Indians – Parte I

Post comprido, sem dúvida. Mas vale a pena.

O seguinte é um discurso de Russel Means, nome verdadeiro Oyate Wacinyapin (“Aquele que trabalha para o povo”), chefe dos Lakota.

O nativo americano mais conhecido desde os tempo de Touro Sentado ou Cavalo louco, morreu na passada Segunda-Feira, dia 22 de Outubro.

Oyate Wacinyapin

O único início possível numa declaração como esta é que odeio a escrita. O processo em si resume o conceito europeu de “pensamento legítimo”: o que está escrito tem uma importância que é negado ao falado. A minha cultura, a cultura Lakota, tem uma tradição oral, assim de modo geral recuso-se a escrever. Esta é uma das maneiras em que o mundo branco destrói as culturas dos povos não-europeus, através da imposição de uma abstracção sobre o relacionamento não falado de um povo.

Portanto, o que podem aqui ler não é o que eu escrevi. Isso é o que eu disse e que alguém escreveu. Permiti isso porque parece que a única maneira de comunicar com o mundo branco é através das folhas secas, mortas, de um livro.

Eu não me importo que as minhas palavras alcancem ou não os brancos. Eles já demonstraram através da história deles não serem capazes de ouvir, não podem ver, mas só podem ler (claro, há excepções, mas as excepções só confirmam a regra). Estou mais preocupado em fazer-se ouvir pelos indígenas americanos, estudantes e outros, que começaram a ser absorvidos pelo mundo branco através das universidades e outras instituições. Mas, mesmo neste caso, é um tipo de preocupação apenas marginal.

É absolutamente possível crescer com um aspecto exterior vermelho e a mente branco, e se este é o resultado da escolha individual de uma pessoa, que assim seja, e eu não sou de alguma utilidade para eles. Isso faz parte do processo de genocídio cultural realizado hoje pelos europeus contra os povos indígenas americanos. A minha preocupação é dirigidas aos índios americanos que escolhem resistir a esta genocídio, mas que podem estar confusos sobre como proceder.

Reparem que utilizo o termo “índio americano” em vez de “nativos americanos” ou “povos nativos indígenas” ou “índios”, quando me refiro ao meu povo. Houve alguma controvérsia sobre tais termos, e francamente, neste momento, acho uma polémica absurda. Em primeiro lugar, parece que “índio americano” deve ser rejeitado porque de origem europeia, o que é verdade. Mas todos os termos acima são de origem europeia, a única forma não-europeu falar de “Lakota” ou, mais precisamente, “Oglala”, “Queimada”, “Dine”, “Miccosukee”, e o que sobrar das centenas de correctos nomes tribais.

Além disso, há uma certa confusão sobre a palavra “índio”, um termo equívoco que de alguma forma lembra o país Índia. Quando Colombo desembarcou na praia nas Caraíbas, não estava à procura dum país chamado Índia. Em 1492, os europeus chamavam Hindustan aquele país. Basta olhar para os mapas antigos. Colombo interpelou o povos tribal que se reuniu com ele “Índio”, usando uma expressão italiana que significa “In Deus” [In Dio, ndt].

É preciso um compromisso forte por parte de cada índio americano para não se tornar europeizado. A força desta tentativa pode estar baseada apenas nas práticas tradicionais, nos valores tradicionais que os nossos anciãos retêm. Os relacionamentos devem basear-se no círculo, nas quatro direcções, não podem ser fundamentadas nas páginas de um livro ou duns milhares de livros.

Nenhum europeu pode ensinar a um Lakota para ser Lakota, um Hopi ser Hopi. Um mestrado em “Estudos indiano” ou “cultura indígena” ou qualquer outra coisa não pode transformar uma pessoa num ser humano ou fornecer conhecimento nas formas tradicionais. Só pode transformá-lo num estranho ao nosso mundo, à nossa maneira de pensar, um estranho que assumiu a mentalidade europeia.

Aqui, gostaria de esclarecer a esse respeito, porque pode parecer que haja alguma confusão em mim. Quando falo de europeus ou mentalmente europeus, não faço distinções que podem estar erradas. Eu não digo que, por um lado, há os produtos de alguns milhares de anos de acções genocidas dos reaccionário, um desenvolvimento intelectual europeu insalubre, e que num outro lado há algum desenvolvimento novo e revolucionário, intelectual e positivo.

Refiro-me aqui às chamadas teorias do marxismo e do anarquismo, o “esquerdismo” em geral. Eu não acho que essas teorias podem ser separadas do resto da tradição intelectual europeia. Esta é, na verdade, apenas a mesma velha canção.

