Cesare Battisti, uma escada e uma portagem

Estava a ler o blog de Gilson Sampaio, um bom blog por acaso (link: Gilson Sampaio), quando reparei na presença dum link à direita: Liberdade para Cesare Battisti. E foi como viajar no tempo.

Os leitores de Informação Incorrecta que me perdoem: não costumo inserir assuntos privados neste blog, que nasce com outros fins.

Mas talvez este não seja um assunto assim privado, especialmente agora, uma altura em que há uma crise social bastante forte na Europa. Uma altura em que a ideia da revolta (contra o sistema, as instituições, o Estado, as multinacionais, contra tudo) pode voltar ou aparecer, pela primeira vez, nas mentes de quem está descontente, frustrado: porque trabalha-se em troca de pouco e mesmo assim quem trabalha pode ser considerado sortudo.

Que tem a ver isso com Cesare Battisti?
Quem escreve aqui é um italiano que há alguns anos (não muitos), vive em Portugal. E um italiano que lembra da época do terrorismo no próprio País. Na altura eu era muito novo, “apanhei” só os últimos anos de terrorismo que acabou no final da década de ’80. Mesmo assim algo ficou. E quando li “Liberdade para Cesare Battisti” a primeira reacção foi “O quê?”. Porque é mesmo verdade: para perceber certas coisas é preciso vive-las.

Não me interessa a política. Do meu ponto de vista o que faz girar o mundo é a economia, talvez seja por isso que permaneço indiferente aos discursos dos “representantes do povo”. E não é um acaso de Informação Incorrecta ser um blog declaradamente apolítico. Aqui nunca poderão encontrar a propaganda deste ou dum outro partido…

Sei que muitos leitores de Informação Incorrecta têm ideais políticas, até bem radicadas. Vou perder público por isso? Paciência. Sobre certos assuntos não estou disposto a tratar.

Isso para explicar uma coisa simples: não julgo o terrorismo com os olhos de uma ideologia. Julgo com os olhos de quem viu as poças de sangue no passeio. O que é diferente.

Cesare Battisti em juventude fez parte dos PAC, Proletari Armati per il Comunismo (Proletários Armados pelo Comunismo), um entre as centenas de grupos terroristas que existiam na altura.

Battisti, hoje escritor, participou em quatro homicídios:

  • 6 de Junho de 1978, com uma cúmplice, mata Antonio Santoro, guarda prisional, acusado pelo PAC de tratar mal os reclusos.
  • 16 de Fevereiro de 1979 participa como cúmplice no homicídio de Lino Sabbadin, um talhante que tinha-se oposto ao assalto da própria loja.
  • 16 de Fevereiro de 1979, no mesmo dia organiza o assalto a uma joelharia: durante o roubo é morto o dono da loja, Pierluigi Torregiani,  enquanto o filho Alberto é atingido é fica paralisado.
  • 19 de Abril de 1979, participa no assassinato de Andrea Campagna, agente da Digos, uma esquadra especial da polícia italiana.

Passaram 30 anos desde estes homicídios e o época do terrorismo (os “Anos de Chumbo”, como ainda são conhecidos) acabou.
É justo perseguir um homem após todo este tempo? Não seria melhor voltar página e esquecer tudo? Não sei.

Lembro dum dia, um dia como outros, no qual ia a pé até a minha escola. Passo com a minha pequena pasta cheia de livros e cadernos pela rua que costumo percorrer enquanto na boca o sabor da pasta dentífrica ainda se mistura ao café com leite bebido à pressa.

É um dia como os outros, mas ao mesmo tempo é diverso dos outros, pois reparo que não há o barulho dos autocarros e as poucas lojas já abertas têm os donos à porta. Caras esquisitas, olhos abertos.e avermelhados. E muita polícia.

Ninguém repara num dos tantos pequenos garotos que vão para a escola, assim posso aproximar-me, não muito mas o que basta para poder entrever no meio da confusão a grande escada de ardósia e pedras vermelhas que conheço tão bem. Pois lá em cima, onde a larga escada acaba, há um velho jardim com os bancos de madeira pintada donde é possível olhar para os tectos da cidade.

