Cantona e os bancos: 7 de Dezembro

Eric Cantona lançou uma iniciativa: no dia 7 de Dezembro retirar o dinheiro da própria conta bancária. Informação Incorrecta até teve a honra de aparecer num diário português graças ao vídeo legendado e publicado no Canal Youtube (e obrigado para Nuno Miguel, eu nem tinha reparado).

A iniciativa de Cantona pode ser encontrada no site Bankrun 2010 (outra vez o nosso vídeo, um sucesso em todos os cinemas!), no entanto a seguir vamos publicar uma entrevista com  Juan Torres López, Docente de Economia da Universidade de Sevilha, membro do Comité Científico do ATTAC Espanha e autor dos livros Desiguales: Mujeres y hombres en la crisis financiera (Icaria) com Lina Gálveze, e La crise de las hipotecas basura. ¿Por qué se cayó todo y no se ha hundido nada? (Sequitur) em colaboração com Alberto Garzón.

É uma entrevista comprida, mas vale a pena.
Por isso aconselho buscar uma bebida, sentar-se com paciência em frente do ecrã, desligar o telemóvel, afastar o gato e começar a ler.

Para facilitar um pouco frisei em negrito as partes que considero mais interessantes.
Obrigado.
De nada.

A paciência das pessoas tem os seus limites

Quais são os efeitos duma medida como a proposta por Cantona?
 

Juan Torres López

Claro que depende do resultado. Se for uma coisa em massa, os bancos não teriam dinheiro suficiente para devolver os depósitos dos clientes, pois o banco ocidental opera com um sistema chamado de reservas fraccionarias. Isso significa que de todo o dinheiro que um cliente depositar, conserva apenas uma pequena proporção (actualmente 2% acrescidos duma percentagem adicional com base nas normas de cada País). O restante é usado para dar créditos. Por isso, o dinheiro depositado “está” no banco, mas apenas na forma de anotações, para que o dinheiro não possa ser retirado na sua totalidade ..

Isto significa que os bancos não guardam o dinheiro dos clientes, mas que o usam para ganhar mais dinheiro?

Isso mesmo. O negócio dos bancos é este: criar meios de pagamento através da geração de dívida. Toda vez que concedem um crédito, criam dinheiro com esta parte do depósito que não foi mantida. Mas não é o dinheiro legal (moedas ou notas), é dinheiro bancário. 

E com isso ganham …

É claro que eles ganham. Ganham mais dinheiro, porque recolhem mais para emprestar do que para receber. E ganham poder porque, como todos sabem, o dinheiro dá poder para tomar decisões e satisfação.

E os governos não poderiam evitar tal situação, ao impedir de retirar os depósitos?

Em teoria, os governos estão comprometidos a garantir os depósitos dos clientes, mas, claro, sob a forma de dinheiro bancário. O que acontece é que, se todos ou a maioria de nós, no mesmo dia, formos a retirar o dinheiro, seria impossível. O que os governos fazem, de facto, é uma farsa enquanto houver um sistema de reservas fraccionarias. No entanto, em um determinados momentos, podem decretar para não retirar o dinheiro, como aconteceu na Argentina, para ajudar os bancos e os grandes investidores.

Acha que o apelo Cantona será bem sucedido?

Acho que no começo não vai ser seguido por milhões de pessoas. Por isso, não acho que será tão relevante para o problema da liquidez que irá gerar, mas sim porque vai ser um aviso de que as pessoas estão a começar a ficar fartas, e com razão, dos bancos. Uma vez li que o Henry Ford disse que se as pessoas soubessem o que os bancos fazem com as poupanças, um dia depois de uma revolução estoiraria. 

O papel dos bancos nesta crise tem sido tão negativo?

Eric Cantona

Acho que sim. Se me permitem a expressão, ao mesmo tempo têm sido a arma do crime e a mão que puxa o gatilho. Em vez de canalizar a poupança para investimentos produtivos, estas foram disponibilizadas para a especulação. E outros negócios sujos: os bancos permitem a lavagem de dinheiro, têm sedes nos paraísos fiscais, são um canal para o tráfico de armas, drogas, pessoas, ou ajudam os terroristas a movimentar o dinheiro, financiam com milhares de milhões pessoas nojentas enquanto pequenos e médios empresários têm que suar para obter um crédito de poucos milhares de Euros. E também graças ao poder financeiro que possuem, têm alargado a influência na política, nos media, na criação do pensamento, na educação, impõem políticas que produzem uma desigualdade enorme, e assim dando origem a estas crise recorrentes e graves. Não existe hoje um aspecto fundamental da vida social movido sem a influência dos bancos.

Então, acha que é legítimo as pessoas retirarem o próprio dinheiro dos bancos?.

