A propriedade privada – Parte II

Segunda e última parte (aqui a primeira) do artigo sobre a propriedade privada. Boa leitura!

 

Propriedade Privada e Mercado

Da primeira parte do artigo sobrou uma pergunta: se vivemos numa condição similar neste aspecto, por qual razão os regimes comunistas/socialistas fracassaram e nós ainda aqui estamos?

Entre as várias razões da queda (não apenas uma!), a ausência de p.p. (que era limitada a poucos objectos pessoais) e o excesso de “propriedade pública” desenvolveram um importante papel. A ausência de p.p., como é óbvio, determinou a completa falta dum mercado, instrumento que não tinha sido propositadamente inserido nas experiências do Socialismo Real. O mercado foi combatido de todas as formas nos antigos Países socialistas porque implicava a existência duma p.p. por parte dos cidadãos, algo que fosse possível vender ou comprar (sem p.p., vende-se o quê?): isso representava aos olhos dos mais intransigentes elementos partidários o começo do caminho para a perdição do indivíduo.

A ideia dum mercado capaz de estragar as vidas não estava errada, de todo: é só ver o que acontece com o nosso “livre” marcado. O problema é que o Socialismo Real excedeu os limites, abolindo qualquer tipo de mercado. Como fria doutrina mecanicista qual é, o Comunismo (e o Socialismo também) foi incapaz de determinar as profundas consequências negativas que a sua sociedade teria que enfrentar com o passar do tempo. Iludidos de que o “proletariado” teria conseguido encontrar a via pela felicidade só no trabalho e na reeducação ideológica, os adeptos de Marx e acólitos criaram sociedades alienadas onde os indivíduos era privados de qualquer motivação. Não adiantava trabalhar mais e melhor: o ordenado não teria mudado, a casa teria ficado a mesma, o carro, a roupa, as comodidades… tudo como antes.

O resultado foi um País onde uma restrita cerca de dirigentes (a já lembrada Nomenklatura) controlava uma massa composta por milhões de infelizes escravos (porque o trabalho não era um desejo mas uma obrigação) alcoolizados (pois o álcool era uma das poucas vias de fuga da realidade).

Com o colapso do Muro de Berlim, os alemãs do Leste atiraram-se para as ruas comerciais de Berlim ocidental e ficaram estupefactos com a quantidade de mercadoria e com a variedade dela. Nunca tinham visto algo assim. Aqueles eram os benefícios do mercado e os ex-Comunistas devem ter-se sentido como Alice no País das Maravilhas: não podiam entender de estar a observar a obra dum outro tipo de Nomenklatura, mantida por outro tipo de escravos, que, todavia funcionava mais do que o regime deles.

A propriedade privada das aves. E do urso.

O segundo problema ao falar de p.p. é que demasiadas vezes é vista como lago “artificial”, como uma estrutura criada pelo Homem e, portanto, não natural. O que não corresponde à verdade: a p.p. é terrivelmente natural, ao ponto de ser mais antiga do que o Homem.

Imaginem um casal de aves. São felizes, tiveram uma atitude sexual pornográfica e agora a ave fêmea reparou estar grávida. Mãe Natureza embutiu no cerebrinho da ave macho o projecto para construir um ninho. E a ave macho constrói o ninho, com grande satisfação da ave fêmea que agora tem um lugar onde depositar ovos, acumular comida e proteger-se com os recém nascidos.

Pergunta: é este um ninho comunitário? Acham mesmo que, depois do ninho estar acabado, as duas aves adultas começam a gritar “Venham, temos um ninho para todos, depositem aqui os vossos ovos também no ninho comunitário!”. Não, isso não acontece. Não é um ninho comunitário, é o ninho das duas aves e dos filhotes deles, de ninguém mais: as aves adultas estarão dispostas a morrer caso seja preciso, mesmo perante tentativas de invasão por parte de aves da mesma espécie. O ninho é propriedade privada daquele casal de aves porque estas sabem que só um ninho “privado” aumenta a possibilidade de sobrevivência da descendência. E o discurso está fechado.

Por qual razão Mãe Natureza (que raramente erra) decidiu enfiar naqueles dois pequenos cerebrinhos a ideia segundo a qual o ninho é algo deles e de mais ninguém? Porque o ninho é o lar que protege dos perigos; porque é aí que podem ser acumuladas reservas de alimentos em vista dos períodos de caça mais limitados (quando o casal abandona o ninho só de forma alternada em busca de comida); porque será o ninho a permitir as últimas fases da evolução dos filhotes até estes terem a capacidade de voar. O ninho como propriedade exclusiva das aves significa segurança, protecção, acumulação de recursos, a possibilidade de propagar a espécie.

Isso acontece com as aves e com a grande maioria das outra espécies animais. Há excepções? Claro que há, é sempre possível encontrar excepções para tudo. Mas aqui falamos da regra geral. O Leitor não está convencido? Então procure uma gruta que um urso escolheu para transcorrer o período da hibernação: entre e tente explicar-lhe que afinal a gruta é grande, que não é bonito ser egoísta pois há espaço para todos, que dois ou três ursos ficam mais seguros do que um urso só pois “a união faz a força”, etc.. Aviso desde já: será difícil convence-lo porque o urso parece estar intimamente convencido de que aquela tem que ser a gruta dele e de mais ninguém (caso o Leitor decida ir em frente com a experiência, depois diga como correu, obrigado).

Por qual razão o urso parece ser tão casmurro? Porque foi a Natureza a ensinar-lhe esta atitude: a p.p. é um conceito nascido não com o Homem mais muito antes dele, com a mesma Natureza. A p.p. é motivo de sobrevivência. É por esta razão que a p.p. é um factor vivido tão intensamente pelos seres humanos também: é uma pulsão primária, arcaica, uma das mais antigas.

O filho da propriedade privada: o mercado

Como vimos antes, directa consequência da p.p. é o mercado. Mas afinal o que é isso? Será algo “natural” ou apenas uma criação do Homem? Então como deve ser encarado?

Sendo o Homem mediamente mais inteligente do que uma galinha, um dia pensou: “Aquele pastor tem 10 ovelhas. Eu quero as 10 ovelhas. E só tenho três maneiras para obtê-las. A primeira é matar o pastor. A segunda é rouba-las. A terceira é tratar com ele. Talvez eu tenha algo que poderia interessar ao pastor, talvez poderia ser possível uma troca.” Foi assim que o Homem foi até ao pastor e disse-lhe “Ó estúpido pastor, gosto muito das tuas ovelhas. Vamos fazer uma troca: eu fico com elas e tu ficas com estas cinco bonitas pedras que recolhi no rio aqui ao lado. Gostas, não é?”. O Pastor ficou a pensar uns 45 minutos, depois disse que não. E o Homem teve que mata-lo para ficar com as ovelhas. Não foi bonito, mas algo nasceu: era a ideia de troca ou, de forma mais ampla, de mercado.

O mercado é simples: trocamos algo por outra coisa à qual ambas as partes (vendedor e comprador) reconhecemos um valor: pedras bonitas (mas estas não funcionam com os pastores), conchas, metais precisos, dinheiro. E todos ficam satisfeitos, sobretudo porque a troca permite eliminar qualquer forma de violência durante o processo: não é preciso matar alguém ou roubar-lhe os bens, é só alcançar um acordo para que a p.p. possa passar de mão.

Todavia o mercado não é previsto pelas Leis da Natureza. Mais uma vez: é também possível encontrar excepções no mundo natural, com trocas entre animais, mas não passam disso: de excepções. Alguma vez viram um gato trocar sardinhas por pérolas? Provavelmente não. E a Natureza tinha as suas boas razões quando decidiu não incluir o mercado na dotação de série dos seres vivos: uma das razões era que o mercado é uma faca de dois gumes, podendo criar maravilhas como também profundos e letais desequilíbrios.

O ser humano foi além da p.p. e chegou até a etapa seguinte, aquela do mercado. E aqui começaram os problemas, porque para gerir dignamente o mercado é necessário ser não apenas mediamente mais evoluído do que uma galinha, mas muito mais do que isso; caso contrário, o mercado cria fracturas insanáveis entre os humanos e, por conseguinte, na sociedade dele. Uma das piores consequências duma errada gestão do mercado é sem dúvida aquela exploração dos humanos sobre os humanos que era a paranoia de Marx e acólitos. Sem princípios éticos e morais suficientemente fortes, com uma fraca postura perante os nossos desejos de riqueza e poder, o mercado torna-se uma instituição que pode desequilibrar por completo a sociedade humana, transformando-la no que é hoje: uma barbárie.

