As epidemias de dança em tempo de stress

Num dia de Julho, Frau Toffa saiu da sua casa em Estrasburgo e começou a dançar na rua, aparentemente sem razão. A coisa continuou e, no prazo de uma semana, as pessoas já eram trinta e quatro. Depois dum mês eram 400 a dançar sem razão aparente. Hoje em dia diríamos “Oh, nada de grave, são os gajos do Parlamento Europeu”. Mas em 1518 Estrasburgo ainda não era uma das duas sedes da neuroinstituição, então a coisa torna-se mais curiosa.

Conta Wikipédia que tudo sabe:

Muitas dessas pessoas eventualmente pereceram de ataque cardíaco, derrame cerebral ou exaustão.

Documentos históricos, incluindo “observações médicas, sermões catedráticos, crônicas locais e regionais, e mesmo notas divulgadas pelo conselho municipal de Estrasburgo” esclarecem que as vítimas estavam a interpretar passos de dança e não apenas se contorciam de forma aleatória. O motivo de essas pessoas dançarem obstinadamente até a morte nunca foi identificado.

Enquanto a epidemia se espalhava, nobres locais, preocupados com a situação, procuraram o conselho de médicos da região, que descartaram a possibilidade de causas astrológicas ou sobrenaturais, diagnosticando o problema como uma “doença natural” provocada por “sangue quente”. Ao invés de prescrever a sangria, as autoridades no entanto incentivaram as pessoas a continuarem a dançar, abrindo dois salões, um mercado de grãos e até mesmo um palco de madeira no local do fenômeno. Isso foi feito na crença de que os dançarinos só se recuperariam se continuassem a dançar dia e noite. Para aumentar a efetividade da cura, as autoridades chegaram inclusive a contratar músicos para manter os afligidos em movimento. Alguns dos dançarinos foram levados a um santuário, onde se buscou uma cura para o seu problema, que naturalmente não foi alcançada.

Aquele de Estrasburgo nem foi um caso único: acontecimentos semelhantes terão ocorrido ao longo da era medieval, incluindo em Kölbigk (Saxónia, Alemanha) no século XI, onde se acreditava que a causa fosse a possessão demoníaca ou o juízo divino. Mas aquele de Estrasburgo continua como sendo o acontecimento mais bem fundamentados, com seis crónicas contemporâneas, das quais quatro identificam Frau Toffa como a primeira pessoa a dançar.

Não se conhece ao certo o número dos óbitos. Algumas fontes (mais tardias) afirmam que durante o período a praga matou cerca de quinze pessoas por dia, mas os registos da cidade de Estrasburgo na altura dos acontecimentos não mencionam o número de mortes ou mesmo se houve vítimas mortais: não parece haver quaisquer fonte contemporânea aos acontecimentos que faça notar fatalidades.

Explicações? Há, um par delas.

Ergot

Alguns acreditam que a dança poderia ter sido provocada por intoxicações alimentares causadas pelos produtos químicos tóxicos e psicoactivos dos fungos ergot, que cresce normalmente em cereais utilizados para preparar o pão. A ergotamina é o principal produto psicoactivo dos fungos do ergot; está estruturalmente relacionada com a droga dietilamida do ácido lisérgico (LSD-25) e é a substância a partir da qual foi originariamente sintetizado o LSD-25. O mesmo fungo também foi implicado noutras anomalias históricas importantes, incluindo os processos das bruxas de Salem.

Todavia, num artigo no The Lancet, John Waller argumenta que “esta teoria não parece defensável, uma vez que é improvável que aqueles envenenados pelo ergot pudessem ter dançado durante dias. Nem tantas pessoas teriam reagido aos seus químicos psicotrópicos da mesma forma”. A teoria do ergotismo também não explica porque é que praticamente todos os surtos ocorreram algures ao longo dos rios Reno e Mosela, áreas ligadas pela água mas com climas e culturas bastante diferentes”

Histeria

Mais interessante outra explicação, aquela da “doença psicogénica em massa”, ou seja uma fase de histeria colectiva que envolve muitos indivíduos que exibem subitamente o mesmo bizarro comportamento. Este tipo de reacção poderia ter sido causada por elevados níveis de stress psicológico, provocando pelos anos impiedosos (mesmo pelos padrões rudes da altura) que o povo da região da Alsácia sofria.