Mas o que há para ver hoje não está lá em cima, mas aqui em baixo. No chão, traços de gesso branco e grandes manchas de sangue.
Onde há o gesso havia os corpos de dois carabinieri: tinham saído dum café logo após o pequeno almoço e pararam para sempre na grande escada que leva ao miradouro.

Os militares na rua, os noticiários com intermináveis listas de assassinatos, as sirenes das ambulâncias, as escritas nos muros, o medo. Os mortos.

Na altura as organizações terroristas falavam de “unidade do proletariado com os povos progressistas na luta contra o imperialismo”, “transformar a luta do proletariado para a conquista do poder politico e a ditadura do proletariado”, “atingir o coração do Estado”, e outras coisas ainda.
Idiotices. Estes eram assassinatos.
Podemos pinta-los com o verniz ideológico mais brilhante, mas restam o que sempre foram: assassinatos.

Pode uma ideologia justificar os assassinatos?
Qual credo político pode cegar os homens ao ponto destes não perceberem que quem cai debaixo dos tiros das pistolas não é o Estado, não é o imperialismo, não é a multinacional: mas é um homem que levantou-se de manhã, cedo, cumprimentou a esposa, beijou a filha, saiu de casa e morreu ao terminar o pequeno almoço, à porta dum café.

Qual ideologia, seja de esquerda ou de direita, pode ser assim desumana e obtusa ao mesmo tempo?
Qual ideologia pode pensar que ao fazer explodir um comboio cheio de imigrantes poderá obter o apoio popular?
Qual ideologia é, por sua vez, assim cega que não entende o que um garoto pode entender: matar é mau, sempre.

Mas acabaram, podem dizer, os Anos de Chumbo acabaram.

Sim, verdade, acabaram. Cesare Battisti há muito trocou a pistola pela caneta, percebeu que a melhor forma de mudar o sistema não é matar pessoas mas espalhar ideias. ele teve uma oportunidade. Outros não.

Lino Sabbadin, o talhante, não teve a mesma oportunidade de Battisti. Pois Battisti tirou à Sabbadin todas as oportunidades com uma de pistola.

Ao reivindicar o assassinato do comerciante, os PAC escreveram:

Nós somos os Proletários Armados pelo Comunismo, que atingiu os agentes da contra-revolução Sabbadin e Torregiani. Em sinal de solidariedade com o “pequeno crime” que com os roubos leva em frente a necessidade duma adequada re-apropriação dos rendimentos e da recusa do trabalho.

Tinham morto um homem em sinal de solidariedade com o “pequeno crime”. Com esta facilidade.
E com a mesma facilidade hoje podemos dizer: voltamos página.

Mas Adriano Sabbadin, o filho do talhante, que viu assassinar o pai na loja, nunca voltou página. Tinha perdido o pai, e perdido para sempre. Ninguém pôde dizer ao Adriano “muda de página”, o pai nunca voltou.

Nem Antonio Santoro, o guarda prisional, teve oportunidade de mudar de vida ou de virar página.
Nem o agente da Digos, Andrea Campagna. Nem o joelheiro Pierluigi Torregiani.

Hoje sobram as fotografias a preto e branco, como as que podem ver nesta página. E as recordações de quem já garoto não é.
Mas também uma dúvida: é justo que um homem, após ter tirado a vida de outras pessoas, possa continuar a própria existência sem pagar nada?

Mesmo ao atravessar uma ponte pagamos a portagem: quatro vidas valem menos duma ponte? O facto de ter lutado por uma ideologia justifica isso?

Nota final

Segui o link no blog de Gilson e acabei numa página onde é possível ler esta frase:

Como o Passa Palavra refere no recente artigo “Libertação de Cesare Battisti: dilemas e problemas”, esta luta não é separável do contexto de criminalização dos movimentos sociais que se vive agora no Brasil e no mundo.

Movimentos sociais? Meus amigos, vocês não sabem mesmo do que estão a falar. E nem vou gastar o meu tempo com respostas para todas (e são muitas) as idiotices afirmadas no citado artigo. Só faço votos para que possam estar do lado certo no dia em que um membro destes “movimentos sociais” (de qualquer cor) apertar o gatilho.

Nota finalíssima

Tudo isso nada tem a ver com o blog de Gilson, que recomendo!

 

Ipse dixit

One Reply to “Cesare Battisti, uma escada e uma portagem”

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