Quando o sentido do ridículo fugir

Os Portugueses gostam de fazer-se mal.
Não sei porquê, mas desde cedo após a minha chegada neste cantinho de Europa (um bom cantinho, diga-se) reparei que os Portugueses parecem ter que expiar alguma culpa.

Onde os outros Países encontram razões de orgulho, aqui desfruta-se a ocasião para falar mal.
Onde nas outras sociedades há um sentido civil forte que ajuda, aqui há a vontade de enterrar.

Lisboa neste aspecto representa o pior. Se ao passear depararmos com alguém que está a rir, observem o sujeito com atenção, pois provavelmente trata-se dum turista.

Não é uma crítica, é uma constatação. Que faz-me uma certa confusão. Não é comum, afinal, viver num País que pode apresentar 800 anos de história.

Eu tenho uma teoria acerca do assunto, mas não é disso que vamos falar agora.


Público do passado dia 24, ante-ontem:

Uso de arma eléctrica na prisão de Paços Ferreira 
motiva inquéritos

O disparo de uma arma eléctrica, a agressão e a humilhação contra um recluso indefeso da cadeia de Paços de Ferreira, em Setembro do ano passado, por elementos do Grupo de Intervenção de Segurança Prisional (GISP), estão a ser investigados em dois inquéritos, um aberto pela Direcção Geral dos Serviços Prisionais e outro pela Inspecção Geral dos Serviços de Justiça.

Dia 23, ontem:

Ministro da Justiça vai ao Parlamento 
explicar agressão de Paços de Ferreira
O ministro da Justiça vai ser chamado ao Parlamento para prestar declarações sobre o caso da agressão de um recluso na prisão de Paços de Ferreira, assim que haja resultados do inquérito.

Ordem dos Advogados vai analisar 
caso de preso agredido com taiser

É um “carnaval de violência e desumanidade”, considera o bastonário Marinho e Pinto.

PGR pede informações sobre actuação do MP 

A Procuradoria-Geral da República (PGR) já pediu informações à Procuradoria Geral Distrital do Porto, para saber se o Ministério Público actuou e se já abriu algum processo para apurar responsabilidades na actuação do GISP junto de um preso na cadeia de Paços de Ferreira.

Ao ler estas notícias, uma pessoa que não viva neste País é autorizada a pensar: “Epá, mas em Portugal são mesmo umas bestas. Agredir assim os coitados dos reclusos, com armas eléctricas e quem sabe quais outras brutalidades, nem a Gestapo!”.

Agora, tentamos ver as coisas dum outro ponto vista, pode ser?

O recluso em questão é um individuo com um historial de rebelião: o seu passatempo favorito é encher a cela com excrementos humanos (os seus, óbvio), atirar os mesmos acima dos guardas prisionais, recusar limpar, agredir os que entravam na sua cela, ao ponto dos restantes reclusos alojados no sector estarem a iniciar greve de fome e outros protestos por não suportarem a situação que estava a pôr em causa a saúde deles e dos funcionários.

Entendida a situação do “pobre recluso”? Muito bem.

Existe também o vídeo da “agressão” em questão. Relata o mesmo jornal:

 “Vai limpar a sua cela? Sim ou não?”, pergunta o homem fardado, voz alta e firme. É um dos seis elementos do GISP especialmente vocacionado para controlar motins nas prisões. Desta vez, não vai enfrentar nenhum desacato. A sua missão é resolver o problema do homem da cela 28. Um homem, só de cuecas, tatuagem a ocupar as costas todas, apático. Sentado na cama de uma cela imunda. No chão, há fezes, restos de comida, chinelos, pratos de papel.

“Não limpa nada?”, pergunta o guarda, voz poderosa, capacete e viseira. Então dá ordem ao recluso para se virar para a janela com as mãos atrás das costas, abre a cela. E apesar do recluso se mostrar colaborante, obedecendo, aponta às costas nuas do preso, uma pistola Taiser, uma arma que emite descargas eléctricas.

O preso é algemado, os seis homens fardados e de capacete, de luvas e de escudo, rodeiam-no, mas só um é que fala. Trata-o por “senhor” enquanto lhe dá ordens. Para se deitar, para se levantar, para se voltar de costas, para andar de “cabeça baixa”. E ameaça-o: enquanto não se comportar como um ser humano, “vai ser altamente violentado”. Levanta a voz: “Está compreendido?”

Eu vi o vídeo, transmitido à noite pelos telejornais, e ainda tenho que encontrar uma cena na qual o recluso “se mostrar colaborante”, mas vamos em frente.

