas ruas: falo da publicidade que espalha um modelo de vida que é o nosso actual.

Os únicos que tratam do aspecto interior são uma Igreja Católica em fase de decadência e algumas seitas ou movimentos que partem da religião para outras finalidades, bem menos “espirituais”. Um panorama miserável.

As necessidades interiores: o Bem e o Mal

Doutro lado, é mesmo da observação destes fenómenos que podemos obter importantes indicadores. A Igreja Católica não foi capaz de captar as reais necessidades de muitas pessoas, que agora convergem em outras realidades místicas.

Façam uma pesquisa no Google com a palavra “Igreja”. Espantosa a quantidade de resultados, não é? Alguns anos atrás não era assim, e isso significa que existe de facto uma procura. As pessoas procuram algo mais do que simples objectos, procuram algo que trate da parte interior também. Algo que o actual modelo da sociedade não consegue fornecer.

Paradoxo da História, o que não conseguiu o Comunismo, parece agora estar ao alcance deste novo Capitalismo Parasitário: esquecer palavras como “religião”, “espiritualidade”, “necessidades interiores”.

O Homem não consegue esquecer o próprio lado interior. E ainda bem.

Talvez porque este conjunto de palavras (religião, espiritualidade, etc.) indica afinal algo que não pode ser esquecido, que é parte da nossa natureza: a necessidade de ter valores absolutos, como o Bem e o Mal, nos quais poder espelhar-se.

Depois podemos chamar isso de várias formas: Deus, Allah, Budda, Druidismo, Xamanismo, até a Filosofia em muitos aspectos ajuda. Não é isso que interessa: o que interessa é que existe outro lado, não menos importante.

Todavia, a nossa sociedade opera como se tal lado não existisse.

Estas linhas não são um convite para seguir gurus indianos ou começar uma vida de auto-flagelação. Como já afirmei, não é minha intenção recusar uma tecnologia que utilizo amplamente e da qual estou satisfeito.

A questão não é voltar atrás no tempo, recuar até estilos de vida da Idade média. 
Pelo contrário, a ideia é um salto para frente.

O conceito é substituir um Homem alucinado pela procura da energia com um Homem que volte a ser o centro da própria vida.

Será possível?

Ipse dixit.

Fontes: The Venus Project, Stampa Libera

One Reply to “O outro lado”

  1. Muito bem dito, Max!

    "Não é demonstração de saúde ser bem ajustado a uma sociedade profundamente doente" – Jiddu Krishnamurti

Obrigado por participar na discussão!

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