Mas é o mercado que cria estas barbáries? Na verdade não pois, como vimos, o mercado é um instrumento e como tal é neutro. Como instrumento é capaz criar barbárie como a nossa mas também de reduzir ou até eliminar a violência, criar emprego, ser um ponto de contacto cultural… o mercado não é nem bom nem malvado, tudo depende unicamente da forma como é utilizado pelo Homem. É aqui que reside o principal dos problemas.

A tentativa comunista de eliminar tanto a p.p. quanto o mercado falhou porque foi apenas a tentativa de eliminar os sintomas, não a causa do problema. Além disso, a condenação contemporânea que a ideologia comunista faz do mercado assenta num pressuposto errado: julga a versão do mercado existida até aqui, aquela que não funciona e nunca funcionou de forma digna. Mas ao utilizar o mesmo princípio, os Comunistas de hoje deveriam também condenar sem apelo o Comunismo porque nos últimos 200 anos as suas vertentes implementadas resultaram em fracassos. É por isso também que a maioria dos partidos de Esquerda no Ocidente passaram a aceitar o mercado: uma sociedade sem este ou sem a p.p. é uma sociedade sem liberdade.

E esta não é uma ideia nova, bem pelo contrário: já no final do ‘700, o jornalista e político Louis Antoine de Saint-Just realçava como propriedade e liberdade estão intimamente ligadas.; : a liberdade não pode durar muito entre aqueles cujas necessidades são menos importantes para eles do que a igualdade.

 

Os problemas da propriedade privada: soluções?

Muito bem: vimos que tanto a p.p. quanto o mercado devem continuar a existir na nossa sociedade futura. Mas isso não resolve um pequeno detalhe: o mercado que conhecemos origina desigualdade, fome, abusos, violência, sofrimento. A “paranoia” de Max e acólitos, aquela exploração do homem sobre o homem, não foi resolvida e até parece ter piorado com o passar do tempo: hoje uma ínfima minoria controla a grande maioria dos Homens: é evidente que não pode haver nenhuma sociedade futura minimamente “melhor” com um mercado como este.

Sendo assim, como resolver?

Querido Leitor, isso vai muito além das minhas capacidades. O máximo que posso fazer é deixar algumas ideias, obviamente sem a certeza de que estejam correctas.

Por exemplo: se a p.p. pode ser justamente considerada um direito de qualquer pessoa, isso não significa que este direito possa ser superior à liberdade das outras pessoas. Dito de outra forma: a p.p. tem que ter um limite e este é a liberdade dos outros. Na altura em que a p.p. for mais importante do que a liberdade dos outros, torna-se um abuso. Isso vale no caso da p.p. e também no caso da directa consequência desta, o mercado.

Mas como fazer respeitar este limite? Num discurso proferido na “Convenção” em 24 de Abril de 1793, em que criticava a Declaração dos Direitos, ele dizia:

Aos olhos de todas essas pessoas [escravagistas, tiranos, etc., ndt] a propriedade não assenta em nenhum princípio moral. E porque é que a vossa Declaração de Direitos parece apresentar o mesmo erro? Ao definir a liberdade como o primeiro bem do homem, o mais sagrado dos direitos derivados da natureza, afirmam com razão que a sua limitação está nos direitos dos outros. Por que razão, então, não aplicaram este princípio à propriedade, que é uma instituição social? Multiplicaram os artigos para assegurar a maior liberdade no exercício da propriedade, e não disseram uma palavra para determinar o seu carácter legítimo; de modo que a vossa Declaração parece ter sido feita não para os homens livres, mas para os ricos, para os acumuladores, para os especuladores, e para os tiranos. Proponho corrigir estes defeitos através da consagração das seguintes verdades:

Art.1 – A propriedade é o direito de cada cidadão de usufruir e dispor da parte da propriedade que lhe é garantida por lei.
Art. 2 – O direito de propriedade é limitado pela obrigação de respeitar os direitos dos outros.
Art. 3 – Não pode afectar a segurança, a liberdade ou os bens dos nossos concidadãos.
Art. 4 – Qualquer propriedade ou tráfico que viole estes princípios é ilícito e imoral.