Agora, eu poderia tentar defender a atitude dos guardas com os temas do costume: trabalho duro, trabalho difícil, mal pago.
Poderia realçar o facto destas pessoas arriscarem a vida, pois sabemos que há entre os reclusos quem gostaria de usar a violência pelo simples gosto de ser violento.

Tudo verdadeiro, tudo correcto, mas não vou por ai: simplesmente porque não há nada para defender.

Estamos a falar dum recluso que não apenas não colabora, como demonstra total desrespeito em relação aos funcionários e aos outros presos.
Estamos a falar dum recluso agressivo.
Estamos a falar dum recluso que gosta de humilhar os outros com o lançamento dos próprios excrementos.  

E apesar de tudo isso, o guarda ainda continua a trata-lo por “senhor”!

Os reclusos são em primeiro lugar seres humanos e como tais devem ser tratados, com o máximo respeito, até quando demonstrarem de ser seres humanos.
Mas quando as atitudes deixam de ser humanas?

Neste caso existem políticos de Esquerda (e não poderia ser diversamente), sempre prontos a defender o que não pode ser defendido.

O recluso? Torna-se uma vítima. O guarda? Um carrasco. As ordens? Uma humilhação.Uma arma normalmente utilizada pelas forças policiais de outros Países? Um instrumento de tortura contra os indefesos.

O sentido do ridículo foge e deixa o campo livre para declarações tanto bombásticas quanto desorientadas.

Já não é uma prisão, é um “carnaval de violência e desumanidade”. Isso dito por figuras institucionais, isso é, por aquelas pessoas que deveriam, mais do que as outras, ligar o cérebro antes de activar a língua.

E aqui entra em campo a “portuguesidade”: as culpas do recluso são esquecidas, o acontecimento chega a ser utilizado como exemplo para demonstrar que o sistema penitenciário do País é uma realidade digna dos lager nazistas, feita de violência (dos guardas, claro) e de abusos.

Nas prisões já não há profissionais, mas sádicos que humilham indefesos seres humanos (que não se percebe como é que ali chegaram: provavelmente foi culpa dum outro sádico, o juiz).

Um universo emergido dos piores pesadelos kafkianos.

Então há a mobilização das forças. Quais? Todas, ninguém quer ficar parado perante tamanho escândalo.

O Ministro da Justiça vai ao Parlamento para explicar a agressão (“agressão”?!?), o “Bestionário” da Ordem dos Advogados perde uma óptima ocasião para ficar calado e consegue ocupar os noticiários do País ao longo de alguns segundos (uns segundos de televisão não se recusam a ninguém), a Procuradoria-Geral da República (que evidentemente não tem assuntos mais importantes) pede informações à Procuradoria Geral Distrital (outros que pelos vistos não sabem como ocupar o tempo), para saber se o Ministério Público (notoriamente desempregado) actuou e se já abriu algum processo.

Falta a palavra do Primeiro Ministro (mas não tardará) e a do Presidente da República (“Peço para que todos nesta altura sejam responsáveis”).

É um autêntico orgasmo masoquista que captura o País todo ao longo de poucos dias. Justo o tempo de encontrar outro assunto mais escabroso para o qual escandalizar-se.

Só assim será possível perpetrar a frase ritual, uma sentença que é ao mesmo tempo um admissão de culpa velada de justificação, e que acaba a maior parte das conversas nos transportes públicos: “Enfim, só em Portugal”. 

Como acabará? Acabará da mesma forma como começou: com nada.
Mas a opinião que os Portugueses têm do País e de si próprios terá ficado corroída, mais uma vez.

Porque os Portugueses gostam de fazer-se mal.

Ipse dixit.

Fonte: Público

2 Replies to “Quando o sentido do ridículo fugir”

  1. Ih, Max.. No Brasil acontece tanta coisa pior do que isso. Aqui a criminalidade é tratada como banalidade.. E quando alguma autoridade trata de fazer o serviço bem feito, sempre vem alguém pra apontar o "coitadinho" e exigir direitos humanos para ele.

  2. Olá Anne!

    Más notícias estas. Como disse, nunca devemos esquecer os direitos dos culpados, que merecem o máximo respeito.

    Os presos devem ser vistos como pessoas que erraram (e errar é muito humano), que estão a pagar a culpa, e que uma vez acabada a pena terão todo o direito de re-inserir-se na sociedade.

    E merecem ajudam neste sentido.

    Mas não podemos atropelar os direitos dos não culpados ou, pior ainda, das vítimas.

    Uma sociedade sem a certeza da pena torna-se um mundo onde manda apenas a lei do mais forte.

    Talvez no futuro as coisas poderão mudar: um dia pode ser ultrapassado o conceito de erro = culpa = pena, mas para isso é preciso um grande salto em frente de toda a sociedade. E não é o caso actual.

    Um abraço!!!

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