Vendidos e entediados

Traduzo o último artigo de Michele Serra, um dos mais conceituados intelectuais progressistas
italianos, em resposta à intervenção de outro conceituado intelectual progressista, Christian Raimo.

Saído do viveiro do Partido Comunista Italiano (PCI), Serra foi director de L’Unitá (órgão oficial do PCI) para depois seguir todos os passos após a queda do muro de Berlim: o maior partido da oposição que se torna Partido Democratico della Sinistra (1991), depois Democratici di Sinistra (1998), depois Partido Democratico (2008).

Eis o texto de Serra, retirado de La Repubblica (hoje diário “quase oficial” da última encarnação do antigo PCI):

Christian Raimo em “Post”, coloca, por escrito, a sua incapacidade de dizer algo acerca de Gaza, eterno remake de coisas já vistas cem vezes e cem vezes definidas atrozes e desnecessárias. Não reivindica o seu silêncio, e nem o confessa, simplesmente expõe-o. Raimo é muito mais jovem do que eu (o clássico “poderia ser meu filho”) e, portanto, ler nas suas palavras a minha própria impotência foi um alívio. Evidentemente, o “ciclo da indignação” é um mecanismo desgastado não só para aqueles que escreveram nos jornais durante quarenta anos, e experimentaram a repetição das palavras e das fórmulas de condenação; é desgastado também para aqueles que tiveram menos tempo e menos oportunidades para ouvir, dentro das suas próprias palavras, o ruído do vácuo.

Citando dois intelectuais mulheres (Susan Sontag e Ida Dominijanni), Raimo atribui à hesitação da voz e ainda mais ao silêncio um valor muito diferente da indiferença. Ele está certo. Se a palavra é – ou deveria ser – testemunha, ao invés ouvi-la bater no vácuo, às vezes é melhor suspendê-la: testemunha melhor a imensa desproporção entre a incansável ferocidade dos eventos e o pouco que sabemos pensar e escrever sobre isso. Hoje, por exemplo, eu já falei demais.

Parabéns. Os meus mais profundos e sentidos parabéns. Eis o última fase daquele que já foi o maior partido comunista europeu: o silêncio.

Esta a maravilhosa avant-garde dos actuais intelectuais da Esquerda (Michael Serra, Christian Raimo, Ida Dominijanni e muitos outros) sobre o conflito no Oriente Médio: potenciadores do silêncio.

Onde o intelectual deveria ser sempre e necessariamente tomar uma posição, até porque eles, mais do que qualquer outros, devem saber que a imparcialidade é um mito (ou uma desculpa), eles escolhem o silêncio, e até ficam orgulhosos disso.


Entre os assuntos, além dos já conhecidos “tragédia em ambos os lados” e “complexidade da situação”,  eis a engenhosa novidade: o cansaço. Fartaram estes Palestinianos que passam o tempo a fazer-se rebentar. É preciso algo novo, assim já não dá. Basta com estas crianças explodidas na praia (ver o que aconteceu ontem), não passam de déjà vu, coisas já vistas. Pode um intelectual ficar escandalizado perante um massacre perpetrado tantas e tantas vezes?

Não: a realidade atingiu o limite, agora é melhor ficarmos calados. Ou escrever um artigo sobre os touros de Pamplona (os touros sim que merecem a nossa total indignação, coitadinhos) ou algo engraçado acerca dos Brasileiros e o Mundial de Futebol, por exemplo. Estes são assuntos para os bons intelectuais. 


Os intelectuais da esquerda europeia (pois não há apenas Serra e a elite progressista italiana, longe disso) já não tomam posição no conflito israelo-palestiniano, porque estão cansados ​​da natureza repetitiva da situação, da impotência, e esse tédio mata-los até o ponto que a maioria já não consegue nem escrever umas poucas linhas sobre o sionismo.

Uma hipersensível força filantrópica obriga estes cultos a um silêncio escuro e elegante, algo que convida o público a fazer o mesmo. Uma silenciosa oração fúnebre em honra dum povo que, infelizmente, ainda não conhece o fascínio do mutismo e continua estupidamente a morrer.

Medo de falar de determinados assuntos? Medo de alienar as simpatias do “grande povo do Centro”? Medo de perturbar alguém demasiado perto dos “que contam”?

Nada disso: os intelectuais progressistas não têm medo nenhum (“o meu avô combateu os Nazi!”), simplesmente estão entediados.

O que é triste, sem dúvida.

É triste, porque um intelectual entediado provoca sempre ternura e, por sua vez, entristece.
É triste, porque significa que os Palestinianos já passaram os limites do bom gosto.

Morram, crianças de Gaza, morram mas com algo de novo para dizer. Rebentem, se isso for o vosso desejo, mas tenham piedade dos nossos intelectuais progressistas: rebentem mas com nas mãos um cartaz em defesa do touro Olivito de Pamplona.

Ipse dixit.

Fontes: La Repubblica (1, 2, 3), Wikipedia (versão italiana), L’Intellettuale Dissidente.

4 Replies to “Vendidos e entediados”

  1. Olá Max: especialistas do discurso são assim, precisam de algo diferente para falar, e aí tudo e qualquer coisa tem o mesmo peso. Não que os touros não devam ser defendidos contra a estupidez e sadismo humanos, mas quase tudo e todos precisam proteção contra a parte cínica e brutal da humanidade. Faz tempo que os intelectuais eram gente de ação, é fácil ganhar dinheiro com retórica…e, no máximo fazer pose de escandalizados em encontros entre pares. Abraços

  2. Não é o silêncio dos intelectuais, progressistas ou não, degustadores de destilados ou não, que me deixa revoltada. O que me faz atônita, em choque, é a atuação dos líderes dos governos, que permitem o sofrimento cruel, o massacre dos seus próprios povos, como se isso fosse normal e rotineiro. Cadê a consciência desses carrascos? – Como pode um ser humano trabalhar numa fábrica de armas, sabendo que faz um produto para matar? – Como pode alguém vender drogas sabendo que vai arrasar tantas vidas? – Como podemos deixar nossos filhos, desde tão cedo, entregues aos jogos violentos e sujos de vídeo games? E ainda compramos essas distrações para eles? – Você conhece algum pai que proíbe isso aos filhos? Quando assistimos, já rotineiramente, tantos assassinatos, chacinas, injustiças, corrupções, em nosso próprio País, o que fazemos? Os números da violência, em nosso País, como todos sabem, ultrapassam o de vários países em guerra. O que fazemos nós? Ficamos em silêncio, assim como os tais intelectuais . Não sejamos tão severos com eles, pode ser que, assim como nós, estejam sofrendo a impotência de ver horrores sem fim e necessitem falar algumas amenidades, para não perder a sanidade mental. Por falar em sanidade mental, vou torcer sempre pelo touro, para que ele dê umas boas chifradas nessa turma de idiotas que o torturam. Ô raça, meu Deus! Ou torturam gente, ou torturam animais! Até quando, meu Deus? Obrigada, e desculpe algum excesso. Mara

  3. É mesmo ´ho raça será possivel nós sermos filhos da terra mesmo?Tenho duvidas somos pelados qualquer viver sem proteção artificial (roupa) é o nosso fim se não tivermos abrigos morremos de frio ou de calor e depois há uma insanidade coletiva feita de crueldade que eu penso que até o diabo pediu demissão e foi embora pois não aguentava tanta crueldade.
    Num artigo (no jornal de ciencia.com)(artigo 19 se procurarem por animais como porta chaves encontram) vem descrito com fotografias. Estão vendendo portas chaves com pequenos animais vivos, selados dentro de envolucros de plastico que vivem enquanto durar o oxigenio imaginem só como amuletos da sorte.como é possivel um ser vivente que respira ,come,procria,pensar que tem sorte torturando outros seres ,que respiram ,comem e procriam.Ou realmente somos os descendentes de seres profundamente doentes ,insanos desiquilibrados,que tiveram que ser afastados das suas origens, pois a doença não tinha cura e era transmissivel para a descendencia,ou se não for isso não sei realmente o que pensar pois por exemplo só há touradas porque há publico,só há comercio porque compram os ditos amuletos, ,só há tiros porque alguém os dispara,só há balas porque alguém as fabrica e toda esta gente tem pai mãe e filhos que dizem adorar, se estiverem deste lado da barricada se estiverem do outro lado,mata por isso inocentes não há

  4. Mas os intelectuais sempre estiveram do lado de quem manda. Ao longo da história foram sempre pouco os dissidentes…

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