Síria: de como “corroer a confiança do público no jornalismo de guerra” e de outras minúcias

Chegado a um certa altura, o autor dum blog como este poderia limitar-se a fazer copia-cola dos velhos artigos, mudar a data, algumas palavras e depois ir a passear com o cão. Ninguém daria por nada e o Leo agradeceria.

O vídeo. Ah, pois o vídeo. O novo vídeo-shock de Internet, que tantas lágrimas fez correr.
Este vídeo:

ATENÇÃO!!!
Este vídeo é falso mas contém imagens falsas que podem abalar a sensibilidade do espectador verdadeiro.



Sim, exacto: é um falso. Mais um.
Não houve nenhum menino, nenhum franco-atirador. E não é uma ideia “conspiracionista”: é o realizador que admite isso. O norueguês Lars Klevberg informa o público: um dos objectivos declarados era “ver como os media iriam reagir perante um vídeo falso”.

E bravo Lars: desmascaras um vídeo falso com uma declaração falsa.
Porque o alegado “objectivo” é sem sentido: todos sabemos como os media reagem perante um vídeo construído mas útil aos objectivos de quem o encomendou. Quantos vídeos falsos já andaram por aí? Dezenas? Centenas? Como reagiram os media? Sempre da mesma forma: actuando como uma caixa de ressonância.

Porque o que importa não é o vídeo em si, mas o efeito que provoca. Não importa que agora o simpático Lars venha a dizer “Ehi, é um falso!”, o vídeo já atingiu o verdadeiro objectivo. Que era provocar uma reacção emotiva.

Sim, claro, agora o nosso lado racional pode classificar este vídeo como “enganoso” e elimina-lo (e de facto o original já foi retirado do Youtube). Mas a emoção provocada ainda lá está, intimamente ligada aos termos “Síria” e “franco-atiradores sirianos”. Da próxima vez que ouvirem o nome da Síria, muitos terão uma reacção do tipo “cão de Pavlov”. É um pouco como ver o fogo: ninguém põe a mão no meio das chamas, é o instinto que proíbe isso ainda antes da racionalidade.

Os media sabem isso. Quem manda sabe isso. É por esta razão que continuam a circular vídeos falsos. Depois os outros órgãos de comunicação continuam o trabalho sujo, apelando também ao nosso lado racional. 

O Guardian titula: “Menino sírio salva menina dos franco-atiradores do Exército”. Pronto, os franco-atiradores são do Exército. Não aparecem no vídeo, em lado nenhum está escrito que sejam do exército, mas o Guardian assim decidiu.

O Internacional Business Times (IBT), tal como o Guardian,  afirma que “os atiradores devem ser procurados entre as forças do governo leais ao presidente Bashar al-Assad”. Ao que parece, o exército regular da Síria tem uma espécie de direito natural sobre os assassinatos de crianças e IBT confirma: “certamente este incidente não é o primeiro que vê os atiradores de Assad alvejarem crianças”. Não, claro, aliás, é a primeira que fazem de manhã um vez tomado o café.

Vinnie O’Dowd, que já trabalhou para o Channel 4 e Al Jazeera: “O regime sírio tem como alvo as crianças”. A seguir, Liz Sly do Washington Post: “Os soldados continuavam a disparar”.
Terrível, coitada da criança.

A propósito: quantas balas são precisas para abater uma criança da Síria? Um não tem efeitos, pelo vistos as outras conseguem falhar todas o alvo (parabéns aos franco-atiradores de Assad, se calhar um pouco de treino não seria mal como ideia).

Mas estes são pormenores: somos o público favorecido de Hollywood, estamos acostumados a ver pessoas atingidas várias vezes e continuar a fazer o sudoku. Pelo que é normal que uma bala nada possa contra as crianças (que, agora já sabemos, na Síria estão habituadas a ser atingidas pelo exército, se calhar nem ligam).

O vídeo original? Ou seja: o making of?
É este.

ATENÇÃO!!!
Este vídeo é falso mas contém imagens que podem abalar a sensibilidade dos espectadores mais sensíveis que ainda não perceberam que este é vídeo é falso!



Não satisfeitos da triste figura, alguns agora gritam e falam de lesa-majestade.
É o caso de Human Rights Watch, segundo a qual o vídeo pode “corroer a confiança do público no jornalismo de guerra”.

Human Rights Watch é a mesma organização que utilizou os “especialistas” em vídeos Eliot Higgins e Daniel Kaszeta para investigar o ataque químico em Ghouta, chegando à conclusão de que por trás havia o governo sírio.

Memória curta? Ou só raiva por não ter sido novamente escolhidos pelo Departamento da Defesa?

Ipse dixit.

9 Replies to “Síria: de como “corroer a confiança do público no jornalismo de guerra” e de outras minúcias”

  1. Admito que caí neste video que nem um pato. Informado como estou e sabendo como as coisas são ao menos deveria ter-me interrogado se seria mesmo assim como era contado. Mas pronto.
    Por falar em aves o que acham desta "notícia"? A mim deu vontade de rir, só tive pena do pássaro.

    Max acho que é digna de passar nas notícias de rodapé aqui do Informação Incorrecta

    Polícia afegã abate 'pássaro-bomba' com antena e câmara (vídeo).
    http://www.tsf.pt/PaginaInicial/Vida/Interior.aspx?content_id=4271825

    EXP001

  2. Por acaso já tinha visto este vídeo há uns dias. Não lhe dei muita importância, nem acreditei nem deixei de acreditar. Agora, já lhe dou a devida importância.
    Max parabéns pelo post. 5 *****

    Krowler

  3. Melhor as imagens de guerra na Síria, filmadas algures na Índia, que os locais disseram que foram estrangeiros a pagar em rupias as correrias e tiros.

  4. Uma Série de TV Turca chamada "Vale dos Lobos" apresenta uma cena semelhante a execução do jornalista James Foley.

    http://youtu.be/oQJNvaaKSl8?t=1h5s

    A exemplo da cena, seriam as execuções apenas um "psyop" para justificar a intervenção na Síria?

  5. Pois é Max, abordas uma das três principais fontes de dominação, a propaganda. Cada vez mais potencializada pela alta tecnologia. Fica difícil de mensurar o quanto somos manipulados e escravizados por ela, cujo alcance é concedido para poucos e comprometidos com as elites econômicas/financeiras globalizadas ou não. Não vejo qualquer chance de começarmos uma verdadeira reversão, que seria histórica, pelo simples fato da grande maioria da população enganada não enxergar tal condição, ou distraída com pautas e agendas alienantes, ou ocupada, correndo desenfreadamente atrás de dinheiro. Cabe lembrar que a propaganda não age sozinha, tem o acompanhamento de seus dois "irmãos" no controle do poder. Um atende por Informação privilegiada, desencadeador do tráfico de influências, e o outro é seu segmento financeiro, que relatas aqui com tanta propriedade. E todos se perpetuam num ambiente totalmente corrupto entre Estados Nacionais, suas configurações e pequenos grupos que se alastram pelas mais diversas atividades humanas. Um processo secular, lento, cuja a própria história, também compilada pelos dominantes, tratou de produzir em nossa educação/formação uma compreensão fragmentada e insuficiente para entendermos as interdependências dos acontecimentos relevantes ao longo da civilização nos últimos 4 mil anos, e que tem como consequência a reprise do mesmo processo, com a aparente mudança de vestimenta. E quer saber, sou partidário dos que pensam que muito disso se deve a uma espécie de concessão do próprio indivíduo, motivado por seus interesses individualistas, originários da mesma educação dogmática. Ou seja, como ambicionar algo além do lixo, quando você sempre conviveu com ele? Abraço.

    1. Certo Chaplin concordo inteiramente com o teu ponto de vista.
      Mas acredito que a informação a correr como corre actualmente joga a nosso favor.
      Com tanta mentira descarada há mais pessoas a abrir os olhos, poucas bem sei mas tudo começa por algum lado.
      O que está a acontecer é que apos constatarem varias mentiras começam a ficar de pé atras e deixam de acreditar credulamente que os meios de comunicação teem a etica de contar a verdade. Depois tambem devemos dar uma ajudinha a esse processo. Não vale a pena tentar derrubar as crencas das pessoas pois isso é algo como dar murro em ponta de faca. Mas podemos ir a pouco e pouco com coisas bem simples desgastar essas crenças. Por exemplo, quando em Fevereiro correu pelo mundo a 7 ventos a noticia
      Marwan, o garoto no meio do deserto todos ficaram muito emocionados,
      mas depois de lhes mostrar isto
      http://informacaoincorrecta.blogspot.pt/2014/02/marwan-o-garoto-no-meio-do-deserto.html
      ficaram um bocado aborrecidos por se sentirem enganados.
      Ou esta em que acharam a força aerea de Israel muito correcta por evitar morte de civis
      IDF Avoids Civilians Casualties in Gaza, Hamas Increases Them
      mas depois de lhes mostrar isto
      http://informacaoincorrecta.blogspot.pt/2014/07/palestina-grandes-videos-pequenos-erros.html
      ficaram outra vez um bocado aborrecidos por se sentirem enganados. (A proposito ja nao esta disponivel o video que mostra o resto)

      E agora vou pegar neste caso do artigo tambem, e a pouco e pouco vão deixando de estranhar 🙂

      Cordiais saudações

      EXP001

    2. Desculpe caro colega de comentários, mas estamos tratando de uma força de amplitude descomunal. Sem pensarmos em rupturas conceituais continuaremos no "faz de conta" que tem como consequência a retroalimentação desses mesmos processos, de uma forma ou de outra. Mas como mencionei no comentário anterior, penso que possuímos energias insuficientes para promover algo tão amplo e desafiador. A minoria da minoria, que consegue sair do pensamento vulgar pertencem, quase que invariavelmente, a segmentos sociais que não querem arriscar suas vidas estáveis ou próximo disso, por algo incerto, e rendem-se à sua própria imobilidade, até mesmo por algum ceticismo e na frágil confiança entre os homens, promovida pela exacerbação de valores essencialmente truístas. Não há qualquer possibilidade de avançar sem que começamos a reconhecer, não a corrupção alheia, mas a nossa própria, individualmente e nas relações com nossos semelhantes. Ou continuaremos enxergando corrupção apenas no que está longe? Abraços

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