Cui prodest?

No passado dia 27, Informação Incorrecta publicou um artigo (O dinheiro do povo) com o qual era referida a nova normativa que abrange o pagamento das coimas aplicadas aos partidos políticos.

Segundo um artigo do diário Público (O Chefe prevarica, o partido paga, o Estado devolve), do jornalista Nuno Sá Lourenço, as multas dos partidos podem ser inscritas na voz “Despesas” dos partidos políticos e subvencionadas pelo Estado.

Resultados: críticas, mail de protestos, até a “honra” do nome do blog aparecer no já citado diário. Que se passa?

Passa-se o seguinte: os partidos políticos negam de maneira firme a citada interpretação da lei, enquanto o Público e outros insistem.

O que diz o PCP

O Partido Comunista Português acaba de publicar na própria página internet um artigo com um título bastante claro: Sobre a notícia do jornal «Público» em torno das coimas aplicadas aos partidos
Aqui podemos ler o seguinte: 

Na verdade, esta manchete e notícia do “Público” inserem-se numa campanha mais vasta para denegrir a actividade partidária como elemento essencial da vida democrática do país, da participação cívica do Povo português, reconhecida e valorizada pela própria Constituição da República.

Mas visa essencialmente atingir o PCP, Partido que se distingue de todos os outros, pela sua história em defesa da liberdade e da democracia, pela sua prática e o seu projecto, e que está na primeira linha da luta contra a política de direita e por uma mudança de rumo de que o País cada vez mais precisa.

zzzzzzzzzz…eh? Ah, sim, tinha-me esquecido da verbosidade marxista-leninista. Mas enfim, vamos ao que interessa: no mesma página o PCP afirma o seguinte

Ao contrário do que o «Público» afirma […] as despesas declaradas, incluindo naturalmente as das coimas aplicadas aos Partidos, em nenhum caso são contabilizadas para a subvenção anualmente atribuída aos Partidos.

A alteração (coimas) que se verificou na legislação – Lei de Financiamento dos Partidos e das campanhas eleitorais – no artigo 12º, nada tem a ver com subvenções do Estado, mas sim com as regras e obrigações dos Partidos em relação ao seu regime contabilístico, discriminando as parcelas, quer de receitas, quer de despesas, quer de património, que aí devem constar. Tratou-se apenas de inserir uma despesa que existe na realidade nas obrigações contabilísticas dos Partidos. Alteração aliás que está de acordo com legislação aplicada a qualquer associação, cujas multas aplicadas aos seus dirigentes – desde que no exercício das suas funções – podem ser assumidas pela própria instituição.

A notícia do «Público» refere-se apenas às contas anuais dos Partidos, sobre as quais versa o Acórdão do Tribunal Constitucional referido, e não às contas de campanhas eleitorais, onde, aí sim, a lei determina uma ligação entre as despesas e a subvenção. Mas nem que o «Público» se estivesse a referir às subvenções para campanhas eleitorais (e manifestamente não estava) a notícia teria fundamento, uma vez que nestes casos a responsabilidade cabe inteiramente ao mandatário financeiro de cada campanha, que responde pelas contas e pelas suas eventuais irregularidades.

Até aqui, portanto, fala-se da subvenção aos partidos. Mas o que interessa é a questão das coimas. Onde ficam as coimas? E, sobretudo, quem paga? O Partido ou o Estado? 

Finalmente, é significativo que o «Público» não tenha considerado no mínimo estranho que a aplicação de coimas a que se refere, signifique, nas mesmas circunstâncias, para o PCP um valor de 30 mil euros e para os restantes Partidos de 3 mil euros, confirmando assim uma situação claramente persecutória em relação ao PCP. Multas que em vez de serem pagas pelo Estado como erradamente o «Público» sugere, são pagas pela contribuição dos militantes, activistas e simpatizantes do PCP.

Por isso, a explicação é clara e não deixa margem para dúvidas: quem paga as multas, segundo o Partido Comunista Português, são os militantes, os activistas e os simpatizantes do PCP, partido vitima, ao que parece, duma campanha denegridora perpetrada pelo diário Público.

O que diz a Lei

Que podemos fazer? Se calhar ler a lei? Boa ideia!

Diário da República, 1.ª série — N.º 248 — 24 de Dezembro de 2010.
  Lei n.º 55/2010
de 24 de Dezembro
Reduz as subvenções públicas e os limites máximos
dos gastos nas campanhas eleitorais
(terceira alteração à Lei n.º 19/2003, de 20 de Junho)

Artigo 12.º

[…]
1 — . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
2 — . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
3 — . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
a) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

b) A discriminação das receitas, que inclui:
i) As previstas em cada uma das alíneas do artigo 3.º;
ii) As previstas em cada uma das alíneas do artigo 4.º;

c) A discriminação das despesas, que inclui:
i) As despesas com o pessoal;
ii) As despesas com aquisição de bens e serviços;
iii) As contribuições para campanhas eleitorais;
iv) Os encargos financeiros com empréstimos;
v) Os encargos com o pagamento das coimas previstas
nos n. os 1 e 2 do artigo 29.º;

vi) Outras despesas com a actividade própria do par-
tido;

Como os leitores de Informação Incorrecta sabem, quem escreve aqui não é português: mas apesar do meu imperfeito conhecimento do idioma de Camões, nas modificações apresentadas pela Lei 55/2010 de 24 de Dezembro posso encontrar a seguinte frase:   

A discriminação das despesas, que inclui os encargos com o pagamento das coimas previstas nos n. os 1 e 2 do artigo 29.º.

