A difícil guerra contra o Irão

Entre os comentários do artigo Guerra no Verão? há também o de Mário Nunes, que assim escreve:

Ai agora já crês que haverá guerra no Verão, pouco a pouco, acabam por me dar razão.

Mário, lembro, é o autor do blog Kafe Kultura, cuja leitura me permito aconselhar (está também no blogroll). E pensa que uma guerra entre EUA-israel dum lado e Irão do outro seja possível, talvez no prazo de poucos meses.

É possível?
Sim, claro: neste mundo tudo é possível, sobretudo quando no topo da pirâmide do poder encontrarmos pessoas desequilibradas.

É provável?
Acho que não, mas esta é apenas a minha opinião, baseada num ponto de vista racional.

Quanto vale a racionalidade? Não muito, sobretudo quando quem manda demonstra ter problemas que deveriam ser resolvidos com a lobotomia (total).

Do ponto de vista racional, volto a repetir, uma guerra é improvável. Vamos ver quais as razões.

O Irão, em síntese

O Irão, antiga Pérsia, era um País relativamente tranquilo no princípio do século XIX: o governo encontrava-se nas mãos da dinastia Pahlavi, que tinha negociado a exploração dos campos petrolíferos com a companhia Anglo-Iranian Oil Company (a actual British Petroleum, BP): ceder o próprio petróleo é a melhor maneira para manter a própria independência e implementar um são regime de corrupção.

Só que Reza Khan, o Xá, tinha ideias esquisitas: queria desfrutar o dinheiro das concessões para modernizar o País. Um erro, evidentemente. Por isso a Pérsia foi invadida pelos Soviéticos e pelos Ingleses no decorrer da Segunda Guerra Mundial, e isso apesar de ter declarado a própria neutralidade.

Reza Khan foi obrigado a abdicar e o novo Xá foi o filho, Mohammad Reza Pahlavi: pessoa sábia e justa que tinha como lema “retrogrado é bonito”.

Em 1951 foi nomeado primeiro ministro Mohammad Mosadeq, outra pessoa com ideias depravadas, entre as quais a pior de todas: nacionalizar a industria petrolífera. Mosadeq foi deposto e preso até a morte, mas a iniciativa foi a ocasião para eliminar a oposição interna e impor um regime cada vez mais autoritário.

Assim a Pérsia continuou uma vida de beata ignorância e pobreza enquanto as empresas petrolíferas (não apenas inglesas mas agora americanas também) somavam lucros.

Mas as forças do Mal conspiravam. E chefe delas era o Ayatollah Khomeini, individuo bastante assustador, diga-se.

Em 1979 deflagrava a revolução e Khomeini podia voltar do exílio em França para instaurar uma república islâmica. Na prática, a Pérsia passava duma ditadura para uma teocracia: difícil estabelecer qual a pior. Mas, pelo menos, com a teocracia chegava a república, as eleições e os recursos do País ficavam no País.

Obviamente o mundo ocidental ficou escandalizado: o problema não era tanto a teocracia, quanto o petróleo. E quando houver cheiro à petróleo, não podem faltar os Estados Unidos. Que antes tentaram apoiar o regresso do Xá e depois forneceram armas ao Iraque de Saddam Hussein na guerra contra o recém nascido Irão.

O resto da história é conhecido: Saddam Hussein já não está entre nós, o Irão ainda aí está. Por enquanto.

O problema é que o Irão apresenta uma posição única: além dos recursos petrolíferos, além das grandes reservas naturais de gás, o País ocupa uma posição estrategicamente central, sendo a verdadeira ponte entre dois mundos, Europa e Ásia.

E dado que a doutrina geo-estratégica americana prevê o controle da Eurásia como meio para controlar o mundo, o Irão é uma espinha na garganta do Império. Isso significa que, cedo ou tarde, os Estados Unidos tentarão ocupar o País: acerca disso não podem existir dúvidas, pois esta é a chave de toda a política planetária de Washington.

O problema não é “se” mas “quando”.
E aqui surgem os problemas.

Problemas técnicos 

Dum lado israel aos berros por causa da alegada potência atómica de Teherão, doutro lado a própria geo-estratégia e o petróleo: os Estados Unidos têm tudo para uma guerra contra o Irão. Mas esta é a teoria, a prática é um pouco mais complicada.

Washington vem de duas experiências militares bastante desgraçadas: no Iraque conseguiram derrotar o ex-aliado Saddam Hussein e favorecer as companhias petrolíferas ocidentais, mas a situação em Bagdad está longe de ser calma; reina a instabilidade, os atentados, as forças centrífugas e o País está de rastos.

