Target 2: a mina Bank Run

Pessoal! Hoje falemos de economia. Assim, para variar.
Pior: falemos do bank run.

O que é isso?
O bank run é o fenómeno pelo qual os clientes dum ou mais bancos decidem retirar o dinheiro das próprias contas por falta de confiança.

Parece coisa exótica, mas na verdade é algo que aconteceu há pouco tempo: lembram-se do ano 2008 d.C., quando alguns grandes bancos dos Estados Unidos pareciam prestes a “saltar”? Na altura houve o fenómeno do bank run.

Há algumas teorias acerca disso, em alguns casos o bank run é visto como um “normal” acontecimento na óptica da expansão do crédito. Mas o resumo é sempre o mesmo: o banco perde a confiança dos clientes que ficam com medo de perder o dinheiro depositado. Tão simples como isso. E não é um medo desprovido de razão: como sabemos, os bancos não têm fisicamente disponível o dinheiro que deveriam devolver aos clientes (a famosa reserva fraccionaria: o banco recebe 10 e empresta 90).

Alguns casos de bank run nos últimos anos: em 2001 na Argentina, em 2002 no Uruguai, em 2007 nos Estados Unidos (Countrywide Financial), 2008 nos Estados Unidos (Bear Sterans, IndyMac Bank, Washington Mutual, Wachovia) e na Islândia (Landsbanski), em 2009 na Hollanda (DSB Bank), em 2011 na Suécia (Swedbank).

Mas porque falar de bank run agora?
Resposta simples: porque nesta altura são os bancos europeus que arriscam.
O Leitor do Brasil pode sempre pensar: “E que tenho eu a ver com isso?”.
Ó Leitor do Brasil, é sempre uma boa ocasião para aprender algo, não é? Afinal vamos observar como se forma um bank run e quais as consequências.
A coisa é um bocado complicada. Aliás, é muito complicada. Mas comecemos na mesma, sempre com o sorriso nos lábios e o analgésico por perto.

Como nasce um bank run

Primeiro ponto: o Leitor sabe que as normais contas bancárias individuais são garantidas pelo governo até um determinado montante.
Só até um determinado montante? Sim.
Não todo o dinheiro depositado? Não.
E se acontecer algo? Não há crise: é só rezar Nossa Senhora das Contas Bancárias. Doutro lado, se existisse uma cobertura total do Estado nem haveria bank run: porque retirar o dinehiro todo? Afinal o Estado garante a totalidade do montante: na conta ou garantido pelo Estado, pouco ou nada mudaria; e acabaria o divertimento todo.

Dado que o Estado garante só até um certo ponto, a cosia fica muitos mais excitante.

E agora falemos do possível nascimento dum bank run. Pegamos numa zona azarada do planeta, uma qualquer: a Zona NEuro.

Ok. sabemos que quando o Euro foi criado, emitido pelo Banco Central Europeu e não pelos vários Estados, ninguém pensou tornar o BCE garante das contas bancárias dos Europeus.: esta função foi deixada aos vários governos locais. O que é divertido: porque os governos locais já não podem emitir moedas, e são assim obrigados a garantir as contas bancárias com o dinheiro emprestado. Por quem? Pelo BCE, que empresta com juros, óbvio.

Teria sido lógico tornar responsável a única entidade capaz de emitir moeda, isso é, o BCE? Sim, teria sido.
Então porque não foi feito? Porque se tivesse sido feito teria sido demasiado lógico e simples e, como sabemos, as dificuldades são o sal da vida.

Pelo que, em caso de bank run com corrida dos clientes ao balcão, os Estados europeus podem hoje garantir até um certo ponto (um ponto bastante reduzido), depois devem pedir o dinheiro emprestado ao BCE.

Segundo ponto: quando o Euro foi criado, foi decidida a livre circulação da moeda em toda a Zona NEuro. Ou seja, eu, que tenho uma conta bancária em Barcelona (por assim dizer…) posso transferir o meu dinheiro para uma conta irlandês ou francesa ou italiana. Cómodo, não é? Afinal é engraçado ter um dia o dinheiro na Áustria, o dia seguinte na Alemanha, etc.

Esta mobilidade também é válida no caso de transferências em grande escala entre bancos centrais da Zona NEuro e entre os bancos centrais e os bancos comerciais. E tem um nome específico nos tratados europeus: Target 2.

Terceiro ponto: todos nós sabemos como vão as coisas na Zona Neuro. Um desastre. Estados falidos, outros moribundos, austeridade, sacrifícios. Os cidadãos estão a perceber. E muitos deles sabem que as suas contas bancárias só são garantidas até um certo ponto (podemos dizer 50% mais ou menos).
E os dados oficiais sobre as transacções bancárias na Zona NEuro dizem que está em acto uma corrida para transferir as contas privadas dos Países mais em dificuldades para os bancos alemães, vistos como refúgios seguros para poupar. Isso acontece graças ao Target 2.

