O calmante e a Noz do Brasil

Ahhhhh, Sábado, até que enfim!
Por isso: nada de geopolítica, economia, chemtrails & C.
Paz, relaxe, quiete…

A creche e os calmantes

Vamos ver o que contam os diários.

A PSP fechou uma casa, na Rua Morais Soares, em Lisboa, que funcionava como creche ilegal e onde se encontravam 12 crianças a quem havia sido dados calmantes.

Esta coisa das creches ilegais fez-me sempre uma certa confusão: ninguém repara no trânsito de tantas crianças? Ninguém ouve o barulho (neste caso se calhar não, graças ao calmante)?

Pelos vistos a resposta é “não”, ninguém sabe, ninguém percebe, ninguém fala. Ok, tudo bem.

Os pais: eu não entregaria o meu filho numa instituição ilegal, eu quero que as condições sejam respeitadas. Todas.

Talvez seja eu que penso mal. Mas nem há a desculpa da crise: há crise? Então apresenta-se a declaração de rendimentos e os pais ficam a pagar uma quantia irrisória numa instituição pública ou privada.

Da dona da creche e “educadora” (!!!) nem vale a pena falar.

E já estou a ver, as crianças, deitadas, num sono profundo…

Falta algo

Quando eu era uma criança (uuuhhh!!!), costumava jogar na rua. As coisas funcionavam assim: de manhã escola, depois almoço, a seguir era sair, encontrar os amigos e jogar. Jogar, jogar, jogar. Às 17 ou 18 tempo de voltar, fazer os trabalhos de casa. Depois jantar e televisão (com os pais, não sozinho). 22:30 ou 23:00? Cama. E a seguir outro dia.
Desta forma cresci e acho ter pertencido a uma das últimas gerações, talvez a última mesmo, com este estilo de vida.
Um post nostálgico? Uma coisa do género “ah, os bons velhos tempos”? Nada disso. É uma comparação.
Pois vejo que o mundo agora mudou. Nas ruas já não há crianças. Onde estão?
Explicam-me: as crianças já não jogam nas ruas porque os pais trabalham: então os filhos ficam na escola o dia todo.
Tenho relatos de crianças que acordam às 6 ou 7 de manhã. Rápido pequeno almoço, depois carro e viagem até Lisboa, onde fica a escola. Da qual saem só à tarde, por volta das 17, 18, até 19 horas. Viagem de regresso, jantar, televisão (muitas vezes sozinhos), cama.
Eu acho que falta algo.
Não que as crianças fiquem com traumas, não é isso: as crianças têm uma capacidade de adaptação invulgar. Mas faltam outras coisas.
Quando eu estava na rua, a tarde toda, o jogo era também uma forma de exploração.
Ultrapassar os limites do bairro era uma aventura emocionante, era o encontro com o desconhecido. Que depois desconhecido não era, mas ficava como tal aos nossos olhos.

A caçadeira com sal

Então era correr até o poço onde estavam a crescer os girinos.
Era aprender que o agricultor tinha a caçadeira carregada com sal; que não aleija, mas “queima”, e muito e que por isso era bom comer as cerejas das árvores, mas depressa e sem dar nas vistas.
Era encontrar crianças das redondezas, que olhavam para nós com desconfiança.
Era correr atrás das miúdas.
Era pegar numa mola, num papel rijo e pôr o conjunto nas rodas da bicicleta, de forma a obter um som que fazia vagamente lembrar o duma mota.
Enfim, era crescer.

E hoje? Nada disso.
Verdade, é difícil colher cerejas no centro de Lisboa. Mas quanto ao resto?

As crianças jogam, e muito. Ninguém pode contestar isso. Mas jogam sozinhas, em frente dum ecrã na maior parte do tempo. É a mesma coisa que jogar na rua? Eu acho que não.
Falta o contacto. Falta poder inventar o que o computador (ou Play Station, ou Game Boy, etc.) não deixa inventar. Falta cair e descobrir que os joelhos estão arranhados. Falta sentir o frio, o calor, a transpiração.

Eu julgo estas coisas serem importantes.

Na minha altura faltavam os telemóveis (!!!). Isso não era bom, pois um telemóvel dá sempre jeito: pode ser preciso chamar, em qualquer altura e ser contactável é importante também.
Mas havia outras coisas.

A Noz do Brasil

 
Por exemplo, onde eu morava havia muitas pequenas lojas: a da verdura, o talho, a papelaria, a leitaria, etc. Foi aí que aprendi o que é o dinheiro.
E também aprendi que quando o troco era de 1 ou 2 cêntimos muitas vezes era substituído por um rebuçado.

As compras podem ser feitas hoje num centro comercial, mas não é a mesma coisa.
Num centro comercial ninguém te conhece, quem está na caixa não sabe quem tu és, não conhece a tua família, as tua preferências, os teus gostos. Não há diálogo, nem pode haver.
E, coisa ainda mais grave, os rebuçados são sempre pagos.

Lembro duma vez em que a minha avó tinha comprado algumas “Nozes do Brasil” (Castanhas-do-Pará, na verdade).
Ohhhhhhh!, espanto: a noz do Brasil! O nome era já um programa: exótico, de terras longínquas…eram abertas com cuidado, para não perder pedaços preciosos.

E saboreavam-se, como se o simples facto de ter na boca tal fruto desse acesso a lugares mágicos e misteriosos. Imaginava os Brasileiros, na Amazónia, todos a comer Nozes.

Hoje podemos ir em qualquer hipermercado e comprar um quilo de Nozes do Brasil. Onde está o encanto?

Acho que as crianças de hoje estão a perder muito.

Nota: este post é uma seca? Eu avisei: é Sábado!!!

Ipse dixit.
 
Fonte: Público

6 Replies to “O calmante e a Noz do Brasil”

  1. Nada de seca, muito bom. Eu felizmente passei pela mesma infância / juventude.

    Cumprimentos,

    Arcane_delight

  2. Caro blogger. Para mim, escreve muito bem. Assuntos muito bem tratados e revistos. Tanto aborda a actualidade e a vida do dia a dia, como vai rebuscar noticias fora do mainstream, colocando assuntos de interesse.
    Continue assim que vai continuar a ter em mim um leitor.
    P.S. Não mude para o novo acordo ortográfico, A Língua Portuguesa não merece rastejar, apesar do que os políticos querem.

  3. Max,

    adorei, lembrei de fatos da minha infância, viajei no meu passado, fui umas das últimas sortudas também.

    Pena das crianças que não tiveram e não vejo como poderão voltar a ter uma infância rica em experiências assim.

    Pena.

    Abraço amigo.

  4. Fiquei espantado.
    Sério, não estava à espera deste tipo de comentários.

    Aliás, pensei em receber coisas do género "Epá, Max, fala de geopolítica, de economia, mas deixa estas coisas para quem sabe escrever".

    Quando vi escrito "1 comentário" pensei "Pronto, agora perguntam se me sinto bem".

    Em vez disso, só boas palavras.

    Muito, muito obrigado a todos!

    Ou será "para todos"? Esta é uma coisa que ainda não aprendi… 🙁

Obrigado por participar na discussão!

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