No Afeganistão ainda pior: após dez anos de luta contra talebans e camelos, as forças ocidentais perderam o controle de boa parte do território setentrional e, de facto, a presença fica limitada aos grandes aglomerados urbanos. Até a construção do novo grande gasoduto está em atraso por culpa das dificuldades logísticas e da guerrilha.

Mas se no Iraque o adversário era um exército desmoralizado após anos de sanções económicas que tinham levado o País à fome e se no Afeganistão a guerra é contra os fanáticos do Kalashnikov, no Irão as coisas são bem diferentes: há um exército, com armas sérias, e há um povo que parece unido.

Uma guerra contra o Irão mais parece um deja-vu: lembram-se do Vietname?

Mais: invadir o Iraque tinha sido canja. Afinal é uma imensa planície, desde o Golfo Pérsico até o território dos Curdos, no Norte, passando pela capital, Bagdad. O Irão não: é um território difícil, inteiramente montanhoso, maior do que Iraque e Afeganistão juntos.

A população iraniana é composta por quase 70 milhões de indivíduos: também neste caso, mais de que Iraque e Afeganistão juntos.

O exército iraniano é composto por cerca de 500 mil efectivos em tempo de paz, mas, segundo as estimativas, em caso de necessidade poderia mobilizar 11 milhões de soldados.

Mais, o Irão produz as próprias armas: aviões, navios, tanques, radares, mísseis (curto, médio e longo alcance), sistemas anti-aéreos, submarinos…tudo feito “em casa”, tendo por bases projectos originais ou produção sob-licença (incluídos os drones MQM-107 Streaker, os mesmos utilizados pelos Estados Unidos).

Como termo de comparação, podemos lembrar que o exército de Saddam Hussein era composto por apenas 375 mil efectivos, mais poucos milhares de voluntários sunitas.

Resumindo: uma invasão parece fora de questão, pelo menos no curto prazo.

Isso não exclui um ataque de outro tipo, por exemplo um intenso bombardeio. Mas se um casus belli (um episódio que possa justificar a acção, apresentando o atacante qual vítima) não parece ser um problema (aliás, os Estados Unidos são peritos na criação de casus belli), as consequências são desconhecidas.

O Irão ficaria a observar os mísseis cair no próprio território? Improvável. Contra-atacaria? De certeza. E que aconteceria a seguir?

Ninguém pode responder.

Problemas políticos

Há também outro aspecto que não pode ser subestimado.

“Atrás” do Iraque não havia ninguém, “atrás” do Afeganistão não havia ninguém. Mas hoje a situação é diferente. Nas costas de Teherão encontramos Moscovo e Pequim. E faz toda a diferença.

Se a Rússia está preocupada com o equilíbrio das próprias regiões periféricas, no caso da China as razões são diferentes: Pequim precisa do petróleo (agora) e do gás (no futuro) do Irão. E ambos os Países conhecem muito bem a questão do controle da Eurásia.

Podemos pensar num Irão sob ataque com uma Rússia e uma China simples espectadores? Não parece.

A Rússia, como vimos no já citado artigo, mobiliza as tropas: pode ser apenas uma questão de táctica psicológica, mas é um sinal que não pode ser ignorado. Putin não entende relegar a Rússia ao papel de simples figurante no plano internacional e o Irão é um excelente teste para quantificar o “peso” de Moscovo.

Depois há a possível reacção de Pequim. Difícil pensar num envolvimento chinês directo num eventual conflito, mas em qualquer caso uma guerra EUA-israel-Irão precipitaria os já complicados relacionamentos sino-americanos e implementaria sólidas bases para o já agendado “Dia do Juízo”, quando a potência emergente e o Império em decadência terão que fechar as contas.

Interessante, neste sentido, quanto acontecido nos Estados Unidos: lembram-se do recente “ataque terrorista” contra o embaixador da Arábia Saudita (Outubro de 2011)? Um episódio muito esquisito.

Apresentado pela informação alternativa como um false-flag (um falso ataque), acho ter sido muito mais do que isso: a tentativa duma facção interna (com ajuda externa – Mossad?) para empurrar a administração Obama numa guerra contra o Irão. Tentativa acabada mal, pois foi a mesma administração americana a carregar no pedal do travão: a história desapareceu no prazo de poucos dias, sem deixar rastos.

Se os EUA tivessem desejado, o episódio não poderia ter constituído um casus belli, mas sem dúvida poderia ter sido o primeiro degrau da escada até o verdadeiro “ataque” contra os Estados Unidos. E com todos os navios americanos empenhados no Golfo Pérsico, nada de mais simples.

Pelo contrário, como vimos, a história foi deixada “morrer” no prazo de poucos dias.

Evidentemente em Washington há alguém que faz as contas: e as contas, por enquanto, não batem certas.

A propósito: não podemos esquecer que este é ano de eleições nos Estados Unidos. E se é verdade que os candidatos republicanos dão o melhor para conseguir a re-eleição de Obama (sim, leram bem), também é verdade que uma guerra não seria o máximo para arrecadar votos: afinal, os Americanos estão em guerra há dez anos e propor o começo duma nova aventura militar pode ter efeitos não previstos. Seria preciso um casus belli de primeira classe…

Problemas económicos

O último ponto contrário à hipótese da guerra, e ao mesmo tempo favorável, é a questão económica.

Apesar dos proclamas, a crise nos Estados Unidos está longe de ter acabado.

Os Estados Unidos reservam 4,7% dos PIB (dados de 2010) para as forças armadas: é um oceano de dinheiro, 692.000 milhões de Dólares (só como curiosidade: a China gasta 1,65% do PIB – 100.000 milhões de Dólares – para um exército que é o dobro…), e isso enquanto estão empenhados numa luta contra os mortos de fome do Afeganistão e os camelos deles.

De quanto precisariam as forças armadas em caso de guerra contra um País com o potencial militar do Irão?

Primeira pergunta: poderia Washington encontrar os fundos necessários?

Neste caso a resposta é “sim”, poderia. É claro que em casos de “ameaça à segurança nacional” nem os Republicanos poderiam impedir uma série de despesas extraordinárias e os fundos estariam disponíveis em breve tempo.

Mas, segunda pergunta: qual seria o verdadeiro custo para os EUA?

Porque “criar” dinheiro nas quantidades necessárias teria repercussões sobre a economia do País. E é muito complicado poder fazer previsões neste sentido, em particular no caso duma Nação que ainda não ultrapassou uma crise tão profunda como a actual.

Então, porque isso deveria representar uma condição favorável à guerra?

Porque desde sempre as guerras podem representar a solução para problemas políticos e económicos. A teoria da “guerra regeneradora” tem infelizmente bases realísticas. E alguém poderia decidir explorar tal teoria para tentar “empurrar” os Estados Unidos para fora duma crise (não apenas económica) que não tem fim à vista.

Tal como a Segunda Guerra Mundial foi o fim da Grande Depressão, uma guerra contra o Irão poderia relançar a potência americana.

Mas atenção: “poderia”, não “poderá”.
E a impressão é que em Washington os tempos verbais façam ainda bastante diferença.

Por enquanto, claro.

Ipse dixit.

6 Replies to “A difícil guerra contra o Irão”

  1. Excelente texto Max, tudo isso que tu colocou faz sentido, eu não entendo nada de estratégia de guerra, concordo quando tu diz que antes das eleições não haverá ataque, mas porque posicionam navios de guerra, porta-aviões e submarino nuclear nas proximidades do Irã? Estariam fazendo somente guerra psicológica? Todo esse aparato para nada? Para arrecadar votos? Para manter Netanyahu mais calmo?
    Ou estão esperando algum "ataque terrorista" como foi no 11 de setembro para justificarem a guerra contra o Irã, e assim obter o apoio "moral" da comunidade internacional?
    Eu espero meu amigo que você esteja repleto de razão, pois eu tremo só de pensar nessa possível guerra. Fico a imaginar até quando o mundo terá que baixar a cabeça e fingir que os EUA não é uma ameaça ao planeta?

    Um grande abraço meu amigo

  2. muito bom Max, mesmo.
    Para mim e alguns como eu não haverá mais do que guerra fria. O Irão é um bode expiatório que se presta muito a isso e como vemos, já não é a primeira vez. Está a tornar-se crónico, pois enquanto o mundo anda "borrado" de medo com isto, EUA impõe a sua ditadura económica mundo fora.
    Entretanto não haverá guerra por isto:

    A implementação bem sucedida da ERS exigia a "militarização" concorrente de todo o corredor euroasiático desde o Mediterrâneo oriental até à fronteira ocidental da China com o Afganistão, como meio de garantir o controlo sobre as enormes reservas de petróleo e gás, assim como de "proteger" as rotas de pipelines e os corredores comerciais. A invasão do Afeganistão em Outubro de 2001 apoiou os objectivos americanos na Ásia Central, incluindo o controlo dos corredores de pipelines desde a fronteira do Afeganistão até à fronteira ocidental chinesa. É ainda uma ponte terrestre estratégica ligando a enorme riqueza petrolífera da bacia do Mar Cáspio ao Mar Arábico.
    O processo de militarização previsto pela ERS é dirigido principalmente contra a China, a Rússia e o Irão

    A adopção duma agenda política neoliberal a conselho do FMI e do Banco Mundial é parte integrante da ERS, que pretende patrocinar "economias de mercado livre… [que] constituirão incentivos positivos para o investimento privado internacional, para o desenvolvimento do comércio e para outras formas de interacções comerciais.

    O acesso estratégico ao petróleo e gás do Cáucaso do Sul e da Ásia Central é uma característica central da Estratégia da Rota da Seda:

    "A nova rota de trânsito faz parte de um projecto mais vasto para construir dois pipelines paralelos ligando a China às enormes reservas de gás natural da Ásia Central. As tubagens percorrerão mais de 7000 quilómetros desde o Turquemenistão, através do Uzbequistão e do Casaquistão, e entrarão pela região de Xinjiang, a noroeste da China. O Uzbequistão iniciou a construção da sua parte enquanto o Turquemenistão iniciou o seu segmento em 2007". (ibid)

  3. Continuação:

    A National Petroleum Corporation da China (CNPC) que é a principal operadora do consórcio, "assinou acordos com firmas estatais de petróleo e de gás do Turquemenistão, Uzbequistão e Casaquistão, dando-lhes uma parte de 50 por cento nos seus respectivos pipelines". O projecto do pipeline PCC contraria a lógica da Estratégia da Rota de Seda da América. Faz parte duma estratégia energética e de transporte baseada numa Euroásia concorrente, dominada fortemente pela Rússia, pelo Irão e pela China.

    A estratégia euroasiática concorrente protegida pela aliança militar SCO-CSTO

    Os corredores baseados na Euroásia concorrente estão protegidos (contra o avanço dos EUA-NATO) por duas alianças militares regionais: a Shanghai Cooperation Organization (SCO) e a Collective Security Treaty Organization (CSTO) .

    A SCO é uma aliança militar entre a Rússia e a China e diversas antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central, incluindo o Casaquistão, o Quirguistão, o Tadjiquistão e o Uzbequistão. O Irão tem um estatuto de observador na SCO.

    A Organização do Tratado de Segurança Colectiva (CSTO), que desempenha um papel geopolítico fundamental em relação aos corredores energéticos e de transporte, funciona em estreita ligação com a SCO. A CSTO agrupa os seguintes estados membros: a Arménia, a Bielorússia, o Casaquistão, o Quirguistão, a Rússia, o Tadjiquistão e o Uzbequistão.

    A partir de 2006, os países membros da SCO e da CSTO efectuaram significativos jogos de guerra conjuntos e estão a colaborar activamente com o Irão.

    Em Outubro de 2007, a Organização do Tratado de Segurança Colectiva (CSTO) e a Organização de Cooperação de Xangai (OCs) assinaram um Memorando de Entendimento, estabelecendo as bases para cooperação militar entre as duas organizações. Este acordo SCO-CSTO, pouco referido nos meios de comunicação ocidentais, envolve a criação de uma forte aliança militar entre a China, a Rússia e os estados membros da SCO/CSTO. De notar que a CSTO e a SCO efectuaram exercícios militares conjuntos em 2006, que coincidiram com os realizados pelo Irão. Agosto, 2006).

    Embora se mantenham distintas do ponto de vista organizativo, na prática estas duas alianças militares regionais (OCS e OTSC) constituem um único bloco militar, enfrentando o expansionismo dos EUA-NATO na Ásia Central e no Cáucaso."

    Sinceramente não estou a ver uma guerra mundial globalizada… e sinceramente esta "guerra" já é velha… e ainda nada aconteceu.

    Abraços! 🙂

  4. Fada e Max

    Com o texto do Max e o comentário da Fada (que também foi de arrasar), só me resta a tranquilidade de saber que isso é só um terrorismo psicológico dos EUA.
    Pois o meu medo era imaginar mais inocentes mortos como no Iraque e Líbia.

    Um grande abraço aos dois

  5. Olá Burgos,
    Nem mais… A esta estratégia se chama o GRANDE JOGO, a guerra fria faz parte desse grande jogo. Como diz a Maria, "quem quiser entender a geo-estratégica, siga os pipelines".
    É o terrorismo permanente dos eUA sim, mas por outro lado, vão submetendo os povos ocidentais ao poderio sionista da banca.
    O Brasil que se cuide também e precisa não se distrair com estes jogos. É um País muito rico também e por isso na mira dos neoliberais.

    Um grande abraço amiguinho querido.

  6. Olá Fada: o mapa dos oleodutos construídos e em construção e/ou planejados nos ajudaria a compreender bastante coisa, tenho certeza. Mais uma ajudinha analítica do Max, creio que nos mostraria até que ponto este medo de guerra no oriente médio nos afasta de outros problemas cruciais do jogo de poder/dominação do império nesta década(África,Europa e América do Sul). Abraços, e bem-vindos a guerra fria do terceiro milênio.

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: