As dúvidas do Capitalismo

Eu sei que com este artigo vou atrair a ira de muitos Leitores. Mas enfim: paciência.
O assunto é: o Capitalismo.

Navegamos na internet, abrimos um jornal, ligamos a televisão: o que podemos encontrar são as críticas contra o Capitalismo, esta gangrena que destrói tudo o que encontra, tipo a avançada de Átila. Críticas ferozes, até fundamentadas, porque o sistema não funciona e cria profundos desequilíbrios e injustiças.

Tudo correcto, tudo verdadeiro. Mas algo não bate certo. Vamos ver, em primeiro lugar, quais as críticas? Olhem, boa ideia.

No Corriere della Sera do passado dia 21 de Janeiro é presente um interessante artigo-debate acerca do Capitalismo. Interessante porque mostra alguns erros típicos de quem critica o Capitalismo.

A crise financeira explodida no Outono de 2008 foi provavelmente a porta que introduziu uma nova fase, a da destruição ao invés da criação, da riqueza.

Eis o erro: não há nenhuma “nova fase”, o processo de destruição e criação são parte integrante da lógica capitalista. Como sempre, é só pegar num livro de história para perceber. A crise de 1929 (a “mãe de todas as crises”), por exemplo, não foi a primeira: simplesmente testemunhou a passagem para um novo tipo de Capitalismo, o da hegemonia americana.


Paradoxal, não é? Uma das crises mais profundas do actual sistema, crise nascida nos Estados Unidos, foi a porta da hegemonia de Washington. Mas é assim que trabalha o Capitalismo: destruição e criação. De facto, a crise de 1929 acabou apenas com o fim da Segunda Guerra Mundial, com o triunfo dos Estados Unidos: a crise tinha produzido um novo panorama geopolítico.

Mas isso tinha acontecido já antes: com a depressão de 1876-1896, a crise de 1907, a Primeira Guerra Mundial: a lenta queda do poder britânico e o surgimento dum novo quadro geopolítico.

E isso acontece agora: a crise de 2008 testemunha o fim da hegemonia americana e o nascimento dum mundo que, provavelmente, será multipolar.

É um processo que o economista Joseph Alois Schumpeter definiu com a expressão “destruição criativa”.

[…] O desconforto do Ocidente contra os novos capitalistas é muito maior porque, pela primeira vez, a classe média sente que a riqueza acumulada e a as desigualdades sociais são injustas, as riquezas não merecidas, não o resultado de empreendedorismo, mas o resultado de meros rendimentos e participação em redes de poder e dinheiro. Se o capitalismo se tornar um clube fechado, deixa de ser a força motriz no mundo que tem sido por décadas.

Nada disso. Se olharmos para a crise de 1929, podemos ver como a falta de empreendedorismo e as riquezas “não merecidas” já existiam no começo do século passado. A queda de Wall Street aconteceu depois de boa parte da middle class americana ter participado na loucura dos “meros rendimentos”: pessoas que pegavam nos próprios ordenados e investiam tudo em acções para no dia seguinte fazer caixa com uma boa dose de juros. Riquezas merecidas? Onde estava o empreendedorismo?

O que se passa agora é que as classes médias ocidentais experimentam o fim do welfare, isso é, daquele conjunto de mais valias que os modernos Estados capitalistas ofereceram ao longo de décadas: instrução avançada, sistemas de saúde, reformas.

[…] O modelo crescente é cada vez mais o centralizado da China. Em causa está a alma do capitalismo. E a questão que se levanta no Ocidente como no Oriente é esta: há ainda uma relação criativa entre o capitalismo e o mercado, ou o primeiro destruiu o segundo?

O modelo da China não é uma novidade absoluta mas, facto mais importante, é um modelo “a prazo”: pensar que a China será capaz de continuar nos mesmos moldes ao longo de décadas é ilusório, por várias razões. Apenas duas delas (talvez nem as mais importantes):

  1. Em primeiro lugar porque o modelo chinês funciona em contraposição ao modelo ocidental: que aconteceria se surgissem mais Países com as mesmas políticas de Pequim? E olharmos para o paradoxo duma economia mundial onde a maior parte dos Países funciona ao estilo chinês: todos que vendem e exportam produtos baratos, todos que mantêm o valor da própria moeda artificialmente baixo, todos mergulhados no problema das fontes energéticas (problema bem sentido na China, onde a falta do gasóleo, por exemplo, é patente), todos pagos com ordenados de fome…Não é um modelo sustentável, a não ser que seja mantido com a ajuda do exterior. É exactamente isso que acontece na China de hoje.
  2. Um segundo problema, que está a emergir na China, é aquele da classe trabalhadora. Obrigados a turnos cada vez mais extenuantes, com ordenados míseros, os trabalhadores chineses estão a experimentar as primeiras greves (além duma taxa de suicídios em contínuo crescimento). É o início duma revolução que não pode ser travada e que levará a China a aproximar-se dos modelos ocidentais. Claro, serão precisas décadas antes que isso aconteça, provavelmente será este o objectivo das novas gerações e não das actuais: mas é um processo que já observámos no Ocidente no século XIX.

Além disso não podemos ignorar o facto de ter sido o Capitalismo a forjar o modelo chinês: Pequim criou a própria economia tendo em mente unicamente a participação nos mercados internacionais. Ainda uma vez, foi o mercado que criou o modelo (o Capitalismo chinês) e não o contrário. E serão as dinâmicas do Capitalismo que ditarão o futuro económico e social da China, não o mercado.

A globalização tem trazido sob o guarda-chuva capitalista a maior parte do mundo: China, Índia, Vietnam e quase toda a Ásia, assim como muitos outros países uma vez atraídos pelas economias planeadas, como a África do Sul ou o Brasil. Nesses países, no entanto, não foi a economia aberta que triunfou […] Para construir as suas economias, muitas vezes os países ex-pobres recorrem à criação de grandes empresas estatais ou de regime, como no caso da China. Poderosos conglomerados que usam dinheiro público e influência política para encontrar espaços nas economias nacionais e internacionais. São as empresas de energia como a saudita Aramco, a Gazprom da Rússia, a Nioc do Irão, que agora dominam o negócio de petróleo e gás. […] A ligação entre o capitalismo e privado, em outras palavras já não é um dado adquirido: o capitalismo emergente é uma das faces do Estado (muitas vezes totalitário). Não só: o modelo chinês está tomando conta de muitas outras partes do mundo, por exemplo, na África e América Latina.

Outra vez: meus senhores, mas vamos ou não abrir estes raios de livros de história? O que era a ENI na Italia da década dos anos ’60? Era uma empresa criada para operar no sector da energia: petróleo, gás, electricidade. Era uma das maiores empresas italianas e da Europa. E era inteiramente estatal.

Mais: a origem da ENI deve ser procurada na década dos anos ’20, com a criação da Agip (1926) e mais tarde da Anic (1936), em plena época fascista. Todas grandes empresas do Estado para competir numa economia capitalista.

A criação de conglomerados estatais é uma passagem natural na dinâmica dum País que entra num novo mercado. Recuamos ainda mais? A Companhia Holandesa das Índias Orientais era uma emanação da Coroa holandesa (1602), tal como a Companhia Francesa das Índias Orientais (1664) ou a Companhia Britânica das Índias Orientais (1600). É uma forma para gerir em regime de monopólio um sector enquanto a sociedade constrói as bases para os futuros desenvolvimentos privados. Não há novidades nisso.

A verdade é que até hoje ninguém apresentou alternativas ao sistema Capitalista. Podemos falar das tentativas da Bolívia, do Equador, até da Venezuela: são experiências que no futuro poderão trazer novidades substanciais, sobretudo na óptica da participação dos cidadãos nas decisões importantes do País, mas que por enquanto operam todas no âmbito do Capitalismo. Até um bastião formalmente comunista, como Cuba, actua limitadas aberturas ao Capitalismo, e não por causa do embargo dos Estados Unidos.

Como afirmado, a grande revolta contra o Capitalismo no Ocidente hoje encontra as próprias motivações na redução ou na perda dum bem estar (o welfare) que parecia (e deveria) ser um dado adquirido. Mas reparem: não houve nenhuma revolução do proletariado, nenhuma tomada do Palácio de Inverno, foi um bem estar conseguido em regimes capitalistas e por forças capitalistas.

O Capitalismo é o melhor dos sistemas possíveis? Não, de certeza, e no futuro será ultrapassado por um regime melhor (pelo menos, esta é a esperança). Mas até lá, alguém pode apresentar uma alternativa viável, que não tenha já dado prova de fracassar?

Ipse dixit.

Fonte: Corriere della Sera

2 Replies to “As dúvidas do Capitalismo”

  1. Leitores simplórios… dualistas… fanáticos… esses você já vem expulsando faz tempo! 🙂

    Então acho que os atuais leitores não "torcem para um time"… eles são racionais… 🙂

    O problema de hoje, é o problema de sempre… a tirania e ponto final… não interessa o sistema… Capitalismo é apenas uma ferramenta… democracia é apenas outra ferramenta…

    Como pelo visto, estamos há milhões de anos para uma evolução intelectual na sociedade humana… temos que tratar a sociedade como crianças… educar… precisamos sim de estados fortes e de regras… muitas regras e punições… fiscalização… mecanismos anti-corrupção… censura anti-parcialidade… e um povo mais ativo com o Estado…

    Sonhaaaaar…. não custa nada! 🙂

  2. Olá generalizado: parece que não tem modelo político/econômico que não aponte para a utopia do bem estar, e realização humana. Só que a maioria dos humanos prefere a plena realização só para si, e no máximo a sua família, a custa do sacrifício dos demais.Humano, não?…demasiadamente humano! E aí, em se tratando de governança, as coisas se encaminham para tirania, como disse o Ricardo. Em se tratando de economia, as coisas se encaminham para o monopólio corporativista, do jeitinho que estamos todos, uns mais outros menos, a padecer.
    É uma droga, mas parece que entra período histórico, cai o velho de maduro e corrompido…e a porcaria se reconstitui, salvo pequenos oásis temporais e localizados.
    Continuo pensando que as possibilidade de sucesso do bicho homem radicam no compartilhamento, que ao nível do político rompe com a tirania, encaminhando-se para a gestão democraticamente partilhada do lugar de vida. Costumam chamar isso de democracia direta e também participativa. Sem dúvida, não é a realidade do império que cai(EUA), nem do que se levanta(China), mas vem sendo realidade em algumas cidades pelo mundo a fora, alguns estados por algum tempo, alguns grupos humanos por muito tempo.
    Já ao nível econômico,o mutualismo(trocas equilibradas, que beneficiem todos os contratantes) rompe com o monopólio corporativista, rumo a uma regulação da economia que os restrinja, e que só pode ser feita a base de tratados multilaterais, pela gestão de estados soberanos realmente voltados para o bem estar social, ou seja, funcionando com democracias participativas locais, regionais, nacionais, internacionais…federalizando-se.
    Confesso que nunca vi disso!! A não ser em espaços restritos, uma economia solidária, perfeitamente exequível.Enfim…"não tá morto quem peleia por isso", como dizemos nós gaúchos. Abraços

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