A necessidade de basear a legitimidade e a legitimação da propriedade privada na liberdade do cidadão individual está consagrada na Convenção Nacional da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. […]

Pouco mais de um ano depois deste discurso, Robespierre era guilhotinado (não sem razões, diga-se). Mas vale a pena realçar a ideia segundo a qual é ilícita e imoral qualquer propriedade que viole o respeito, a segurança, a liberdade ou os bens dos indivíduos. Este é o ponto do qual partir, esta deve ser a base de qualquer raciocínio.

Então o nosso principal inimigo não é a p.p. ou o mercado: é o Capitalismo, isso é, uma interpretação doentia tanto da primeira quanto do segundo, uma ideologia que transforma a p.p. numa arma nas mãos de quem tiver mais riqueza. É preciso acabar com a identificação entre p.p., mercado e Capitalismo: é este que introduz a ideia do laissez-faire, o deixar as coisas irem pois a “mão invisível” sistema tudo (ambos conceitos de Adam Smith, em A Riqueza das Nações, 1776). Não há nenhuma “mão invisível” e o Capitalismo deixado a si mesmo produz inexoravelmente escravidão e monopólios (a máxima negação tanto da p.p. quanto do mercado). O mercado pode e deve ser regulamentado.

Limitar a riqueza?

É preciso introduzir um limite à riqueza? Não. E não é um defesa extrema da liberdade individual a  minha: é uma mera consideração económica. Antes de mais, esta deveria ser uma medida introduzida em todo o mundo ao mesmo tempo, caso contrário os mais ricos abandonariam os Países onde a nova lei entra em vigor. Mas o verdadeiro problema seria outro.

Imaginemos que a lei seja efectivamente introduzida no planeta todo: então o máximo que posso ganhar por ano é 10 milhões e o montante extra terá de voltar ao Estado. O que é que isso significa? Significa que acabamos de desvalorizar a moeda. Foi introduzido um valor máximo ao qual todos se ajustarão rapidamente: se 10 milhões for o limite da riqueza possível, uma pessoa com 1.000.000 não pode ser considerada simplesmente “rica” como acontece agora mas “extremamente rica”. O que antes custava um milhão, no mundo desvalorizado custará 100 mil. E tudo será como antes da desvalorização.

Além disso, não podemos assumir que as pessoas que ganham mais de 10 milhões por ano continuarão a agir exactamente como antes da imposição do limite máximo. Dentro de alguns meses após a imposição do limite, a maioria dos que ganhassem mais de 10 milhões reduziriam o seu trabalho ao ponto de ganharem mais ou menos 10 milhões e não mais (seria inútil). Mas isso aconteceria também às empresas (não podemos pensar em introduzir apenas um limite para os indivíduos, seria demasiado pôr tudo em nome das empresas e continuar a declarar 10 milhões como rendimento individual do dono) que deixariam de produzir uma vez atingido o valor máximo.

Resultado: o dinheiro “extra” que generosamente queríamos ré-investir em serviços ou infraestruturas desapareceria. E teríamos preços muito altos, serviços zero e investimento zero.

Cereja no topo do bolo: tirar a riqueza aos ricos não resolveria nada, apenas estaria a mudar o problema dos “empresários com demasiado poder” para “políticos com demasiado poder”.

Taxação?

E que tal aumentar as taxas? Esta seria uma medida com um pouco mais de sentido. Uma taxação elevada não representa um limite fixo e insuperável, a não ser uma taxa na casa de 100%. Mas de 90%, por exemplo? O economista Thomas Piketty, no seu óptimo O Capital no século XXI (2013) apresenta propostas de políticas públicas para reduzir a desigualdade social tanto nos Países de elevado rendimento como nos Países em desenvolvimento. Em particular, Piketty sugere a criação de um imposto global altamente progressivo sobre o capital para estimular a redistribuição económica.

Todavia não é uma receita contra todos os males: em primeiro lugar porque a taxação tem que ter limites também (caso contrário apresenta os mesmos problemas vimos antes no caso limite da riqueza), depois proque deveria ser um imposto global, caos contrário seria simples mover o capital dum País taxado para um taxado menos.

Posse dos meios de produção

E se os meios de produção pertencessem aos trabalhadores? Mais uma vez, isso significaria apenas deslocar o problema, não resolve-lo: o que aconteceria ao ter uma empresa que conseguisse enriquecer os trabalhadores? Não seriam este novos ricos? E por qual razão deveriam portar-se melhor do que os actuais ricos? Por serem trabalhadores?

Leis mais apertadas

Inúteis. E não acho ser preciso explicar a razão.