Waller especula que a dança era uma “psicose induzida pelo stress” a um nível de massa, uma vez que a região onde as pessoas dançavam estava cheia de fome e doenças, e os habitantes tinham tendência a ser supersticiosos. Sete outros casos de “praga dançante” foram relatados na mesma região durante a era medieval. Esta histeria poderia ter criado uma choreia, uma situação que compreende movimentos aleatórios e intrincados não intencionais que deslocam duma parte do corpo para outra.

Todavia, os cronistas não falam de tais “movimentos aleatórios” mas são bastante específicos em descrever uma verdadeira dança. Então?

Então temos que considerar que estas “epidemias” de dança em massa afligiram várias partes da Europa desde o século VII, surgindo particularmente em tempos de fome, doença e agitação política. Em 1374, homens, mulheres e crianças dançaram nas ruas de Aix-la-Chapelle (França) durante horas, de mãos atadas, gritando, tendo visões do Céu e do Inferno. Uma testemunha ocular, o cronista Peter of Herental, descreveu a cena:

Tanto homens como mulheres foram abusados pelo diabo a tal ponto que dançaram nas suas casas, nas igrejas e nas ruas, segurando as mãos um do outro e saltando no ar. […] Aqueles que foram curados disseram que pareciam dançar no meio dum rio de sangue, e foi por isso que saltavam no ar.

Sempre segundo Peter of Herental, outro acontecimento parecido teve lugar na Bélgica:

O povo de Liège disse que tinha sido atacado desta forma porque não tinha sido verdadeiramente baptizado, na medida em que a maioria dos sacerdotes mantinha concubinas. Por esta razão, a população propôs que se levantassem contra os padres, os matassem e levassem os seus bens, o que teria acontecido se Deus não tivesse providenciado um remédio através dos referidos exorcismos.

Os “dançarinos” eram, na sua maioria, camponeses, criados, artesãos, e donas de casa. Isso é: os pobres, os oprimidos. Só ao ficarem “possuídos” poderiam dar voz à sua fúria, angústia e repugnância contra a hipocrisia dos poderes: sentimentos que não podiam ser afirmados de outra forma, ganhavam vida no baile.

Esta teoria não convence? Pena, pois é tudo o que temos.

 

Ipse dixit.

Imagem: Pieter Brueghel II, Saint John’s Dancers on their way to Meulenbeeck

2 Replies to “As epidemias de dança em tempo de stress”

  1. As sociedades, cada vez mais, sucumbem ao fator PROPAGANDA, não aquela explícita, mas aquela que age em todas direções e se oculta na religião, ciência, meios de comunicação, educação, etc. Recomendo aos interessados pesquisar 2 nomes que estão na origem da propaganda moderna no ocidente, alguns séculos antes do conhecido primo de Freud…
    Christophe Plantin (Christoffel Plantijn); Lodewijk Elzevir.

  2. Olá Max e todos: se nós, hoje, pudéssemos ficar possuídos para reagir às cretinices seria muito bom. Mas hoje existe “especialistas” para tudo, e os possuídos iriam parar nos manicômios em camisa de força, sendo pobres, e tratados com carinho pelos psiquiatras sendo bem apessoados.
    Hoje, onde poucos se dão as mãos para superar aflições, cada um se trata e/ou se mata do jeito que prefere. No medievo escolhiam dançar até morrer, já eu escolheria morrer fazendo outra coisa.
    Mas agora, eu não escolho morrer, escolho lutar, dando as mãos para quem tiver igual objetivo. Nossa tática de guerra é a informação lúcida, mesmo que diversa, desmentir a mentira corrente.
    Por sinal, a guerra que ora aparece, até aos olhos dos menos observadores, é antiga, é preciso que se diga. Em 1992, o governo russo aceitou a OTAN, com a promessa de não cercar a Rússia.
    Em 2007, Putin explicou ao mundo que não aceitaria o cerco militar à Rússia. Não levaram a sério, e continuaram apontando mísseis na vizinhança do país.
    Em 24 de fevereiro do corrente, a guerra apareceu aos olhos dos desavisados. E os mal intencionados, aqueles que sempre quiseram acabar com a Rússia entraram em campo x Rússia.
    E também, diga-se de passagem, salvo a etnia russa na Ucrânia, os demais são simpatizantes do nazismo ( que era o diabo na segunda guerra, os ucranianos ajudaram fortemente o avanço hitlerista nas suas terras, sendo parcialmente responsáveis pelo cerco de Stalingrado). Agora são heróis pelo ocidente. Quem diria! E junto, todo tipo de escória mercenária, treinada e armada no ocidente, a qual é chamada “voluntários” pelo país das liberdades.

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: