Yemen: a maldição do Qat

O Yemen não é apenas devastado pela guerra e pela fome: há algo mais, uma droga que atira milhões de pessoas para um vício que mata.

O seu nome é Qat (ou Khat) e é uma planta nativa das regiões orientais da África, como Etiópia e Somália, mas também difundida na Península Arábica, particularmente no Yemen. As folhas dessa planta contêm um alcaloide com acção estimulante que gera euforia e estados de excitação, tal como as substâncias anfetamínicas e psicotrópicas. Na prática, é algo que faz lembrar a cocaína.

As folhas do Qat são mastigadas, depois são mantidas nas bochechas de forma que, à medida que as horas passam, a substância é absorvida e posta em circulo no organismo. O efeito excitante ocorre ao longo de duas ou três horas após a ingestão e dura cerca de outras duas horas para depois descer lentamente. Na fase de pico, a substância inibe a fome e o cansaço, faz sentir o consumidor forte e vigoroso.

Como outras substâncias, o Qat também gera dependência, embora de forma limitada, e após o efeito há o cansaço e a ansiedade para obter outra dose de Qat, mas em maiores quantidades para ultrapassar o hábito e obter o mesmo efeito estimulante.

Os números relatados pela Organização Mundial de Saúde são assustadores: 90% dos adolescentes do Yemen assumem Qat de forma regular, tal como 73% das mulheres.

O que impressiona, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são os números relativos às crianças: 20% delas, no Yemen, mastigam Qat. Dado que no País a população com menos de 15 anos é de 13 milhões, estamos a falar de 2 milhões e meio de crianças que assumem a droga todos os dias.

O Qat como ritual social

Segundo algumas fontes, o Qat foi cultivado pela primeira vez na Etiópia e o explorador Sir Richard Burton sugeriu que a planta tivesse sido posteriormente introduzida no Yemen durante o século XV.

De facto, entre as comunidades do Chifre da África (Djibuti, Etiópia, Somália) e da Península Arábica, a mastigação do Qat tem uma longa história como costume social que remonta a milhares de anos. Os cultos do antigos egípcios consideravam a planta como uma substância sagrada, capaz de aproximar os usuários ao divino. Portanto, a droga era consumida de forma cerimoniosa na tentativa de alcançar experiências místicas, transes sistémicos e outras experiências metafísicas. Os sufis também usavam o Qat para intensificar as suas experiências místicas e facilitar o senso de união com Deus.

Ainda hoje há um aspecto social do Qat: é um modo para fazer parte da comunidade, enquanto para os mais jovens representa uma forma de iniciação no mundo dos adultos. As folhas de Qat, recolhidas, limpas e armazenadas, são depois vendidas em mercados locais e, no final do dia, milhões de iemenitas costumam reunir-se nas ruas, nos cafés, para mastigar as folhas em grupos. O ex-Presidente iemenita Ali Abdallah Saleh, considerava o Qat igual ao chá e costumava utiliza-lo tal como acontece entre outros homens das instituições, o que favoreceu um clima de permissividade e de difusão.

As autoridades religiosas só recentemente consideraram essa substância ilícita. Da tarde até as primeiras horas do pôr do sol, milhões de iemenitas estão sob a influência da droga que, se tomadas em grandes doses, podem gerar crises psicóticas e delírios de perseguição, depressão, transtornos do humor, aumento do apetite sexual ou disfunções do sistema reprodutivo.

O Qat e o desperdício de recursos hídricos

A OMS estima que cerca de 60% das terras aráveis ​​no Yemen são hoje utilizadas para a planta do Qat. Entre 1970 a 2000, os hectares dedicados à droga aumentaram de 8 mil para 103 mil, com uma procura interna que continua a crescer.

O problema dessas plantações, muito lucrativas, está na água: o Qat é uma planta muito resistente mas precisa de grandes quantidades de água. Segundo Qahtan Asbahi, especialista em recursos hídricos da Universidade de Sanaa, cerca de 30% de toda a água do subsolo iemenita é destinada ao cultivo da droga, algo que está a ter consequências directas no abastecimento de água no País.

Desde 2010, o esgotamento dos recursos e a fome estão a atirar inteiros sectores da população numa condição de pobreza total. É um círculo vicioso: a guerra e a fome favorecem a difusão da droga, o cultivo maciço do Qat subtrai os já escassos recursos.

O tráfico de Qat

Depois de quase 5 anos de guerra no Yemen, as baixas entre as crianças já foram cerca de 6.500. Os sobreviventes, muitas vezes em condições de miséria ou órfãos, trabalham no tráfico de Qat para conseguir manter-se em vida. Isso alimenta os grupos criminosos: o tráfego mais lucrativo é para a vizinha Arábia Saudita, onde a substância é ilegal mas onde a procura encontra-se em constante crescimento.

