A fome de uns, a riqueza de outros

Porque o preço do pão aumentou?
Culpa duma má colheita?

Talvez. Ou talvez não.

Nós gastamos mais, mas alguém pode ganhar com isso.
Quem? Bancos. Sempre eles.

Goldman Sachs, Deutsche Bank, Meryll Lynch: estes nomes dizem algo? Pois.

O que segue é um excelente artigo de Johann Hari, publicado nas páginas do The Independent.
Hari é um jovem jornalista britânico, descreve-se como um “democrata social europeu, que acredita que os mercados são uma ferramenta essencial para gerar riqueza, mas que devem ser acompanhados por fortes governos democráticos e fortes sindicatos ou podem tornam-se desastrosos”.

O blog de Johann Har pode ser encontrado neste link.

Agora vamos ler o artigo.

Sugestão: ler com muita calma e memorizar o conteúdo, pois aqui está explicado como funciona o mundo hoje.

Como a Goldman apostou na fome

Provavelmente os leitores pensam que a própria opinião sobre Goldman Sachs e as fileiras dos seus aliados em Wall Street atingiu insuperáveis níveis de desgosto. Errado. Há mais.
Descobriu-se que a mais destrutiva das acções mais recentes foi mal discutida.
E aqui está o resto. Esta é a história de como algumas das pessoas mais ricas do mundo, Goldman, Deutsche Bank, os do Meryll Lynch e outros, causaram a fome de algumas das pessoas mais pobres do mundo.

Tudo começa com um mistério aparente. No final de 2006, os preços dos alimentos em todo o mundo começam a subir, de forma súbita e estratosférica. No prazo de um ano o preço do trigo aumentou 80%, do milho 90%, o do arroz em 320%. Com uma vaga de fome em todo o mundo, 200 milhões de pessoas, muitas delas crianças, não tinham mais alimentos, mergulhadas na fome e na desnutrição.

Houve motins em mais de 30 Países e pelo menos um governo foi derrubado pela violência. Então, na Primavera de 2008, de forma igualmente misteriosa, os preços recuaram para os níveis anteriores. Jean Ziegler, relator especial da ONU para o Direito à Alimentação, define isso como um “silencioso assassinato em massa”, devido inteiramente às acções do homem.

No início deste ano eu estava na Etiópia, um dos Países mais afectados, e ali as pessoas lembravam da crise alimentar, como se tivessem sido atingidas por um tsunami. Disse uma mulher da minha idade chamada Abib Getaneh:

Os meus filhos pararam de crescer. Sentia-me como se tivessem derramado ácido da bateria no meu estômago tanta era a fome. Retirei as minhas duas filhas da escola, endividei-me. Se tivesse prosseguido acho que teria sido a morte.

A maioria das explicações que foram na altura revelaram-se falsas. Isso não aconteceu porque a oferta entrou em colapso: o International Grain Council, por exemplo, diz que a produção mundial de trigo é realmente cresceu naquele período.

E não aconteceu porque a demanda cresceu: como demonstrado pelo professor Jayati Ghosh, do Center of Economic Studies de Nova Deli, a procura na verdade diminuiu 3%. Outros factores, como o aumento dos biocombustíveis ou o pico do preço do petróleo, têm ajudado, mas sozinhos não foram para explicar uma mudança tão violenta.

Para entender melhor a causa, é preciso escavar através de alguns conceitos que podem provocar dor de cabeça; mas nem metade de quanto podem doer no estômago do mundo pobre.

Por mais de um século, os agricultores dos Países ricos empenharam-se num mecanismo que os protegia contra os riscos. A Farmer Giles pode acordar já em Janeiro para vender a um preço fixo as próprias colheitas em Agosto. Perante uma boa temporada perde um pouco de dinheiro, mas com uma Verão mau ou se o preço global cair muito, então é um bom negócio. Na altura em que este processo era rigidamente regulamentado e só as empresas com um interesse directo no campo podiam estar envolvidas, tudo funcionava.

Então, durante os anos ’90, a Goldman Sachs e outros fizeram muita pressão e a regulamentação foi abolida. De repente, estes contratos foram transformados em “derivativos” que poderiam ser comprados e vendidos por comerciantes que não tinham nada a ver com a agricultura. Tinha nascido o mercado da especulação dos alimentos.

Assim, a Farmer Giles ainda aceita vender a própria colheita com antecedência a um negociante para 10.000 libras. Mas agora, esse contrato pode ser vendido aos especuladores, que tratam o contrato como um meio de riqueza potencial. A Goldman Sachs pode compra-lo e revende-lo por 20.000 libras ao Deutsche Bank, que por sua vez, vende a Merrill Lynch por 30.000 libras; e assim por diante até que a coisa nem parece estar relacionada com a colheita da Farmer Giles.

Parece uma mistificação? De facto é uma mistificação.

John Lanchester, na excelente guia para o mundo financeiro, “Whoops! Porque todos devem a todos e ninguém pode pagar “, explica:

A Finança, como outras formas de comportamento humano, passou por uma mudança no século XX, o equivalente do surgimento do modernismo nas artes, uma ruptura no sentido comum, um virar-se para a auto-referência e abstracção, noções que não poderiam ser explicadas na linguagem quotidiana. A poesia encontrou a própria ruptura com o realismo quando T.S. Eliot escreveu “The Wasteland”. A Finanças encontrou o próprio Wasteland na década de 1970, quando começou a ser dominada por complexos instrumentos financeiros que as pessoas não compreendem inteiramente.

Então, o que isso tem a ver com o pão no prato de Abiba? Até a desregulamentação, o preço dos alimentos era determinado pelas forças da oferta e da procura de alimentos (e já era profundamente imperfeito: um bilião de pessoas com fome). Mas após a desregulamentação, não era apenas um mercado de alimentos. Tornou-se, ao mesmo tempo, um mercado de contratos alimentares com base em hipotéticas colheitas futuras, em que os especuladores aumentavam os preços sem vergonha.

Aconteceu assim. Em 2006, os especuladores financeiros, tais como Goldman Sachs, salvaram-se do colapso do mercado imobiliário americano. Calcularam o seguinte: ao longo da crise económica os preços dos alimentos teriam ficado parados ou até teriam subido, enquanto o resto da economia entrava em colapso; portanto transferiram os próprio fundos.

De repente, os investidores de todo o mundo, ficaram assustados, e entraram nesta mesma área.

Assim, enquanto a procura e a oferta de alimentos permaneceu mais ou menos na mesma, a oferta e a demanda de instrumentos financeiros derivados com base em alimentos aumentaram maciçamente; o que significa que os preços subiram em uníssono e começou a fome. A bolha estourou em Março de 2008, quando a situação nos Estados Unidos tinha-se tornado tão negativa que os especuladores tiveram que reduzir fortemente as próprias despesas para cobrir as perdas.

Quando perguntei ao porta-voz da Merrill Lynch para comentar a acusação de ter causado a fome em massa, disse: “Ah. Eu não sabia nada”. Depois enviou um email a dizer “Recuso comentar o assunto”.

A Deutsche Bank também evita comentários.

Goldman Sachs foi mais detalhada, informando que venderam os próprios índices de acções no início de 2007 e declarando que “sérias análises […] concluíram que os fundos dos índices não causar uma bolha nos futuros preços das mercadorias”, oferecendo como prova uma declaração da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico, NDT].

Como sabemos que isso está errado? Como afirmado pelo professor Ghosh, algumas culturas não foram introduzidas nos mercados dos futures [os derivados, NDT], incluindo milho, mandioca e batata. O preço destes artigos subiu um pouco no mesmo período, mas apenas uma fracção dos bens atingidos pela especulação. As suas pesquisas mostram que a especulação foi “a causa principal” do aumento.

Então chegamos até aqui. Os especuladores mais ricos do mundo criaram um casino onde as apostas são os estômagos de centenas de milhões de pessoas inocentes. Apostaram no crescimento da fome, e ganharam. O que isto significa em relação ao nosso sistema económico e político que pode tão casualmente infligir tanta dor?

Sem regras, será apenas uma questão de tempo antes que aconteça novamente. Quantas pessoas estarão mortas a seguir? Os movimentos para restaurar as regras da década de’ 90 sobre o comércio das necessidades básicas têm sido muito lentos. Nos EUA, a Casa Branca passou uma espécie de regulamentação, mas teme-se que o Senado, que goza das doações dos especuladores, possa dissolver tudo no meio da loucura.

A União Europeia está a ficar para trás nisso também, enquanto na Inglaterra, é há lugar a maioria parte do comércio europeu, grupos de pressão estão preocupados que o governo de David Cameron possa bloquear a reforma completa para agradar aos seus amigos e doadores da City.

Só uma força pode travar uma outra bolha de fome e a especulação. As pessoas honestas dos Países desenvolvidos precisam falar mais alto do que o lobby da Goldman Sachs. O World Development Movement está a promover este Verão uma semana de pressão, enquanto são tomadas as decisões cruciais: podem enviar um SMS com o texto WDM 82055 para descobrir o que você pode fazer.

A última vez que falei com ela, Abib disse:

Não podemos voltar a viver aquilo outra vez. Por favor – certifique-se que não haverá nunca, nunca mais uma coisa assim.

Fonte: The Independent
Tradução: Informação Incorrecta

2 Replies to “A fome de uns, a riqueza de outros”

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