Absolutamente sim, mas com esclarecimentos. As pessoas têm o direito e até o dever moral de dizer a todos os bancos que estas coisas estão erradas, que não querem que com o próprio dinheiro sejam feitas todas essas ações. Mas também digo que é preciso pormenorizar, porque existem bancos éticos, e não todos os bancos têm-se comportado da mesma maneira. Deveria ser possível canalizar essa expressão de raiva e recusa contra os bancos sujos pedindo um novo tipo de banco. Mobilizar a poupança e torná-la disponível para aqueles que precisam de financiamento externo para criar riqueza quero dizer que a actividade financeira é essencial em qualquer economia. Seria tolice abdicar disso. Portanto, o importante não é só retirar o dinheiro dos bancos que estão realmente a causar muitos danos, mas criar um sistema financeiro alternativo, ético, limpo, transparente, visando a criação de riqueza. . .

E como seria esse sistema financeiro alternativo?.

Então, eu acho que em vez de ser cada vez mais centralizados, como querem os donos dos bancos privados para melhor controlar os mercados e a sociedade, deveriam ser organizados em vários níveis. Certo, acredito que deveria haver grandes bancos internacionais porque hoje precisamos de financiar projectos de desenvolvimento de grande alcance. Mas não deveriam ser privados (porque neste caso estariam interessados nos próprios interesses), nem anti-democraticamente controlados como são hoje, por exemplo, como o Banco Mundial. E para evitar esta última situação, o ideal é que os bancos fiquem muito “perto” das pessoas, que fiquem sujeitos aos princípios rigorosos de execução e a um constante, plural e democrático controle social.

E esses bancos maiores continuariam a agir com reservas fraccionarias?.

Não, não, essa é a lógica que deve ser mudada. Ao continuar desta forma, estaremos sempre à estaca zero. Existem maneiras de tornar o banco privo de reservas fraccionarias e funcional ao mesmo tempo. Não estou a dizer que é fácil, mas pode ser feito..

E o resto?

O sistema financeiro funciona melhor e causa menos problemas quanto mais estar descentralizado. É preciso criar redes e um sistema financeiro multi-nível e multi-funcional. E é essencial que as pessoas que poupam também sejam donas do destino das próprias economias, que possa intervir na altura de decidir de usa-las. Isso seria muito mais fácil se fôssemos todos mais empreendedores e criativos, seria preciso deixar de ver a criação de riqueza, de emprego ou de saúde e segurança como algo que “afecta os outros “, mas diz respeito também a nós, depende das nossas actividades e do trabalho, das nossas economias, das nossas ações e decisões. Temos de garantir que as finanças não escravizem os consumidores ou as pequenas e médias empresas: afinal, são eles que em Espanha criam e sustentam mais de 90% do emprego. É por isso que seria melhor se todos eles decidissem o que fazer com as poupanças deles, sem que estas decisões dependam de grandes e distantes instituições financeiras que, naturalmente, procuram maximizar os próprios ganhos numa perspectiva global. O que importa ao Banco de Santander [uma das maiores entidades financeiras em Espanha, NDT], cada vez mais preocupado com o aumento da sua receita, do efeito das suas ações para a mulher de Bierzo que precisa de 1.500 € para começar o negócio como cabeleireira ou dum carpinteiro que emprega cinco trabalhadores numa freguesia de Lugo e que necessita 5000 € para mudar as máquinas? Ao longo da propaganda podem dizer tudo, mas a realidade é que o cálculo dos resultados dos grandes bancos que dominam as finanças de hoje dependem de outras variáveis, não destes “negócios comuns da vida diária”, que são, como dizia Alfred Marshall, o objecto da economia. . .

Refere-se ao desenvolvimento das assim chamadas microfinanças?

Sim, mas não só todos. Temos de criar e fortalecer redes de apoio financeiro interpessoais, para chama-las de alguma forma. Também as finanças têm a ver com solidariedade e generosidade. Mohamed Yunus demonstrou com as experiências de microcrédito, que a economia com base nesses valores ajuda a escapar da pobreza e criar mais riqueza do que as economias com base nos valores de lucro ou, naturalmente, daqueles que levam a especulação financeira ao limite. Mas é preciso gerar outro tipo de economia num nível intermédio. Como eu disse, não faz sentido que o financiamento de pequenas empresas ou de pessoas que necessitam, na maioria das vezes, de apoio financeiro numa pequena e média escala, dependa das corporações gigantescas. É melhor que isso fique vinculado à poupança descentralizada. Sempre foi feito desta forma e havia mais disponibilidade económica para criar riqueza. Agora parece que estamos a viver numa abundância de recursos financeiros, mas, na realidade, existe só quando se trata de apoiar grandes negócios e gerar dívida artificial que, por sua vez, financia as bolhas especulativas. . .

Então recomendaria para retirar o dinheiro dos bancos convencionais? Retirará o seu dinheiro?

Vamos ver, eu sou um cliente do Triodos Bank. Poderíamos dizer que eu já retirei o dinheiro, pelo menos uma grande parte, porque há ainda grandes dificuldades para encaminhar fora dos bancos tradicionais todos os recibos ou os pagamentos. E há alternativas para a poupança de depósito: várias cooperativas em algumas das comunidades autónomas. Apesar de responder ao mesmo sistema de reserva fraccionaria, são muito mais transparentes e não fazem os desprezáveis investimentos dos bancos tradicionais. – 

E isso é para ser feito em massa?