O processo teve o seu início muito antes.
Newton, por exemplo, “revolucionou” a física e as ciências naturais, reduzindo o universo físico a uma equação matemática linear. Descartes fez a mesma coisa com a cultura. John Locke fez isso com a política, e Adam Smith com a economia. Cada um desses “pensadores” pegou num pedaço de espiritualidade da existência humana e transformou-a num código, numa abstracção. Eles retomaram o ponto no qual o cristianismo tinha acabado: eles “secularizaram” a religião cristã, como os estudiosos amam afirmas, e com isso tornaram a Europa mais capaz e pronta para agir através duma cultura expansionista.

Cada uma dessas revoluções intelectuais serviu para tornar ainda mais abstracta a mentalidade Europeia, para remover do universo a maravilhosa complexidade e espiritualidade deste e substituí-la por uma sequência lógica: um, dois, três, resposta. Isto é o pensamento europeu tem vindo a definir como “eficiência”. Tudo o que é mecanicista é perfeito, e tudo o que na altura parece funcionar, isto é, que demonstra que aquele modelo mecânico é perfeito, é para ser considerado como correcto, mesmo que seja claramente mentiroso. É por isso que as “verdades” mudam tão rapidamente no pensamento europeu e as respostas que resultam deste processo são apenas paliativas, apenas temporárias, e devem ser continuamente descartadas em favor dum novo tapa-buraco, outros modelos mecânicos que apoiam e mantêm estes modelos em vida.

Hegel e Marx foram herdeiros do pensamento de Newton, Descartes, Locke e Smith.
Hegel concluiu o processo de secularização da teologia, e de acordo com suas proposições secularizou o pensamento religioso através do qual a Europa interpretava o universo. Em seguida, Marx definiu a filosofia de Hegel em termos de “materialismo”, ou seja, Marx de-espiritualizou inteiramente a obra de Hegel, sempre de acordo com a visão de Marx. E isso é agora visto como o potencial futuro revolucionário da Europa.

Os europeus podem ver isso como revolucionário, mas os índios americanos vêm tudo exactamente como o velho conflito europeu, ainda mais pronunciado, entre ser e ter lucro. As raízes intelectuais desta nova fórmula marxista do imperialismo europeu ligam Marx e os seguidores deles à tradição de Newton, Hegel e de todos os outros.

Ser é uma proposição espiritual. Ter lucro é um acto físico.
Tradicionalmente, os índios americanos sempre tentaram ser as melhores pessoas possíveis. Parte do processo espiritual era, e é, distribuir a riqueza, abdicar das riquezas para não ter lucros. Entre o povo da tradição, o lucro material é um indicador de uma situação enganosa, enquanto que para os europeus é “a prova de que o sistema funciona.

Claramente, nesta questão estamos a lidar com dois pontos de vista completamente opostos e o marxismo é verdadeiramente muito afastado, no lado oposto do ponto de vista dos índios americanos.

Mas vamos examinar uma importante consequência de tudo isso: este não é um mero debate intelectual.
A tradição europeia materialista de de-espiritualização do universo é muito semelhante ao processo mental que tende a desumanizar outra pessoa. E quem parece mais especialista em desumanizar as outras pessoas? E qual a razão?

Os soldados que tomaram parte em muitas batalhas aprendem a fazer isso contra o inimigo, antes de voltar a lutar. Os assassinos fazem isso antes de cometer um assassinato. Os soldados nazistas da SS faziam isso com os prisioneiros dos campos de concentração. Os policiais fazem o mesmo. Os executivos duma grandes empresas fazem isso aos trabalhadores enviados para as minas de urânio. Os políticos fazem isso. O que o processo tem em comum em cada grupo é a desumanização que dá a todos o direito de matar e destruir outras pessoas.

Um dos mandamentos cristão diz: “Não matarás”, pelo menos não os seres humanos, e portanto o truque é converter mentalmente as vítimas em não-humanos. Então podemos até alterar como uma virtude a violação do mandamento. Em termos de de-espiritualização do universo, o processo mental funciona de forma a que se torne virtuoso destruir o planeta.

Termos como “progresso” e “desenvolvimento” são utilizados ​​como termos de cobertura, a maneira na qual os termos “vitória” e “liberdade” são utilizados serve para justificar o massacre no processo de desumanização. Por exemplo, um especulador imobiliário pode utilizar “desenvolvimento” numa porção de terra com a abertura de um poço de cascalho, um desenvolvimento que, neste caso, significa a destruição total, permanente, com a remoção da terra em si. Mas, segundo a lógica europeia, são obtidas algumas toneladas de cascalho com as quais mais terra pode ser “desenvolvida” através da construção de estradas. Em última análise, o inteiro universo está aberto, de acordo com o ponto de vista europeu, neste tipo de loucura.

