Microsoft, Facebook e o Metaverso

Microsoft, a colossal empresa de software fundada por Bill Gates, comprou a Activision Blizzard, a empresa produtora da série de videojogos Call of Duty, StarCraft, Guitar Hero, Diablo, Candy Crush e, acima de tudo, World of Warcraft.

A aquisição custou 68.7 mil milhões de Dólares e agora a Activision Blizzard tornar-se-á uma divisão da Microsoft Gaming.

Para os fãs destes jogos, que não são poucos (na Coreia do Sul, StarCraft tem um sucesso esmagador), o pânico está a instalar-se. Se a Microsoft fizer à Blizzard o que fez ao Skype e à Nokia, duas empresas praticamente destruídas, o que pode acontecer com os videojogos? Na verdade, a história é mais complexa. E não, não falamos apenas de passatempos.

Primeira pergunta: por qual razão o grupo de Gates gasta uma soma que corresponde a uma manobra económica de um País médio-grande para comprar uma empresa de jogos de vídeo, que, além disso, nos últimos tempos tem tido os habituais problemas na era #metoo?

O Metaverso

Por detrás desta gigantesca operação há algo preciso: o metaverso. O metaverso é, diz Mark Zuckerberg (que mudou o nome da empresa Facebook para Meta), a próxima grande transformação da informática. “A próxima Internet móvel”, como explicou o dono de Facebook/Meta. Para entender o que raio é este Metaverso temos que olhar para o criador do termo, o escritor de ficção científica Neal Stephenson (que também criou a expressão “moeda criptográfica”, cryptocurrency no original inglês): em 1992, no livro Snow Crash, Stephenson, descreve uma espécie de realidade virtual partilhada através da internet, onde as pessoas são representadas em três dimensões através do próprio avatar.

Uma espécie de Second Life? Sim, mas tudo mais evoluído: o que Stephenson descreve não é um jogo mas é uma visão futurista da internet moderna, frequentada pelas classes média e alta da população, onde a diferença entre as classes sociais é representada pela resolução do próprio avatar e pela possibilidade de aceder a lugares exclusivos. Realidade virtual, portanto, cada vez mais próxima à realidade física.

E se o Leitor ainda acha que estamos a falar apenas de jogos, será bom lembrar que em 2021 Facebook/Meta contratou 10.000 pessoas na Europa para criar o seu metaverso. A empresa de Mark Zuckerberg colocou na mesa cerca de dez mil milhões de Dólares para comprar todas as possíveis empresas que gravitam na realidade virtual.

A resposta da Microsoft começou com a aquisição da Activision Blizzard para não perder terreno. “É o hype do metaverso”, comentou a publicação Tech Crunch. Que continua:

Tal como com o anterior Web 2.0, o metaverso significa possuir o tempo de um utilizador online. De certa forma, o que parece ser realmente o metaverso é a ideia dos utilizadores passarem tempo online a fazer coisas cada vez mais aborrecidas, mas como avatares num mundo virtual em 3D. O jogo centra-se em manter as coisas longe do tédio, mas à medida que os MMO [Massive Multiplayer Online, jogos em rede onde podem participar ao mesmo tempo massas de utilizadores, como World of Warcraft, ndt] se tornam mais realistas, a esperança é que estes mundos separados se misturem uns aos outros e os utilizadores comecem a pensar na sua presença online como algo mais coeso.

Ou seja: um processo de transformação que tem como alvo a realidade. A separação progressiva da nossa vida “real” em favor duma virtual cada vez mais semelhante, em termos de gráfica e estímulos, à primeira, ao ponto de ser preferida pelos utilizadores.

Pixel e choco

Há um par de anos atrás estava numa espécie de restaurante (na verdade, uma verdadeira taberna) perante um prato de choco frito. Na mesa ao lado, dois rapazes que falavam ininterruptamente. Dado que nunca me meto na minha vida, comecei a prestar atenção à conversa só para descobrir, como horror, que os dois falaram o tempo todo de um vídeojogo. De um único videojogo, que absorveu meia hora de conversa, com descrição dos truques, das equipas envolvidas, dos cenários…

Um caso-limite? Sem dúvida. Mas não um caso isolado. Aqueles que jogam aos tais MMOs como World of Warcraft, aqueles que têm uma equipa em Call of Duty, já hoje dedicam horas de vida à existência electrónica e aos seus problemas. Ao longo dos anos, temos notado como o luto, os problemas familiares, laborais e emocionais aumentam o tempo que os indivíduos passam a jogar jogos online.

A realidade dos pixels sabe ser muito atractiva porque é segura, heroica, “limpa” e, sobretudo, evita os verdadeiros desafios da existência. O outro lado da moeda é a criação de verdadeiras prisões mentais onde os próprios utilizadores pedem para serem presos.

Tristan Harris, um ex funcionário da Google que é agora um dos principais críticos dos desastres éticos das grandes empresas de informática (ele é o autor do bem sucedido documentário da Netflix The Social Dilema, que trata das tácticas utilizadas pelos algoritmos de Facebook para manter os utilizadores colados ao site), diz que o metaverso é na realidade uma extensão 3D de algo que já existe e que está a devastar as nossas vidas: a “bolha” social que nos mantém sempre dentro do mesmo círculo de amigos, de opiniões, de modo a radicalizar-nos, com o resultado de criar sociedades polarizadas em tudo. E onde o espectro da guerra civil já não é uma perspectiva tão impensável.

Parece um exagero, não é? Pensamos no Facebook. Hoje está um pouco em baixo, mas até bem poucos anos atrás todos tinham uma conta no social de Zuckerberg, com um sucesso impressionante. Ainda em Março do ano passado, a plataforma tinha 2.85 biliões de utilizadores mensais. Nada mal num planeta de 8 biliões de indivíduos: significa mais do que um terço. O Metaverso irá engolir as massas da mesma forma que o Facebook já o fez, apenas com interfaces mais avançados.

Obviamente nem todos gostam do Metaverso: o inventor da PlayStation, o engenheiro Ken Kutaragi, não cai nessa e numa recente entrevista com Bloomberg perguntou:

Preferes ser um avatar polido em vez do teu verdadeiro eu?

Para Kutaragi, os espectadores da realidade virtual que permitem o Metaverso são “apenas irritantes”, e “isolam-no do mundo real”. Ou seja, Kutaragi parece não entender que a completa transformação da realidade é o objectivo final.

A pandemia, é evidente, tem sido mais um empurrão. Esta geração de prejudicados pelas restrições encontra facilmente alívio nos mundos virtuais; dum lado a realidade, feita de terríveis vírus que obrigam a desconfiar do vizinho, a pôr uma máscara, que fecham as pessoas em casa; do outro lado um mundo cheio de possibilidades, de aventura, de cores, tudo em Dolby Digital Surround. A escolha não é difícil.

É tudo mau? Não.

Possível que seja tudo mau? Na verdade não é. Aliás: poderia não ser. Eu sei: somos acostumados a viver numa realidade, a nossa, e é normal pensar que qualquer outro mundo “construído” possa ser uma ameaça ou, no mínimo algo negativo. Mas tentamos manter a mente aberta.

Além das óbvias aplicações de carácter médico (e são muitas), pensamos nas pessoas que, por motivos económicos, não têm a possibilidade de embarcar em dispendiosas viagens ao redor do planeta. A realidade virtual permitira visitar tudo, em companhia de amigos, interagindo com os habitantes locais, tudo em plena segurança.

Querem visitar a Antártica sem o medo de ficarem congelados? Com a realidade virtual é possível. Pensem substituir as duas canónicas horas da noite passadas na frente duma televisão com um passeio na selva Amazónica, reproduzida até o mais ínfimo pormenor e sem o problema dos mosquitos. Ou assistir ao primeiro concerto dos Beatles, nos anos ’60. Ver ao vivo o desenrolar da Batalha de Waterloo evitando todas as balas.

Pensem em visitar parentes ou amigos que vivem do outro lado do planeta: não seria apenas uma video-chamada, seria “transferir-se” todos na sala de estar para conversar, rir, “lado a lado”.

A realidade virtual pode fazer isso. E isso não é mau, pelo contrário: é muito, muito bom.

Ainda Tech Crunch, com as palavras de Louis Rosenberg (como mero pormenor: um judeu), dono da empresa de Inteligência Artificial (AI) Unanimous AI :

Acredito que o verdadeiro metaverso – aquele que irá mudar a sociedade – será mais uma camada do mundo real, e dentro de 10 anos será a base das nossas vidas, impactando tudo, desde as compras e a socialização até aos negócios e à educação.