E quais são estas coimas revistas nos números 1 e 2 do artigo 29 da Lei 19/2003?
Vamos ler a lei:

Lei 19/2003
Financiamento dos partidos políticos

Artigo 29.º
Não cumprimento das obrigações impostas ao financiamento
 

1 – Os partidos políticos que não cumprirem as obrigações impostas no capítulo II são punidos com coima mínima no valor de 10 salários mínimos mensais nacionais e máxima no valor de 400 salários mínimos mensais nacionais, para além da perda a favor do Estado dos valores ilegalmente recebidos.
2 – Os dirigentes dos partidos políticos que pessoalmente participem na infracção prevista no número anterior são punidos com coima mínima no valor de 5 salários mínimos mensais nacionais e máxima no valor de 200 salários mínimos mensais nacionais. 

Vamos ver se o meu escasso Português dá para entender:

Os dirigentes dos partidos políticos que não cumprirem a lei do financiamentos aos partidos  são punidos com coimas (Lei 19/2003); estas coimas podem agora ser inscritas nas despesas dos partidos (Lei 55/2010).

Correcto? Correcto.

Primeira pergunta: porque as infracções dum dirigente devem ser consideradas “despesas” dum partido?
Imaginem se fosse aprovada uma lei com a qual as multas dos dependentes fossem inseridas nas despesas duma empresa.

“Ficaria gorada a intenção legislativa de responsabilização pessoal, duplicando-se, de algum modo, a responsabilização do partido infractor, entretanto sancionado.”, como bem disse, há três meses apenas, o Tribunal Constitucional (TC) que travou a pretensão dum partido em transferir a responsabilidade duma coima dos seus dirigentes para um órgão interno.
“Mas” pode ser a objecção “as despesas dos partidos não dão direito a reembolso”.
Justo. E a diferença pode ser substancial. Pode. Pois as despesas eleitorais são calculadas para a subvenção estatal.

Agora nova pergunta: mas uma vez inscritas as coimas na voz “despesas”, que acontece? E aqui temos um problema.

Como acabámos de ver, e tal como afirma o PCP, a subvenção do Estado nada tem a ver com as despesas dos partidos. Pelo menos em teoria. Na prática, a legislação cria um área cinzenta de difícil interpretação. Vamos ver porquê.

Simplificando ao máximo: a Lei portuguesa admite que um partido veja reembolsadas as despesas da própria campanha eleitoral. Os partidos não podem receber mais do que gastam.

Dúvida: e se um partido “enchesse” as despesas de campanha para obter mais dinheiro? Como? Por exemplo ao declarar despesas partidárias as coimas.

É uma dúvida legitima? Acho que sim.
Vamos ler o que escreve ainda o Público:   

A confusão que os partidos fazem entre contas de campanha e contas dos partidos é uma das críticas que a lei ainda em vigor recebe. E que, segundo especialistas, piorou com as alterações.

Exemplo desse cruzamento perigoso entre as duas contabilidades é a nova redacção do número 2 do artigo 16.º da lei:

Os partidos podem efectuar adiantamentos às contas das campanhas, designadamente, a liquidação de despesas até ao recebimento da subvenção estatal.

Como se tal não bastasse, no mesmo artigo passa a estar definido que a

utilização dos bens afectos ao património do partido, bem como a colaboração de militantes, não são consideradas nem como receitas nem como despesas de campanha“. 

Desta forma, as coimas dum partido seriam, de facto, pagas pelo Estado. Isso é, por todos nós.

O que digo eu

Por isso: a minha ideia é que a “explicação” do Partido Comunista Português acaba com o ser correcta mas não exaustiva, tal como os comentários feitos por outros representantes políticos.

Posso estar enganado. Aliás, espero que seja isso, seria um bom sinal: vivemos tempos difíceis e não pode haver espaço para dúvidas deste tipo.

Mas posso ter acertado. E isso seria particularmente grave. Qual a necessidade de escrever as coimas dum partido nas despesas? O que não tinha funcionado até hoje e levou a esta alteração? Quais as vantagens da nova legislação? O que ganha o Estado (isso é, todos nós) com isso?

Gostaria que alguém pudesse responder a estas perguntas.

Entretanto, continuo a pensar, tal como o investigador do Instituto de Ciências Sociais, Luís de Sousa, que a revisão da lei do financiamento dos partidos representa um “retrocesso” em termos de transparência. 
Ipse dixit.

 

Fontes: Público, Partido Comunista Português, Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, Diário da República (pdf)

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