Bemba

O senhor que aparece na fotografia é Jean-Pierre Bemba, antigo Vice-Presidente da República Democrática do Congo, condenado em 2016 pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra, incluindo homicídio, violação e pilhagem.

Obviamente, esta notícias não foi um grande sucesso entre os órgãos de comunicação internacionais: falar das condenação de Bemba teria significado explicar ao público as razões do processo, o que não é muito divertido. Qualquer pessoa que utilize um computador, um tablet, um smartphone ou produto similar, de facto já foi um cliente de Bemba porque assassinatos, violações e pilhagens foram em grande parte motivados pela necessidade de controlar as minas de coltan e outros minerais dos quais o Congo está bastante bem abastecido. Estes minerais são utilizados pelas multinacionais electrónicas para exactamente isso: produzir computadores, tablets, smartphones e parafernália toda.

Como é que funciona? Simples: se uma empresa multinacional quer minerais baratos através de intermediários, fornece aos bandos armados locais os meios (espingardas e munições) para escravizar as crianças e força-las  trabalhar nas minas a custos inexistentes, sem protecção ou segurança. As crianças são valiosas porque são pequenas, podem facilmente enfiar-se em estreitos túneis para extrair o mineral. Depois são crianças, mais fáceis de gerir do que um adulto, nada de sindicatos ou rebeliões.

Ah, um pormenor interessante: o coltan é radioactivo. Mas fique descansado o Leitor: é radioactivo apenas na forma mineral em que é extraído, com as mãos, pelas crianças congolesas. São elas que adoecem e morrem: quando chega no produto acabado, como o seu telemóvel, o coltan já é inócuo.

Enquanto as crianças adoecem e morrem nas minas, os bandos armados matam homens, violam mulheres e raparigas que vivem em zonas minerarias para expulsar aqueles que têm a infelicidade de lá viver. E não falemos de alguns incidentes isolados: segundo a UNICEF, só em 2009, cerca de 18.000 vítimas de violência sexual no Congo procuraram assistência médica. Uma análise do American Journal of Public Health fala de 400.000 mulheres violadas no Congo entre 2006 e 2007: uma média de 1.152 violações por dia, 48 por hora, quase uma por minuto.

De vez em quando, acontece que alguns bandos armados conseguem tornar-se mais fortes do que os outros, então tomam o controlo do Estado e entregam os membros dos bandos armados que perderam às autoridades internacionais. E por está razão que o simpático Bembo foi processado e condenado.

Este joguinho tem vindo a decorrer há vários anos e ainda está a decorrer. É claro que há activistas que tentam fazer algo, mas no geral acabam mal. Tal como Pascal Kabungulu Kibembi, Secretário-Geral dos Héritiers de la Justice, que foi morto em frente da sua família em 2005. Ou como Floribert Chebeya Bahizire, um activista dos direitos humanos que também foi elogiado pela ONU, convidado em 2010 para uma reunião com o Chefe Nacional de Polícia do Congo e encontrado morto no seu carro com sangue e ferimentos nos vários orifícios do corpo. Ou ainda Padre Vincent Machozi, que tinha denunciado o tráfico desumano atrás do coltan durante anos, morto a 22 de Março de 2016 na sua igreja por um pelotão de soldados.

Perante isso, poderiam os entes responsáveis não ter feito nada? Sim.

Os Estados Unidos, por exemplo: emitiram o Dodd Frank Act em 2010, que deve vincular alguns produtos a uma certificação de origem dos materiais utilizados, para limitar a utilização de minerais originários de Países “maus” como o Congo. Aparentemente uma boa medida, na realidade um zero absoluto porque o decreto não obriga os Países que actuam como intermediários a verificar as condições nas quais o mineral é extraído. Pelo que: os minerais são extraídos por meios desumanos, depois enviados para Países vizinhos que actuam como intermediários e “limpam” a origem dos minerais antes de os venderem às multinacionais.

Como é que isso é sabido? Muito simples: os Países que fazem fronteira com o Congo, e que não têm coltan nos territórios deles, estão a vender grandes quantidades do mineral.

A União Europeia não poderia ter ficado atrás e elaborou uma lei para evitar estas atrocidades: uma lei que prevê a auto-certificação por partes das multinacionais sobre a origem dos minerais utilizados na cadeia de produção. Exacto, uma auto-certificação: é a mesma multinacional que diz “Sim, sim, tranquilos, verifiquei e está tudo bem”. Uma garantia. Depois alguém deve ter-se queixado e eis que a auto-certificação foi tornada discricionária, ou seja, nem sequer obrigatória. Desta forma, temos a certeza de ter em casa produtos obtidos através de escravatura e violação em série.

O coltan

O coltan, como explica Wikipedia:

uma mistura de dois minerais: columbita e tantalita. Em português, essa mistura recebe o nome columbita-tantalita. Da columbita se extrai o nióbio e da tantalita, o tântalo.