Também acredito que um metaverso controlado pelas empresas é perigoso para a sociedade e exige uma regulamentação agressiva. Isto porque os fornecedores da plataforma serão capazes de manipular os consumidores de formas que farão com que os meios de comunicação social pareçam pitorescos. A maioria das pessoas ressoa com as preocupações acerca da recolha de dados e privacidade, mas ignoram o que será a tecnologia mais perigosa no Metaverso: a inteligência artificial.

De facto, se pedirmos às pessoas para nomear as tecnologias centrais do metaverso, elas irão normalmente concentrar-se nos óculos e talvez mencionam os motores gráficos, 5G ou mesmo a blockchain. Mas estas são apenas as porcas e parafusos do nosso futuro imersivo; a tecnologia que puxará os cordelinhos do metaverso, criando (e manipulando) a nossa experiência, é a AI. […]

E a parte mais perigosa do metaverso será aquela dos agentes artificiais que se parecem e agem como outros utilizadores, mas que são na realidade pessoas simuladas controladas pela AI. Eles envolver-nos-ão em “manipulação conversacional”, envolvendo-nos em conversas por conta de anunciantes pagantes sem que nos apercebamos de que não são reais.

Isto é especialmente perigoso quando os algoritmos de AI têm acesso a dados sobre os nossos interesses e crenças pessoais, hábitos e temperamento, tudo isto enquanto monitorizam o nosso estado emocional através da leitura das nossas expressões faciais e inflexões vocais.

Se pensa que os anúncios direccionados nas redes sociais são manipuladores, não é nada em comparação com os agentes de conversação no metaverso. Eles vão atrair-nos com mais habilidades do que qualquer vendedor humano, e não será apenas para nos vender gadgets, eles vão empurrar propaganda política e desinformação direccionada em nome do licitante mais alto.

E porque estes agentes de AI parecerão como qualquer outra pessoa no metaverso, o nosso cepticismo natural em relação à publicidade não nos protegerá. Por estas razões, precisamos de regular os agentes de conversação conduzidos pela AI, especialmente quando eles têm acesso aos nossos efeitos faciais e vocais, permitindo que as nossas emoções sejam usadas contra nós em tempo real.

Como escrevi em 2016, se uma AI pode aprender a vencer os melhores jogadores de xadrez do mundo, aprender a influenciar os consumidores a comprar coisas (e acreditar em coisas) que não são do nosso interesse é uma brincadeira de criança.

Mas de todas as tecnologias que se dirigem ao nosso caminho, é o que eu chamo de “elfo” que será a forma mais poderosa e subtil de coerção no metaverso. Estes “facilitadores electrónicos da vida” são a evolução natural dos assistentes digitais como Siri e Alexa, mas não serão vozes desencarnadas no metaverso. Serão pessoas antropomorfatizadas como personalizadas para cada consumidor. […] E dado que o metaverso acabará por ser mais uma camada do mundo real, estes elfos digitais estarão consigo em todo o lado, quer esteja a fazer compras ou a trabalhar ou apenas a passear. E tal como os agentes de marketing acima descritos, estes elfos terão acesso às suas expressões faciais e inflexões vocais, juntamente com um histórico de dados pormenorizado da sua vida, empurrando-o para acções e actividades, produtos e serviços, até mesmo pontos de vista políticos.

E não, não serão como os chatbots grosseiros de hoje, mas sim personificações de personagens que virá a considerar como figuras de confiança na sua vida, uma mistura entre um amigo familiar, um conselheiro útil e um terapeuta atencioso. E ainda assim, o seu elfo conhecê-lo-á de formas que nenhum amigo jamais poderia conhecer, pois estará a monitorizar todos os aspectos da sua vida até à sua tensão arterial e taxa respiratória (através do seu fiel smartwatch).