Talvez o mais importante é o facto dos europeus não experimentarem nenhuma sensação de perda em tudo isso. Afinal, os seus filósofos têm de-espiritualizado a realidade, então não há nenhuma satisfação (para eles) na forma simples de observar a maravilha de uma montanha ou de um lago ou de um povo no seu ser. Não, a satisfação é medida em termos de ganho material. Então a montanha torna-se cascalho, o lago torna-se líquido refrigerante para uma fábrica e as pessoas são reunidas para ser submetidas a programas de processamento em fábricas de doutrinação coerciva, que os europeus gostam de chamar “escolas”.

Mas cada novo fragmento de “progresso” aumenta os riscos do mundo real. Tomemos por exemplo o combustível da máquina industrial. Há poucos mais de dois séculos, quase todos utilizavam a madeira, um produto natural renovável, como combustível para as necessidades humanas de cozinhar a comida e de ficar quente.
Depois, veio a Revolução Industrial e o carvão tornou-se o combustível dominante, dado que na Europa a produção tinha-se tornado o imperativo social. A poluição começou a ser um problema nas cidades e a terra foi rasgada para o fornecimento do carvão, enquanto a madeira sempre tinha sido simplesmente recolhida sem grandes despesas para o meio ambiente.
Posteriormente, o petróleo tornou-se o combustível principal, quando a tecnologia da produção foi aperfeiçoada por meio de uma série de “revoluções” científicas. A poluição tem aumentado dramaticamente, e ninguém sabe ao certo quais serão no longo prazo os custos ambientais de bombear o petróleo a partir da terra.

Agora, estamos perante duma “crise energética”, e o urânio está a tornar-se o combustível dominante. Por um lado, os Capitalistas apostam no desenvolvimento do urânio como combustível em relação ao potencial para a obtenção de bons lucros. Esta é ética deles, e talvez isso permita que eles ganhem um pouco de tempo. Os Marxistas, por outro lado, apostam no desenvolvimento do urânio o mais rapidamente possível simplesmente porque é o combustível que torna viável uma produção mais “eficiente”. Esta é a ética deles, e eu não posso escolher qual o ponto de vista preferível. Como eu disse, o marxismo está colocado bem no meio da tradição europeia. É a mesma velha canção.

Existe uma regra de ouro que pode ser aplicada neste caso. Não podemos julgar a verdadeira natureza duma doutrina revolucionária europeia com base nas mudanças esperadas na Europa nas estruturas da sociedade e do poder. Só podemos julga-la pelos efeitos que terá sobre os povos não-europeus.

Isto porque todas as revoluções da história da Europa têm servido para reforçar as tendências e a capacidade da Europa de exportar a destruição de outros povos, outras culturas e do próprio meio ambiente. Eu desafio todos a lembrar-se dum exemplo em que isso não ocorreu.

Amanhã segunda parte e fontes.
Prometido.

Ipse dixit.

3 Replies to “Indians – Parte I”

  1. Olá Max: percebo que moramos na ilha do alfabeto, em vias de converter-se em ilha de bytes.Me pareceria promissor, se dessa ilha, a oralidade não fosse desaparecendo.A maioria dos habitantes da parte "avançada" da ilha não gostam de aproximação corporal, de ouvir e falar com os demais, de escutar a vida em movimento, de olhar nos olhos do próximo.Uma humanidade coisificada se delicia em relações virtuais e literais exclusivas e permanentes, e se humaniza tomando-as como ponto de partida para relações convivenciais, me parece.São tecnologias físicas capazes de abrir mundos de interação e conhecimento, mas coladas nas tecnologias políticas, cara a cara, de congraçamento e compartilhamento.
    Sempre que me é dado conversar com os menos "avançados" da ilha terra, tais como índios no Paraguai,Argentina, Bolívia ou Peru, pergunto como é possível terem conservado a paixão por conversar em círculo.E sempre obtenho a mesma resposta:"como não falar com as seres e as coisas, se eles estão sempre falando conosco". Deve ser por essa diferença que no nosso mundo "avançado" de surdos e cegos, só os loucos conversam com tudo, só os bichos vêem o que não vemos, e os considerados idiotas fazem gestos de aproximação sem motivos.Abraços

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: