A constipação do Presidente

Leitores aborrecidos fechados em casa? Tranquilos, eis que Informação Incorrecta propõe algo diferente para trazer a alegria nas vossas casa e tornar a prisão mais simpática.

A seguir está um resumo do conto de James G. Ballard, The Secret History of World War 3 (“História secreta da Terceira Guerra Mundial” de 1988). Narra um episódio pós-moderno, tão provável quanto não, no qual Ballard destaca, para usar as suas próprias palavras, “o casamento entre a razão e o pesadelo”.

Ballard, que tinha previsto a presidência Reagan com onze anos de antecedência, aqui delicia-se com o relato imaginário e imaginativo de um terceiro mandato. Quaisquer ligações a eventos actuais são da responsabilidade da inteligência do Leitor.

Boa leitura.

Agora que a Terceira Guerra Mundial terminou, e a segurança reina suprema, sinto-me no direito de expressar a minha opinião sobre dois aspectos importantes deste terrível caso.

A primeira observação é a seguinte: o confronto nuclear, que o mundo esperou e temeu durante tanto tempo e que, todos estavam convencidos, deveria ter destruído toda a vida no nosso planeta, na verdade durou apenas quatro minutos. Surpreendente como pode surpreender os leitores, a Terceira Guerra Mundial teve lugar entre as 18:47 e as 18:51 Hora Padrão Oriental, em 27 de Janeiro de 1995. A duração total das hostilidades, desde a declaração formal de guerra do Presidente Reagan, o lançamento de cinco mísseis nucleares de submarinos (três americanos e dois russos), até às primeiras tentativas de paz e depois o armistício acordado entre o Presidente e o Sr. Gorbachev, não demorou mais do que 245 segundos. A Terceira Guerra Mundial já tinha terminado antes que alguém tivesse tempo para entender que tinha começado.

A segunda característica excepcional da Terceira Guerra Mundial é que eu sou praticamente a única pessoa no mundo que sabe que aconteceu. Pode parecer estranho que um pediatra na pequena cidade de Arlington, a poucos quilómetros a leste de Washington D.C., seja o único que está ciente de um acontecimento histórico desta magnitude. Afinal, as notícias sobre o aprofundamento da crise política, a dolorosa declaração de guerra do Presidente e a subsequente troca de mísseis nucleares, são factos que o público pôde conhecer graças às transmissões televisivas em todo o País. A Terceira Guerra Mundial não era segredo. Mas a atenção das pessoas foi voltada para questões mais importantes… O facto de eu ser o único que aprendeu sobre a guerra parece-me relacionar-se com as estranhas características da terceira Presidência Reagan.

Naquela época, no verão de 1994, Ronald Reagan tinha oitenta e três anos de idade, mostrando todos os sinais de avançada senilidade. Como muitos idosos, ele tinha, durante o dia, alguns minutos de relativa lucidez, durante os quais pôde proferir algumas sentenças, e o resto correu num vítreo crepúsculo. Os seus olhos estavam demasiado agredidos para ler as sugestões, mas os seus assistentes tinham aproveitado o aparelho auditivo, que o Presidente sempre tinha usado, para inserir um microfone microscópico, para que nos seus discursos pudesse repetir como um estudante tudo o que entrava no seu auricular. Olhando para esta figura robótica, com os seus sorrisos alucinados e as suas expressões de parvo, alguém começou a perguntar-se se o Presidente ainda estava no seu perfeito juízo, ou mesmo se ele estava realmente vivo. Para tranquilizar o público americano, nervoso e desorientado por um mercado em declínio e pelas notícias da insurreição armada na Ucrânia, os médicos da Casa Branca começaram a fazer circular uma série de boletins regulares sobre a saúde do Presidente. O pessoal da Casa Branca decidiu dar aos boletins médicos uma frequência semanal. Wall Street respondeu positivamente, e as pesquisas de opinião até mostraram uma forte recuperação do Partido Republicano. Em ocasião das eleições para o Congresso, os boletins médicos foram distribuídos diariamente e os candidatos republicanos obtiveram a maioria na Câmara e no Senado, graças às boas notícias sobre as entranhas do Presidente na véspera da votação.

A partir daquele momento, o público americano ficou inundado de informações sobre a saúde do Presidente. Uma série de edições sucessivas ao longo do dia relatou aos telespectadores os efeitos secundários de um leve resfriado ou os benefícios na circulação de um mergulho na piscina da Casa Branca. Nas semanas que se seguiram, graças ao milagre da telemetria radiofónica, as telas de televisão de todo o País tornaram-se um painel de avaliação que registava todos os detalhes das funções físicas e mentais do Presidente. O seu batimento cardíaco corria ousado e um pouco cintilante na faixa inferior da tela, enquanto acima os comentadores debruçavam-se sobre os seus exercícios físicos diários, os oito metros e meio que caminhado no jardim das rosas, o equilíbrio calórico do seu modesto almoço, os resultados da última análise cerebral, dados sobre a actividade dos seus rins, fígado e pulmões.

