Flexibilização

Algumas notícias do mundo da informação.

Sapo Económico: Governo quer flexibilizar mercado laboral
Antena 1: PSD quer flexibilizar despedimentos
Diário de Notícias: Portas quer flexibilizar contratações
A Bola: :Bruxelas exigiu «medidas concretas para flexibilizar empregos e salários» em Portugal

Queridos leitores, não sei se ficou suficientemente claro, mas temos que flexibilizar-nos.

A flexibilização não seria má…

A flexibilização é vista como medida necessária para relançar a economia, não só de Portugal mas do Ocidente também. Até num País em plena fase de crescimento como o Brasil, a flexibilização é um tema discutido.

O problema é que a maioria dos trabalhadores só ao ouvir a palavra fica revoltada.

Então: flexibilização como sinónimo de despedimento ou medida insubstituível face à nova economia?

Em teoria a flexibilização não é uma coisa má: trabalha-se alguns tempos numa empresa, depois a empresa deixa de precisar de mão de obra, então o trabalhador é assumido por outra empresa.

Tão simples, em teoria.
Até podemos encontrar elementos positivos: menor rotina, mais e diversificada experiência do trabalhador.
Doutro lado, a empresa pode optimizar os custos,mantendo apenas a mão de obra de que efectivamente precisa num determinado período.

…mas é.

Isso em teoria. Mas na prática?
Na prática não funciona. Não que um sistema assim baseado não possa funcionar. Pelo contrário, é nesta economia que não pode funcionar.

Para que a flexibilização possa tornar-se realidade, é precisa uma mudança na maneira de pensar: do trabalhador, sem dúvida, mas também das empresas e do Estado.

  1. O trabalhador tem que perceber que “o trabalho da vida” já não existe. Podemos concordar ou não, mas não é este o espírito deste artigo. Os factos demonstram como o “posto fixo” está a desaparecer.
  2. A empresa terá que mudar também. É precisa uma atenta planificação na gestão do pessoal, pois o risco é de ter que enfrentar alturas de grandes trabalhos sem a mão de obra qualificada.
  3. O Estado, por sua vez, tem que pôr em prática todas as medidas necessárias para que possa haver um mecanismo particularmente eficiente em caso de recrutamento ou mudança de trabalho.

Estas três condições devem estar presentes simultaneamente, pois se uma delas falhar todo o sistema rui. 

Mas é isso suficiente?
A minha resposta é “não”.

Programação 

Uma família, para poder viver de forma decente, tem que pode contar a possibilidade com um mínimo de programação.
Isso é: hoje entra 100 €, amanhã também e isso permite a aquisição dum frigorífero no final do mês.

Mas se hoje entram 100€ e amanhã não se sabe, como posso saber quando será possível comprar o frigorífico? Os 100€ de hoje podem ser precisos para a comida de amanhã. 

Isso vale, obviamente, no caso da compra dum frigorífico mas também duma casa, da escola para os filhos, da saúde, etc. 

Resumindo: no caso duma flexibilização “selvagem”, a vida torna-se uma questão de sobrevivência e nada mais. é impossível fazer projectos, é impossível planear a própria vida. 

A resposta de quem propõe a flexibilização é que num mercado “flexibilizado” a procura é alta e as ocasiões não faltam. O trabalhador nunca ficaria sem ocupação ao longo de períodos demasiados cumpridos.

Ainda uma vez, esta é a teoria. A realidade é bem diversa.

O poder “contractual”  

Vivemos numa economia em profunda crise e as perspectivas de curto e médio prazo não são optimistas. Em muitos Países da Europa, por exemplo, não é difícil prever uma fase de recessão. 
Num contexto como este, a flexibilização teria como efeito imediato um maior poder das empresas. Um poder não escrito, mas não por isso menos real. 

Um exemplo banal.
Imaginemos de viver num mercado já flexibilizado de forma “selvagem”, onde uma empresa pode despedir o trabalhador em qualquer altura e sem razão senão a própria.
Imaginemos um “patrão” que peça ao próprio dependente para trabalhar mais uma hora além do normal horário de trabalho, se calhar uma hora não paga para o “bem da empresa”.

Pode o trabalhador recusar? Sim, claro. Mas se no dia a seguir ficar sem trabalho saberá o porque. 

Há uma maneira para ultrapassar estes problemas?
Sim, há: criar um fundo de compensação.

Um fundo? 

O Estado tem que introduzir um imposto, pago pelas empresas, para ser utilizado no caso dum trabalhador não encontrar uma ocupação no mercado “flexibilizado”. Um imposto para a criação dum fundo de compensação.
Em caso de desemprego, isso é, impossibilidade de encontrar um trabalho, é entregue ao trabalhador, por exemplo, 80% do último ordenado.

Um disparate? E porquê? Afinal as empresas ganham com a possibilidade de optimizar a mão de obra; o Estado ganha com uma economia mais flexível e mais produtiva, o trabalhador ganha a possibilidade de planear a própria vida.

Sem este fundo de compensação, quem ganha são as empresas e o Estado, enquanto o trabalhador fica com a integridade dos custos da operação de flexibilização.
Sem este fundo, o mercado do trabalho volta para o XIX século, caracterizado por uma alta mobilidade da mão de obra. 
No ‘800, de facto, havia muita flexibilização. 
E muita fome também.
(isto caso alguém tente “vender” a flexibilização como “novo recurso”)

A reforma

Mas há outros problemas: por exemplo, a reforma.

Num sistema flexibilizado e eficiente, não existem tempos mortos: acaba-se um trabalho numa empresa, começa-se logo a seguir numa outra.

Num sistema como o nosso, o risco é de acabar o trabalho numa empresa e depois? Esperar.

Quanto? Ninguém sabe.
E as contribuições? Pois.

Ficar parados um ou mais meses ao longo dum ano, por exemplo, já por si não é agradável. Mas no final da vida de trabalho, todos estes meses juntos podem significar anos. 
O que pode ser traduzido numa reforma mais baixa. 

Este, de facto, representa outro custo para o trabalhador.

Outro fundo?

Como ultrapassar o problema?  Três as formas possíveis: 

  1. um fundo estatal de compensação para as reformas
  2. introdução das reformas privadas 
  3. um imposto sobre as empresas

A primeira hipótese vê o Estado que compensa os meses ou anos de não trabalho com contribuições pagas pela comunidade (pois o Estado somos nós). 
Não acho correcto, pois quem traz maior vantagem da flexibilização são as empresas e não podemos fazer recair na inteira sociedade o custo dos benefícios duma só categoria. 

A introdução das reformas privadas em substituição do sistema estatal não é viável numa sociedade flexibilizada mas imperfeita, pois o trabalhador não sabe se e quando poderá pagar as prestações para a própria reforma. 

Sobra o imposto que grava nas empresas.
Mas este seria o segundo imposto que incide nas empresas: o imposto para o fundo de compensação (que tutela o trabalhador em caso de desemprego prolongado) e agora o imposto para o fundo de compensação das reformas.

Ainda compensa?
Duvido. 

Doutro lado, não prever mecanismos que protejam o trabalhador contra os riscos acrescidos duma flexibilização “selvagem” é injusto.
Ouvimos dizer que nesta altura “todos temos de fazer esforços”: e “todos” significa “todos”, não só uma parte da sociedade.

Um mundo inseguro 

Repito ainda uma vez: a flexibilização em si não é negativa, pelo contrário.
É a flexibilização introduzida no nosso contexto que se torna uma injustiça e descarrega no trabalhador o custo dum mercado (económico e de trabalho, pois afinal as duas coisas são interligadas) que não funciona. 

Mas quais as consequências perante uma introdução “forçada”?
As empresas, por exemplo, teriam realmente só vantagens? 

Acho que só um empresário incapaz pode pensar que uma sociedade e mais pobre e menos segura (em muitos sentidos) pode ser favorável. 
Se a sociedade for pobre, o mercado será necessariamente mais reduzido, pois menos pessoas terão possibilidades de adquirir os produtos. Esta é uma das regras do mercado e uma breve pesquisa histórica confirma isso.

E a sociedade actual, com uma introdução “forçada” da flexibilização, se tornaria menos segura.
Menos segura no sentido que cada trabalhador (e relativas famílias) viveriam num clima de precariedade que é o prólogo da estagnação e da recessão.
Menos segura pois, inevitavelmente, cresceria a faixa populacional mais pobre. E onde há pobreza há mais violência.  
Menos segura porque menos estável: manifestações, greves, boicotes, seriam parte integrante do mundo do trabalho, com prejuízos para a produção. 

Na verdade os pontos aqui tratados são só alguns dos problemas levantados pela flexibilização, e o assunto está longe der ser esgotado. Há outros, sem dúvida, mas a intenção era pôr a tónica em alguns aspectos que por enquanto não encontram respostas e até nem discussão. 

Continuo a pensar que um sindicato sério deveria não apenas comparecer nas manifestações oceânicas, mas levantar debates à nível nacional, falar com os trabalhadores e não só, porta a porta se for necessário. E tudo isso antes das decisões ser tomadas. 
 
As greves “póstumas” servem só para os sindicatos manterem bons os trabalhadores que assim podem passar um dia a levantar o punho fechado, cantar algumas canções nostálgicas e ouvir discursos poucos originais.

Qual foi o resultado da última greve geral, a do 24 de Novembro? Pois… 

O risco é de voltar ao mundo do trabalho do século XIX: como já lembrado, muita flexibilização e muita fome.

Ipse dixit

Sapo Económico, Antena 1, Diário de Notícias, A Bola

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