Minerais com características muito valiosas: alta resistência térmica, electromagnética e corrosiva, sendo que o nióbio tem potencial como supercondutor. Por estas razões, podem ser encontrados em:

computadores portáteis
telefones celulares/smartphones
motores a jacto
foguetes
ferramentas de corte
lentes de câmara
filme de raios X
impressoras de jacto de tinta
aparelhos auditivos
pacemakers
airbag
módulos de ignição e controlo de motores, GPS, sistemas ABS em automóveis
consolas de jogos (Playstation, Xbox e Nintendo)
câmaras de vídeo
câmaras fotográficas digitais
equipamento de processo químico
sistemas de protecção catódica para estruturas de aço, tais como pontes, tanques de água
dispositivos protésicos para humanos: ancas, placas no crânio, também malha para reparar osso removido após danos por cancro
clips de sutura
parafusos e porcas resistentes à corrosão
forno a alta temperatura.
ligas de alta temperatura para turbinas aéreas e terrestres

E o coltan é apenas um dos metais raros utilizados pela indústria electrónica.

Tudo é bem aquilo que acaba bem

Acabou? Nem por isso: este artigo começou ao falar do antigo Vice Presidente do Congo, Jean-Pierre Bemba, condenado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra incluindo homicídio, violação e pilhagem. Ora bem, o simpático Bemba foi absolvido em 8 de Junho de 2018. Os fundamentos da sua absolvição são peculiares: embora tenha sido considerado culpado de crimes de guerra, violação e pilhagem, parece que a sua sentença original de 18 anos de prisão foi proferida considerando um leque demasiado vasto de homicídio, violação e pilhagem. Bemba só teria sido comprovadamente responsável por 1 homicídio, a violação de 20 pessoas e 5 actos de pilhagem. Por esta razão, a juíza Christine Van den Wyngaert e os seus dignos colegas Chile Eboe-Osuji e Howard Morrison pensaram bem aceitar o recurso, invalidar o processo e absolver o arguido. A justiça triunfou.

Desta forma Bemba voltou para o Congo onde tencionava concorrer pelas eleições presidenciais. Infelizmente, e apesar de ser considerado o candidato mais forte da oposição, a sua candidatura foi revista pela Comissão Nacional Eleitoral Independente do País e foi-lhe impedido de concorrer. O pobre Bemba conseguiu ultrapassar o trauma uma vez eleito Senador do Congo, cargo que ainda está a ocupar.

 

Ipse dixit.

One Reply to “Bemba”

  1. Olá Max: tudo é fruto de uma grande farsa, aquela que fecha olhos e ouvidos do ocidente, e faz pensar que a África reúne povos atrasados e violentos que por motivos étnicos e religiosos vivem se matando uns aos outros. Enquanto isso os EUA financiam a eleição de gente corrupta, capaz de vender a alma para participar dos lucros. Enquanto isso o mesmo país das liberdades financia empenhos filantrópicos e campanhas, tipo “Salvemos Darfur” ( outro lugar africano amaldiçoado por suas riquezas ) para demonstrar a civilidade e compaixão do ocidente.
    Poucos sabem que nos lugares onde o capitalismo está acima de tudo, só interessa tirar vantagem, obter lucros. E, se for conveniente massacrar povos inteiros, absolutamente não interessa. Todas essas manobras macabras do império atual se desenvolvem em conluio com as organizações internacionais, cujos tribunais são exatamente iguais a todos os tribunais.
    E não pensemos que o capitalismo chinês é diferente, só porque é gerido por um Estado forte de partido único. Esse mesmo Estado se associa as suas grandes empresas para se necessário, matar, usurpar… Não é a toa que tropas chinesas protegem a exploração de petróleo e extração de minerais de regiões que obtiveram licenças para explorar no subsolo africano.
    Dominado pelo capitalismo sem freios, a vida se transformou numa farsa mundial, onde ganha quem pode mais, pisoteando quem fica para trás e jaz no desconhecimento e na miséria.
    O pesadelo africano é consequência das suas imensas riquezas, onde se misturam farsantes para todo gosto. E, se alguém quiser separar a farsa da verdade, não busque nos tribunais internacionais que já condenaram e mataram muito mais gente sem mácula e que lutou pelo seu povo. Procure pelos acontecimentos verdadeiros, como a tortura e morte por mercenários colombianos sustentados pelo império ,do Coronel Kadafi, Procure por aqueles que são massacrados pelas mídias (uma das muitas garras do capitalismo predatório). Aí poderão encontrar gente menos cruel, e mais a serviço dos seus pobres. Quantas vezes já tentaram matar Brizola, Fidel Castro e Putin, por melhorarem as condições de vida dos seus povos, e lançarem-se numa verdadeira pacificação do mundo, só para exemplificar? Brizola foi definido como caudilho, Castro como ditador sanguinário e Putin que reúne todas os demônios do mundo.
    Um mundo aparente, pintado como realidade que não tem nada a ver com a verdade do mundo. Muito bom artigo Max.

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