Para tornar a identificação entre o Presidente, o público e as telas da televisão mais completa, um objectivo que os seus assessores políticos há muito vagueavam, a equipe presidencial trabalhou arduamente para ampliar o leque de informações a serem divulgadas. Logo um terço dos ecrãs das televisões do País foi ocupado pelos gráficos da frequência cardíaca, pressão arterial e electroencefalogramas.

Indiferente a este fluxo de informações médicas, os eventos no mundo real continuaram a cair perigosamente para baixo. Estes eventos ameaçadores, e a probabilidade da Terceira Guerra Mundial, coincidiram, infelizmente, com uma ligeira deterioração da saúde do Presidente. Um resfriado comum atacou Reagan através dum neto que o tinha visitado no dia 20 de Janeiro, e apagou todas as outras notícias dos aparelhos de televisão. Um exército de jornalistas e operadores de câmara acampados em frente à Casa Branca, enquanto uma task force de especialistas dos principais institutos de investigação do País ocupava todos os canais fazendo declarações e fornecendo interpretações de dados médicos.

Como outros cem milhões de americanos, Susan passou a semana seguinte em frente à televisão, com os olhos fixos na batida do coração de Reagan. “É isto, é a guerra”, eu disse à Susan, e abracei-a. Mas ela estava a olhar no ecrã para o traço errático do coração. Desliguei a televisão e encostei-me ao sofá naquele estranho silêncio. Um pequeno helicóptero sobrevoava os céus cinzentos de Washington. Como se estivesse a reflectir, disse à Susan: “Já agora, a Terceira Guerra Mundial acabou”. Entretanto, o mundo tinha-se tornado um lugar mais seguro. A rápida troca nuclear tinha servido como um aviso a todas as facções em luta na face do planeta. Os movimentos secessionistas na União Soviética tinham-se dissolvido, em outras áreas os exércitos invasores haviam recuado atrás das fronteiras.

Eu quase teria acreditado que a Terceira Guerra Mundial tinha sido acordada entre os funcionários do Kremlin e da Casa Branca como um meio para restaurar a paz, e que a constipação de Reagan era apenas uma diversão, uma armadilha na qual jornais e televisão tinham caído sem se aperceberem.

 

Ipse dixit.

Fonte e texto completo (em inglês): Presidencial Writings

5 Replies to “A constipação do Presidente”

  1. https://www.youtube.com/watch?v=5_0iPtSxZU4 Desculpa Max, mas não consigo tirar os olhos dos acontecimentos que se sucedem minuto a minuto, e cada vez a situação piora. A partir de hoje o presidente tem amplos poderes sobre orçamento e as finanças no Brazil, solicitação aprovada pelo Supremo Tribunal Federal. O dito neste link expressa claramente a situação brasileira. Embora demore 5 horas, a primeira parte inútil, a segunda dedicada à vinculação entre petróleo e a indústria farmacêutica, a terceira parte onde o diretor do blog fala com sensatez sobre as denúncias que ora recaem sobre o Didier Raoult, e na última, esta sim importantíssima sobre o que vai pelo Brazil.. Quem quiser saber a situação brasileira procure ouvir a última parte, pelo menos deste link.
    Quanto a mim, continuo abestalhada com as vantagens políticas que este pessoal dono da palavra consegue tirar, o pânico em torno de uma enfermidade cujas baixas equivalem às baixas de outros anos, sem nenhum alarde, a explicação dita ao exagero que os sistema de saúde vai colapsar e isso só acontece com o Corona, quando ano a ano o serviço de saúde público é sucateado. Então entende-se porque este ano o sistema vai colapsar. Ninguém diz que a metade dos leitos hospitalares está no sistema privado que serve a 20% da população enquanto o resto, e é o r-e-s-t-o mesmo se amontoa no serviço público, atendido por médicos que trabalham para o SUS recebendo muitas vezes 2000 reais por mês, e portanto pulando de galho em galho para juntar mais um dinheirinho, técnicos de enfermagem, enfermeiros, e toda raia miúda.

  2. Olá Maria!

    Sorte vossa que têm um Presidente como Bolsonaro, tomara houvesse um Bolsonaro em cada País! Eheheheheh…

    Brincadeiras à parte, a coisa divertida é que basicamente Bolsonaro tem razão: esta não é a Peste Negra e tem que ser encarada com racionalidade. Só que erra redondamente nos modos, que são péssimos. O que não é novidade.

    Bolsonaro tem agora amplos poderes sobre orçamento e finanças no Brasil? Quem foi a gritar nas varandas, a bater panelas, pedindo mais medidas? Nas imagens que vi não era Bolsonaro. Agora o Presidente explora a situação, como era lícito esperar. O que os Brasileiros têm que perguntar-se é: quem foi que alimentou o pânico?

    Por qual razão Lula fala de Bolsonaro como de “alguém seja tão irresponsável de brincar com a vida de milhões de pessoas como ele está brincando”? O que quer Lula? Fazer como o Governador de Rio, fazer como na Europa toda? Cidadãos fechados em casa? Lojas e empresas fechadas? E por qual razão?

    “Depois que a gente salvar o povo, a gente vai discutir como salvar a Economia, como fazer o País voltar a crescer” continua o ex-presidiário. Mas “salvar o povo” de quê? Bolsonaro, que é uma anedota, nesta altura está certo: tenta salvar povo e economia dum pânico que em nada ajuda.

    Bolsonaro não quer fechar as escolas? E faz bem.
    Bolsonaro não quer fechar lojas e empresas? E faz bem.
    Bolsonaro quer isolar apenas as categorias em risco? E fez bem.

    “O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar, empregos devem ser mantidos, o sustento das famílias deve ser preservado, devemos, sim, voltar a normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e confinamento em massa” diz ele. E tem toda a razão.

    Quantos mortos teve o Brasil por causa do COVID-19 até agora? Uma centena ou pouco mais? E isso sem nenhuma medida séria de prevenção ou contenção? Sabem quantos brasileiros morreram no ano passado de gripe sazonal? 1.109. Alguém foi à janelas a bater as panelas? É provável que o COVID-19 ultrapasse este total, provavelmente ficará mais próximo dos mortos por H1N1 onde, no entanto, ninguém foi forçado a ficar fechado em casa.

    O problema é que Bolsonaro como político é uma desgraça. Deveria ter tido bem outra atitude: explicar e não ladrar aos microfones. Evitar de cair no velho vício brasileiro onde tudo, mas tudo mesmo, é politicizado até as extremas consequências. E agora é tarde demais, COVID-19 já é causa de guerra política no Brasil (e não poderia ter sido de forma diferente).

    Não gosto de Bolsonaro, que acho ser indivíduo extremamente limitado (uma ligação à IURD é o pior cartão de visita por qualquer ser humano). Mas neste assunto específico escolheu não ceder ao pânico, não atirar toda a nação brasileira para uma paralisia que em nada ajuda. Custa dizê-lo, mas está a escolher o rumo certo. Até agora. Amanhã vamos ver: difícil que possa resistir às pressões não apenas vindas do interior do Brasil.

    No entanto, repito, perguntem-se porque outros partidos, supostamente “amigos do povo”, limitam-se a alimentar o medo.

    1. Caro Max, esse presidente fake só se posicionou mais radicalmente pelo fim das medidas restritivas , após reclamação dos setores que o apoiam: o dono da Havan ( loja de departamentos , leia-se lavanderia ) , os bispos das igrejas neo pentecostais ( e$tão preocupado$ , porque $eu$ fiei$ e$tão $em culto$ ) e os lideres da FIESP.

      Além disso , o Bozo tenta sua ultima cartada para retomar a popularidade.

      Sim, ele não deixa de estar certo, mas ao invés de procurar a discussão com demais poderes e lideranças, e como deveria fazer um presidente decente, buscar formas para que se minimize o impacto sobre a população idosa e grupos de risco, ele explora a fragilidade da situação, demagogicamente e arrogantemente na sua melhor maneira bolsonaro de ser.

      Quando acabar tudo isso , o presidente fake, vai estar rindo a toa . Sairá como o defensor dos pobres e com aval do congresso ( até 31 de Dezembro ) para gastar a vontade, sem precisar cumprir as metas orçamentarias. Enquanto a pobreza vai receber R$ 600, ele vai ( desculpe a expressão ) encher o cú de dinheiro dos seus parceiros ( bancada BBB do congresso ) e vai ganhar novos amiguinhos, ao socorrer generosamente a industria da aviação e turismo. Afinal, as eleições de 2022 estão aí.

  3. Olá Max: existe uma falsa dicotomia vida x economia que repercute no mundo inteiro. Claro que países miseráveis não podem deixar as mil formas de trabalho para trás e atirar-se no sofá conversando virtualmente com os amigos, como fazem os que podem por aqui. Só que Bolsonaro não usa os argumentos certos porque não sabe e, na realidade a única coisa que lhe interessa é manter o apoio dos grandes comerciantes , e tocar a boiada para o jugo. Por outro lado eu tenho observado que quem meche os cordéis está interessado em tirar proveito o máximo possível esse pandemônio. Muitos já falam da re incidência da doença e que esse problema terá inúmeras vagas de pandemia, outros não deixam descansar nem os imunes, afirmando que o tratamento acaba com os pulmões do indivíduo e, fatalmente os levará para o caixão. Como a maioria absoluta dos mortais teme a morte, acima de tudo, o pânico é o que dita a vida social., enquanto os espertos recolhem vantagens políticas e econômicas Estou farta disto.

  4. Fecho com os 2 comentários anteriores, e acrescento: quem duvida de que a intempestividade do Bolsonaro não estar a ser usada justamente como um elemento a mais na sopá do caos? Pq, vamos combinar, ele se manifesta como se o problema do tal vírus fosse restrito ao Brasil…

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