20 kg de Qat são vendidos em troca de 400 Dólares: poucos Dólares vão para as crianças, o resto acaba nos cofres dos chefes locais deste submundo. Há alguns meses, Al-Jazeera relatou a história de um menino de 14 anos que, parado na fronteira entre o Yemen e a Arábia Saudita enquanto transportava ilegalmente o Qat, foi vítima de abuso sexual por parte de guardas fronteiriças sauditas.

Qat, subsistência e maldição

O Qat é um problema económico para as famílias dos consumidores: cerca de 50% do orçamento de uma família iemenita é investido na compra da droga, com forte repercussão no poder de compra das necessidades básicas. Isso sem contar as implicações nos programas educacionais e as consequências médicas.

O consumo do Qat provoca deformações das bochechas dos mastigadores usuais: abrasão, peridontite e ulceração das mucosas internas da boca, afectadas pela mastigação, são frequentes e devidos aos estados inflamatórios crónicos. De facto, além da presença benéfica de pequenas quantidades de açúcares, sais minerais e vitamina C, as folhas contêm quantidades consideráveis ​​de substâncias tânicas, irritantes e antinutricionais.

A permanente irritação das mucosa da boca e do tecido esofágico produzem aumento na frequência de carcinomas orais. A perda de peso e a desidratação produzem o envelhecimento do tecido, que perde elasticidade, acompanhado por debilidade física. A mesma diminuição na ingestão de alimentos e a ingestão paralela de substâncias irritantes induz desordens do aparelho gástrico, o que pode produzir uma maior incidência de neoplasias.

Outros efeitos que ocorrem são as patologias relacionadas à insónia, a perda de apetite, a recorrência de distúrbios intestinais, as alterações do humor (irritabilidade) e, em alguns casos, as manifestações de características depressivas. Aumentos de casos de psicoses tóxicas, paranoicas e maníacas foram relatados em consumidores crónicos de Qat, justificados pela natureza anfetamínica dos ingredientes activos.

Todavia, num País devastado pela guerra, o fenómeno é considerado mais ou menos como “normalidade”. O Qat, a sua produção, recolha e venda, continua a ser uma importante fonte de subsistência, se não primária, para milhões de famílias iemenitas que, sob os bombardeios da coligação árabe e dos ataques das milícias Huthi, tentam desesperadamente sobreviver. Para muitos, o Qat é a única forma de fugir, temporariamente, dos horrores diários: a droga é uma fonte de subsistência mas ao mesmo tempo uma maldição para uma terra que um tempo era chamada de Arabia Felix (“Arabia Feliz”), único canto verde da península, onde hoje mais de dois terços da população vive abaixo do limiar da pobreza, no meio da guerra.

 

Ipse dixit.

Fontes: World Health Organization, The Economist, Small Wars Journal, NCBI, BMC Public Health, Questia

2 Replies to “Yemen: a maldição do Qat”

  1. A banalização da desgraça é talvez um dos maiores trunfos dos que mandam: o genocídio é incrementado. Mas também deve ser uma benção para os usuários: permite-lhes fugir da realidade concreta e diminui o tempo de vida dos por ela desgraçados.
    Onde isso não acontece? Nos Estados de forte controle social onde esse mesmo Estado quer súditos fortes, sadios e produtivos. O controle social tornou-se tão onipresente na China, por exemplo, que muitas cidades já funcionam com cartões de comportamento social, que beneficia os bem adaptados ao sistema e pontua proibições para os desviantes das regras sociais
    do sistema. Assim atravessar a rua sem atender ao semáforo, tira pontos, adquirir bebidas alcoólicas em excesso faz cair a pontuação e por aí vai. Os custos dos que infringem regras do bom viver chinês vai desde não poder viajar para o exterior até não conseguir comprar uma passagem em trem de alta velocidade. Acho bom isso? Não, mas é também com isso que os chineses levantaram a cabeça. Na Rússia os opositores ao regime engrossam as fileiras das prisões ou são expulsos ou eliminados sem mais delongas. Acho isso bom? Não, ms é assim que a Rússia saiu dos escombros neocapitalistas.
    Qual é o bom então? Aquilo que devido à banalização do absurdo, tornou-se conduta geral: a morte em vida para os pobres do mundo e o poder exacerbado dos donos. Decididamente isso é péssimo!! Realmente hoje já não sei o que dizer para obter uma vida equilibrada entre todos, sem desgraças, e com dignidade para todos os entes sociais.
    Por favor, que não se culpe as drogas e sim a miséria da maioria amplamente admitida. A maioria dos ricos usam drogas de forma recreativa e da mais pura que houver. Com exceção de alguns idiotas entre eles que morrem de overdose, a maioria mantém saúde invejável e ótima aparência. Como sempre aos pobres do mundo é reservado o lixo de tudo , já que lixo descartável eles também são.

  2. Isso. O rico cheira coca, o pobre cheira cola. E como dizia aquele antigo merchan dos anos 80 : “Coca Cola é isso aí”.

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