Sim, isto parece assustador, e é por isso que os fornecedores de plataformas os tornarão bonitos e não ameaçadores, com características inocentes e maneirismos que parecem mais um carácter mágico na sua própria “aventura de vida” do que um assistente de tamanho humano a segui-lo por perto. É por isso que uso a palavra “elfo” para os descrever, pois podem parecer-lhe como uma fada a pairar sobre o seu ombro ou talvez um gremlin ou um alienígena, um pequeno personagem antropomórfico que pode sussurrar ao seu ouvido ou voar à sua frente para chamar a atenção para coisas no seu mundo virtual em que quer que se concentre. […]

Em última análise, as tecnologias da realidade virtual e da AI têm o potencial de enriquecer e melhorar as nossas vidas. Mas quando combinadas, estas inovações tornam-se especialmente perigosas, pois todas têm uma característica poderosa em comum: podem fazer-nos acreditar que o conteúdo gerado por um computador seja autêntico, mesmo que se trate de algo construído com base numa agenda de interesses. É esta poderosa capacidade de engano digital que nos deve fazer temer um metaverso habilitado para a AI, especialmente quando controlado por corporações poderosas que vendem acesso de terceiros aos seus utilizadores para fins promocionais.

Levanto estas preocupações na esperança de que os consumidores e os líderes da indústria pressionem para uma regulamentação significativa antes que os problemas se tornem tão enraizados na tecnologia do metaverso que sejam impossíveis de desfazer.

Não é tudo mau. Como na maior parte das invenções humanas, estas podem ser utilizadas para o bem ou para o mal. O Metaverso ainda está numa fase inicial mas já agora as previsões não são das melhores, principalmente porque os participantes nesta corrida são empresas privadas com uns curriculum vergonhosos.

Para limitar não o Metaverso mas a sua utilização fraudulenta seriam precisas leis, muito claras e igualmente apertadas. Isso daria ao Metaverso a dignidade que merece. E neste caso seria realmente possível falar de Metaverso como de mais um acamada de realidade.

Mas por enquanto no percurso escolhido com o silencio (cúmplice?) das instituições parece haver pouco ou até nada. É exactamete neste vazio legislativo que Microsoft, Meta e Google estão a projectar os seus novos impérios sem sem perturbados. E transformando numa arma comercial e política o que poderia ter sido uma mais valia para todos.

 

Ipse dixit.

4 Replies to “Microsoft, Facebook e o Metaverso”

  1. Acho que regular o metaverso é como regular a internet, na prática não tem lei que funcione corretamente, quanto maior mais difícil de ser regulada, e sempre haverá o risco de tornar-se uma grande “cracolândia” , só o tempo dirá.

  2. Caminhamos rumo à Matrix. A realidade limitada a manter o corpo físico vivo e a mente mergulhada no metaverso. Será esse o caminho da humanidade?

  3. Olá Max e todos:
    Vejo um prejuízo muito sério que as regras definidas pelas pandemias e pelo pânico já estão treinando as pessoas: ninguém mais sai de casa; trabalho, reunião de estudo, social, namoro, viagens, entretenimento…tudo via metaverso. E assim , pouco a pouco, os sujeitos vão se desligando mais ainda da realidade, imersos numa espécie de espelho que funciona em 3 dimensões.
    À princípio jogos e amigos, depois as consultas aos “especialistas” apresentados pelas corporações donas do negócio. Finalmente a inteligência artificial para distanciar os indivíduos cada vez mais da realidade e torná-los definitivamente servos das corporações governadoras do mundo.
    Como sempre, tudo dependerá do usuário. II será para mim e para muitos a mesma reunião de comentaristas em 3 dimensões, e eu pedirei atenciosamente que não usem avatares que não sejam vossas próprias imagens em 3 dimensões. È mais bonitinho, não é mesmo?
    Vou conhecer o que não conheço do mundo, mas não com computador. Quando estiver muito bem de saúde (estou a caminho) quero ver e “sentir” aquilo que a internet censura e continuará censurando Até a pouco a maioria das minhas viagens foram meramente turísticas, mas almejo outro tipo de imersão no ambiente.
    Não acredito ser cooptada pelo 3D, mas a maioria certamente será em maior escala do que atualmente.
    Outro prejuízo será mais uma barreira entre aqueles que terão dinheiro para adquirir a nova modalidade e os que não terão o vil metal, se refletindo no trabalho, na educação, nos hábitos sociais etc. Sempre os mais atualizados recursos tecnológicos para quem pode aceder, um dispositivo de poder que incluirá/excluirá muito interessante.

  4. A prisão mental para todos, onde a morte/discriminação/ódio será o suicídio real.

Obrigado por participar na discussão!

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