Em termos técnicos esta é já é uma bank run: as pessoas correm para o banco para retirar o dinheiro e deposita-lo em outro lugar. Só que tudo acontece via computador, não há filas aos balcões e não há o pânico. A Alemanha é, portanto, o receptor de todo esse dinheiro.

Quarto ponto: é preciso perceber que quando Max transfere os milhões de Euros da sua conta de Barcelona para o um banco em Frankfurt, há passos muito específicos que precisam ser seguidos, nomeadamente a “compensação”. O que é isso?

Esta é uma parte muito importante do normal funcionamento dum banco.
Vamos explicar com um exemplo.

Max vai ao balcão do banco Olé, em Barcelona, e diz: “Quero falar com o director”. Resposta: “Não está, está a fazer a siesta”. “Caramba!” observa Max que vai-se embora.

Passadas duas horas volta e diz: “Quero falar com o director”. Que já acabou a siesta. Então Max diz ao director para fazer um depósito na sua conta do banco IV Reich em Frankfurt (transfere todo o dinheiro do banco espanhol para o banco alemão). Isso é muito rápido: o banco IV Reich deposita o dinheiro na conta de Max de forma rápida: afinal não o é dinheiro físico, são apenas dígitos num ecrã, duma conta bancária até uma outra.

Claramente, o banco IV Reich pede depois ao banco Olé para completar a operação: transferir fisicamente o dinheiro de Espanha para a Alemanha. O que faz o banco Olé? Diz ao próprio banco central (o banco central espanhol) para transferir na conta do banco central alemão o dinheiro fica na conta bancária de Max na Alemanha. Esta operação é chamada clearing.

Mas o que acontece se o banco espanhol falir? Se o sistema bancário espanhol ficar insolvente? Se o Estado Espanhol ficar insolvente? Quem garante o dinheiro? Quem transfere o montante para o banco central da Alemanha?

Teoricamente o Banco Central Europeu, que pode emitir Euro de forma ilimitada. Mas o problema não é este: o problema é que o bank run, tecnicamente já iniciado, é um jogo extremamente arriscado. E neste aspecto a Alemanha está a jogar com um barril de nitroglicerina na varanda dum sexto andar.

Porque, por enquanto, o Target 2 é desfrutado por pessoas que trabalham no meio económico-financeiro: mas as notícias circulam, e cedo ou tarde podem chegar aos ouvidos das pessoas “normais”. Isso sim que desencadearia o pânico.

Mas porque a Alemanha? Por uma razão bastante simples.
Na Zona NEuro existem dois fundos (ESFS e MES) para salvar os Estados agonizantes ou falidos (em teoria estes dois fundos nem seriam precisos: há o BCE que, lembramos, pode emitir dinheiro de forma ilimitada. Mas alguns Países do Norte vetaram esta solução). São estes fundos que podem salvar os bancos dos Países em dificuldades e o dinheiro das pessoas com eles: são estes dois fundos que mantêm calmos, por enquanto, os investidores e os conta-correntistas (sempre que o dinheiro de ESFS e MES seja suficiente perante as dificuldades: no caso da Italia, por exemplo…mas estes é outro discurso).

Mas ESFS e MES devem ser ratificados: e o Parlamento alemão já fez saber que a decisão será tomada nos próximos meses. E que seja uma “sim” não está escrito em lado nenhum. Este é o barril de nitroglicerina.

Em caso de “não”, os Estados em dificuldades ficariam “nus”, sem cobertura financeira. E os seus bancos também, como lógica consequência. Seria a condição ideal para um bank run, versão com pânico: as pessoas começariam a ter a noção de que o próprio banco, em caso de dificuldade, não teria o dinheiro suficiente para deolver o dinheiro depositado nas contas. E o Estado poderia intervir até um certo ponto.

É assim que nasce um bank run.

Mas porque a Alemanha tem dúvidas? A questão é complexa também. Muitos em Berlim acham que no fim será o próprio País a pagar os “buracos” dos Estados falidos. E outro acham que, em caso de falência de bancos em crise na Zona NEuro, os banco da Alemanha receberiam um rio de dinheiro, depositado por clientes europeus assustados.

É uma ideia esquisita, que não tem em conta as outras inevitáveis consequências dum bank run europeu. Mas por enquanto a dúvida acerca da decisão da Alemanha continua. E nós continuam com uma mina que navega nas agitadas águas europeias.

Bank Run na História

Voltemos ao fenómeno do bank run.
No início deste artigo foram listados alguns bank run da última década, mais ou menos. Mas não foram os primeiros. Eis uma lista de crises bancárias que foram causas de vagas de pânico:

Século 18:
Crise de 1763 – começada na Holanda (Leender Pieter de Neufville), depois Escandinávia e Alemanha
Crise de 1772-1773 – Reino Unido (Neal, James, Fordyce and Down) e Holanda
Pânico de 1792, New York
Pânico de 1796–1797, Reino Unido e EUA

Século 19:
Pânico de 1819, EUA
Pânico de 1825, Reino Unido (Bank of England)
Pânico de 1837, EUA
Pânico de 1847, Reino Unido
Pânico de 1857, EUA
Pânico de 1866, Europa
Pânico de 1873, EUA
Pânico de 1884, EUA e Europa
Pânico de 1890, Reino Unido e Argentina
Pânico de 1893, EUA
Crise de 1893, Austrália

Século 20:
Pânico de 1907, EUA
Grande Depressão, Mundial
Crise bancária de 1973–1975, Reino Unido
Crise bancária da Finlândia dos anos ’90
Crise bancária da Suécia dos anos ’90
Crise de 1994, Venezuela
Crise de 1997, Ásia
Crise de 1998, Rússia
Crise de 1999-2002, Argentina
Crise do 1998-1999, Ecuador, 

Como é possível observar, as crises bancárias e os consequentes bank run (mais ou menos acentuados) não são um fenómeno tão raro.

O importante é a Democracia 

Para acabar, uma nota de alegria: alguém entre os Leitores europeus votou no Target 2? No ESFS? No MES? Decidiu que o BCE não pode garantir as contas bancárias? Não?
Normal: a Zona NEuro é democrática.

Ipse dixit.

Fonte: Paolo Barnard, About.com, Wikipedia (versão inglesa)

5 Replies to “Target 2: a mina Bank Run”

  1. Olá Max: e se tivesse votado (fora por uma questão de princípio), faria diferença! As pessoas elegem em votações parlamentares (elegiam, em alguns casos, e não sabem o que é isso, noutros), e nem por isso a economia segue rumos em benefício da maioria, na maior parte dos lugares onde a representatividade é assunto dos interesses privados, é uma função da economia, um jogo de poder dominante (onde raramente as oligarquias perdem, e se perdem corrigem o desvio, cooptando),e mais um espetáculo da sociedade de representação.Acho que é a democracia que necessita voltar as origens,tornando-se direta para qualquer situação. Abraços

  2. Post interessante.
    Como já me é habitual estes tópicos são sempre uma complicação neste meu cérebro mal intencionado.

    "Teria sido lógico tornar responsável a única entidade capaz de emitir moeda, isso é, o BCE? Sim, teria sido.
    Então porque não foi feito? Porque se tivesse sido feito teria sido demasiado lógico e simples e, como sabemos, as dificuldades são o sal da vida."

    As dificuldades são o sal da vida e os juros um "pequeno" lucro para o BCE? 🙂
    Afinal o que é que realmente acontece com os lucros do BCE?
    Sim, vou rever os posts sobre o BCE 🙂

    Os alemães podem ter reduzido a exposição de investimentos em produtos financeiros de países problemáticos, mas pergunto-me a quem vão vender o que produzem se isto continua nesta queda livre.
    Afinal, os 2 dólares diários, que demasiada gente por esse mundo fora nem sequer isso ganha, não permitem comprar o que muitas vezes se quer exportar no "mercado global".

    E aqui pergunto-me mais uma vez por que razão se tenta salvar as poupanças mantendo-as em bancos cuja moeda é a mesma, ainda que os países estejam de longe melhor.

    É que estar de longe melhor agora não é estar imune sempre.
    Enfim, ideias soltas.

    Talvez seja do excesso de eufemismos que tanto se ouvem por estes lados ultimamente, mas chamarem "bank run" parece tão "eufemismo financeiro" para uma situação em que só me ocorrer a palavra pânico.

    Ao olhar para a lista de "bank run", a agência de rating Rita M. decidiu criar uma lista negra em papel como se faz para os cartões de crédito fraudulentos (todos têm a lista, quem se deixar enrolar e aceitar pagamentos, paga) na qual entram automaticamente todos os países que tenham "bank run" nos últimos três séculos. 😉

    Abraço
    Rita M.

  3. Max,

    Cada vez mais me surpreendo com o seu blog, não é que com a ajuda da Rita M., descobri um artigo aqui no blog sobre o BCE que está sempre actual:-).
    Esse artigo matryoshka, demonstra bem que o BCE é de privados e não dos Estados, que deixaram de ser soberanos e sujeitam as suas populações à ganancia dos donos dos bancos!

    Um abraço

    Zarco

  4. Bom dia Max!

    Pois eu fiquei com duas dúvidas:

    Em Portugal o estado não cobre 100%do depósito até 100.000 neuros ou até a república falir?

    Se eu sou um cidadão português o meu depósito num banco alemão não seria confiscado se a república portuguesa falir? Eu lembro-me de ler uma pseudonotícia sobre esta acção da Holnda e do Reino Unido sobre as contas de cidadãos da Islândia.

    Grato pela aprendizagem constante,

    JJ

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