 

O consumidor

A p.p. é um direito natural, o mercado é apenas um instrumento e os ricos não estão a portar-se bem, apoiados nisso por uma péssima teoria económica (o Capitalismo).

Mas não é que estamos a esquecer alguém? E que tal o consumidor, o cidadão, o eleitor, todo o conjunto de indivíduos que com as suas acções viabilizou e continua a validar este sistema? E que tal “nós”? Se for verdade (e é verdade) que apenas 1% da população mundial controla tudo, o que faz os restante 99%?

Por qual razão não falar do instinto predatório do consumidor para satisfazer todos os seus desejos através dos bens materiais? Quem é que adquire os bens produzidos pelas multinacionais? O filósofo e economista Serge Latouche sugeriu já em 2012 que somos todos cúmplices dos problemas do mundo, os poderosos não são os únicos culpados, e a arma contra o Capitalismo não pode residir apenas em políticas públicas “verdes” e “redistributivas”, mas numa esfera mais profunda: a aceitação do conceito de limites.

O que acho errado em Latouche é que a sua teoria do Decrescimento Sustentável mais parece um Comunismo 2.0, pois é actuado com uma contração do sistema económico, a introdução da “pegada ecológica”, a redução dos níveis de produção e consumo o que deveria aumentar o bem-estar de todos e melhorar as condições ecológicas e a igualdade no planeta. Mais uma vez estamos perante algo que trata dos sintomas e não da causa, um outro -ismo imposto a partir de cima e não um movimento natural.

O Capitalismo baseia-se na rejeição do negativo (“não consigo obter o que quero” ou “não posso ir para além deste limite”) e no medo de sermos privados de abundância. É esta a base emocional do “crescimento forçado” e do nosso consumismo sem limites. É verdade, o crescimento económico é promovido como um credo religioso pelas principais instituições financeiras e pelas empresas, mas é também necessário e assistido para responder ao que a população percebe como uma necessidade. As empresas produzem muito e enriquecem demais? Sim, mas somos nós que compramos tudo o que for produzido! Quando entramos num supermercado para comprar duas laranjas e saímos com uma saco cheio de mercadoria, o que aconteceu? Alguém estava a apontar uma arma à nossa cabeça? Duvido.

Zygmunt Bauman em Modernidade Líquida (2000) afirma que o consumidor percebe um profundo vazio existencial que acaba por tentar preencher através do consumo espasmódico de bens materiais. Confrontado com o terrível passo de “olhar para dentro de si mesmo”, o consumidor opta por navegar em direcção ao horizonte infinito dos desejos, fugindo dos seus antigos demónios interiores que lhe recordam constantemente o limite da sua existência. E assim, o que é “desejo” é em vez disso percebido pelo consumidor como “necessidade”, como uma prerrogativa não negociável para a sua própria sobrevivência. Também aqui o limite é considerado negativo e criminoso, porque é impensável aceitar ter necessidades ainda pendentes, ter algo que não pode ser obtido: se assim fosse, correr-se-ia o risco de reviver a experiência do vazio.

 

A chave: os limites

O limite, este é o ponto. Para derrotar o Capitalismo (algo indispensável para sair do actual pântano) não existem receitas mágicas, não há leis “melhores”, -ismos “definitivos” ou imposições que “resolutivas”. Até quando houver consumidores dispostos a adquirir tudo o que as multinacionais produzirem e a eleger classes políticas que prometem mais do mesmo, o Capitalismo continuará indiferente o seu caminho.

É necessário reintegrar a presença do limite na nossa existência, entendendo que a acumulação de bens é o produto dum profundo vazio existencial, que tentamos preencher com materiais supérfluos. O crescimento económico é apenas o fruto do terror de “ter de se contentar”, o consumismo é o medo de não sermos capazes de satisfazer os nossos desejos. E a tecnologia alimenta ainda mais esta tendência, demonizando o sofrimento e a morte.

É preciso aprender a ter coragem e assumir que sofrimento e morte são partes integrantes da vida. É precisa a coragem de admitir que o Capitalismo é apenas o caminho mais simples, onde todos somos tratados como crianças mimadas, silenciadas (temporariamente) com um novo brinquedo. É precisa a coragem para aceitar os limites.

Qualquer revolução que faça avançar novas políticas públicas que não tenham em conta uma profunda mudança existencial nos indivíduos será destinada ao fracasso. Não acaso, as maiores mudanças acontecem após uma guerra, quando sofrimento e morte irrompem na vida dos indivíduos que assim devem confrontar-se com os limites.

John Maynard Keynes em Um breve olhar sobre a Rússia (1925):

Costumávamos acreditar que o capitalismo moderno era capaz não só de garantir os padrões de vida existentes, mas de nos conduzir gradualmente a um paraíso onde estaríamos relativamente livres de preocupações económicas. Agora duvidamos que o homem de negócios nos esteja a levar a quem sabe qual melhor destino. Como meio, ele é tolerável, como fim não é satisfatório. Começa-se a perguntar se as vantagens materiais de manter a economia e a religião em compartimentos estanques são suficientes para contrabalançar as desvantagens morais.[…] É preciso um novo sistema de valores que flui naturalmente de um exame calmo dos nossos sentimentos interiores em relação à realidade externa.

Em Possibilidades económicas para os nossos netos (1931):

Quando a acumulação de riqueza deixar de ter a importância social que hoje lhe atribuímos, os nossos códigos morais deixarão de ser os mesmos. Poderemos finalmente deitar fora muitos dos pseudo-princípios que nos atormentam há duzentos anos, e que nos levaram a aceitar algumas das qualidades humanas mais repugnantes como virtudes sublimes. Finalmente, seremos capazes de atribuir ao desejo de dinheiro um valor adequado. O amor pelo dinheiro, pela posse do dinheiro – a não confundir com o dinheiro que serve para viver melhor, para gozar a vida – será, aos olhos de todos, uma atitude mórbida e repulsiva, uma daquelas inclinações meio-criminais, meio-patológicas que deveriam ser confiadas com um arrepio aos especialistas em doenças mentais. E, finalmente, seremos livres de pôr de lado todos os hábitos sociais e práticas económicas que dizem respeito à distribuição da riqueza e aos incentivos e desincentivos económicos que hoje mantemos vivos a todo o custo, por mais nojentos e injustos que sejam, considerando-os essenciais para a acumulação de capital.

Para não pesar mais num artigo já comprido, o discurso acaba aqui. Mas amanhã a síntese do livro de Ian Bremmer sobre a razão pela qual o Capitalismo não pode ser derrotado a partir do interior da nossa sociedade.

 

Ipse dixit.

10 Replies to “A propriedade privada – Parte II”

  1. O livro até pode ser bom, mas o problema nunca foi o socialismo em si e muito menos o capitalismo com seu mercado, como é tratado no artigo acima, o problema é o ser humano e sua ganância exacerbada, por isso os muito ricos querem manobrar tudo a seu favor e escravizar/controlar o mais pobre com falsidades para no final obter mais poder. O problema sempre foi a falta de educação e discernimento para separar o que não presta do que é útil e produtivo em consonância com a lei natural. Hoje há um grande incentivo a dissonância cognitiva, através de toda uma propaganda especializada, sem imaginarem as consequencias desses atos, assim caminha a humanidade.

    1. IIvan esse “Hoje” já teria começado um pouquinho mais cedo, por volta da primeira década do século passado pela mente de Edward Bernays. Sobrinho de Freud e ele também amante das ideias do seu tio (Psicologia Freudiana), soube sabiamente as aplicar na Publicidade como um remédio através de uma extensiva e útil ferramenta na manipulação de massas, em especial nos Estados Unidos, em uma deplorável dependência destas pela nova religião – O Consumismo.

  2. Derrotar todas as tiranias, todos os totalitarismos, todo o autoritarismo, tenha o nome que tiver, com o bicho homem ?
    Não deu, não dá , não dará. Existem pessoas melhores? Sim, existe gente que não rouba de quem já pouco tem, que não maltrata, que procura dividir o máximo possível, que não consome absurdos, que não vive de aparências, que não usurpa, existe gente com princípios decentes. E também existe todo o contrário. E esse contrário é a maioria. E parece que cada vez piora.
    Suponho que dê para buscar e lutar por algumas pequenas melhorias gerais, tipo taxação de altíssimos lucros, altíssimas riquezas, altíssimas despesas, altíssimas heranças; desaparecimento das formas de evasão de lucros como as off shores para garantia de transparência nos montantes a serem taxados. Não sei se há consequências negativas do ponto de vista econômico em limitar os ganhos daqueles que vivem de dividendos e da roleta financeira.
    Seria desejável valorizar por igual o trabalho, fosse manual ou intelectual, um fator decisivo para a garantia da igualdade.
    Também seria aconselhável que os “bons” se esforçassem em servir de exemplo para os que estão próximos. Tenho grandes dúvidas com o sucesso da educação institucional, mas acredito no exemplo e no incentivo à auto formação.
    É bom parar por aqui porque só conseguir estas pequenas coisas já seria tarefa hercúlea nas sociedades como a nossa.