Eu acredito que em massa deveríamos estar cientes de que os bancos convencionais estão a fazer, o facto de que é necessário que haja outros diferentes, públicos e privados, sem o privilégio da criação de dinheiro privado. E, claro, quantas mais pessoas trazerem o dinheiro aos bancos éticos ou às cooperativas de crédito, muito melhor será. 

Mas é possível usar o retiro dos fundos como uma arma contra os bancos? Não há o risco de provocar uma falência generalizada dos bancos?

Então vamos ver, vamos com ordem. Se os bancos estão agora à beira da falência ou mesmo falidos, isso não é absolutamente por culpa dos clientes que querem proteger o próprio dinheiro da irresponsabilidade e da ganância dos banqueiros. Além disso, as pessoas têm o direito de retirar o dinheiro dos bancos quando lhe apetecer. É deles! E ao fazer isso em massa, não seria certo que esta decisão que levaria os bancos à falência, mas o sistema de reservas fraccionarias. . .

Mas o apelo de Cantona não é uma irresponsabilidade?

É possível que isto de seja dito por quem afundou o sistema financeiro global, resultando numa crise sem precedentes, mas a irresponsabilidade do que poderia acontecer no sistema financeiro não é de Cantona. Ora essa! Cantona é um cidadão, como muitos outros, que está cansado dos irresponsáveis. Outra questão é se esta medida pode ser decisiva ou se for útil sozinha.

O que quer dizer com isso?

Não é suficiente dizer às pessoas para retirar o dinheiro dos bancos. Isso é bom como faísca para chamar a atenção, como um aviso, como uma provocação … Mas precisamos de alternativasEsta medida deve ser uma forma de pressão em favor de algo. Acho que deve ser acompanhada, se for implementada, com a reivindicação dos bancos públicos, do desaparecimento dos bancos responsáveis pela crise, com políticas económicas e financeiras, com a necessidade de novas regras e novos modos de financiamento e, sobretudo, com a exigência de garantias que permitam voltar a financiar a economia de modo que esta possa funcionar: é precisamente o que agora os bancos privados não fornecem. Esta é a linha com a qual trabalhamos na ATTAC. Claro, as pessoas podem ficar cansadas se os bancos continuarem a extorquir os governos, se continuarem a atacar os Estados e exigir cortes dos direitos para avançar. E eu seria o primeiro a ser favorável a medidas muito mais contundentes. Porque se eles são insaciáveis, a paciência das pessoas tem os seus limites.

Fontes: Rebelion,
Links úteis: Juan Torres López, ATTAC Espanha, ATTAC Portugal, Bankrun 2010
Tradução: Informação Incorrecta 

4 Replies to “Cantona e os bancos: 7 de Dezembro”

  1. Portanto voltamos à descentralização como sugerido anteriormente, parece ser o primeiro passo a dar para sair desta situação. O que implica saída da UE, do euro e qualquer outra organização que ameace a nossa soberania.

    Outro ponto importante é que independentemente da acção que tomemos só podemos corrigir os erros do sistema se nos educarmos sobre os mesmos, caso contrário corremos o risco de repeti-los. Nesse aspecto e no que toca à maioria do povo estamos bem atrasados!!!!

  2. Olá Nuno!

    Fico feliz pelo facto que se volte a falar de descentralização, pois é uma minha velha fixação.

    Sair da Europa? Sair DESTA Europa si, sem dúvida.
    O problema é que parece não ser fácil.
    Parece. É o que estou a tentar perceber.
    O que ouvimos é que sair do Euro seria um suicídio e eu gostaria muito de saber qual a verdade.
    A situação de Portugal nos anos '80 (primeira intervenção do FMI) era melhor da actual?

    Abandonar o projecto europeu? Sou contrário. Pode parecer um paradoxo sendo a favor da descentralização, mas não é: é só questão de moldar a União na forma correcta.
    Afinal Juan Torres Lopez, o professor do artigo, não condena o Euro, mas os bancos.

    "[…]só podemos corrigir os erros do sistema se nos educarmos sobre os mesmos, caso contrário corremos o risco de repeti-los."

    Não tinha pensado nisso, mas é bem verdade.

    Mas alguma vez ouviste os média explicar como funciona o sistema bancário de verdade?
    Não. Melhor pessoas ignorantes, que não possam fazer perguntas complicadas.
    No entanto, como afirmado no artigo, "Não existe hoje um aspecto fundamental da vida social movido sem a influência dos bancos."

    E também isso é bem verdade.

  3. A economia devia ser disciplina obrigatória, nem que seja para o cidadão comum saber gerir o que ganha, saber poupar e saber fazer crédito responsável.

    Actualmente do que vou vendo pelos meus sobrinhos penso que a escola já faz isso um pouco, já dá noções básicas de economia, muito para além do simples "saber fazer trocos" que chegava há duas décadas atrás.

    Vejo as pessoas surpresas sobre como funciona o sistema de reservas, quando deveria ser facto comum. A verdade é que o sistema permite que a economia de um país cresça a um ritmo muito mais acelerado com vantagens para todos, sejam eles devedores ou credores. Mas é preciso que exista responsabilidade, o que tem faltado tanto de um lado como de outro (credores e devedores).

Obrigado por participar na discussão!

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