    Ah, Max, só por curiosidade, se a humanidade é um perigo, há umas atitudes animais meio estranhas.
    Tenho um verdadeiro condomínio para pássaros livres no deque aqui de casa. Coloridíssimas saíras, canários da terra e colibris são responsáveis por muitos dos meus momentos alegres. Mas, se tocar no exterior mesmo das casinhas onde fazem seus ninhos, o casal abandona os filhos recém chocados para morrer e somem.
    O João de Barro faz casas nos postes com o material do seu nome para o casal. Mas se a fêmea namorar o macho do outro poste, ele fecha a pobrezinha dona de si própria a morrer de fome emparedada.
    Dizem que os ursos machos respeitam as fêmeas de outras espécies, identificadas pelo cheiro. Não tive oportunidade de testar esse comportamento, nem sugerir ao único urso livre na natureza que vi ao vivo e a cores, que tal dividir a toca, só como experiência!?

  3. Olá Maria!

    “Ah, Max, só por curiosidade, se a humanidade é um perigo…”

    É este o ponto central de todo o discurso. Somos um perigo para nós e para os outros. Isso não significa, obviamente, que deve ser reduzido o número de indivíduos no planeta, como andam a sugerir alguns. Não importa o número, é o bicho em si que não está maduro, seja um, sejam dez ou cento exemplares.

    Sendo o Homem imperfeito, como podemos acha-lo capaz de construir uma ideologia (um “-ismo”) perfeita? Pode haver ideias menos imperfeitas do que outras e até válidas no percurso de melhoramento individual e colectivo, sem dúvida que há. Mas a nossa imperfeição complica sempre as coisas. Toma o exemplo do ambiente, da ecologia, etc.: até conceitos como estes conseguem ser utilizados para fins negativos, para criar sofrimento, exploração e favorecer apenas um pequeno grupo de poder à custa da maioria.

    Conhecemos conceitos positivos como “cooperação” ou “partilha” mas teimamos em sucumbir perante os egoísmos individuais. E não, não são apenas os mais ricos que fazem isso: os mais ricos representam os piores exemplos duma atitude que é generalizada. Se o povo fosse realmente “bom” não permitiria que os “ricos maus” governassem ao longo de centenas e centenas de anos seguidos. Ou temos que pensar “povo bom mas estúpido”? Porque como podemos rotular biliões de indivíduos que se deixam “enganar” durante séculos e mesmo assim defendem (nos factos) o sistema que os explora?

  4. Padrão mental formado pela hierarquia de valores imposta via propaganda travestida de educação, religião, ciência e meios de comunicação, e o familismo amoral (onde cada indivíduo divide o mundo entre os “meus” e os “outros”, dois exemplos suficientes para denotar o fosso civilizatório…

  5. Olá Max: podemos rotular os milhões de indivíduos de medrosos também, porque o medo gera na maioria a aceitação e subserviência, e na minoria a reflexão, a rebeldia e a a contra ação Abraços mil.

    Chaaaplin, estás aí ? Fico contente!

  6. Obrigado aos companheiros de comentários. Na verdade, continuava por aqui, mas recolhido por imposição do editorial do II.

  7. ‘Não terás nada e serás feliz’, da Agenda 2030, esbarra com o ninho das aves. E talvez seja por isso que este processo vá fracassar, a não ser que o projecto globalista consiga, através da manipulação genética, criar o tal Sapiens 2.0 desprovido de todos aqueles mecanismo inatos de defesa e de auto-preservação.
    Acredito que tudo isto esteja bem pensado e que a sua implementação esteja a ser tentada neste momento.
    Vamos ver o que dá.

  8. Parabéns por mais uma excelente reflexão Max. São artigos como este que nos dão esperança num mundo melhor.
    Um abraço para o Max e para todos os incontornáveis comentadores incluindo o Chaplin!

Obrigado por participar na discussão!

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