A Globalização

Sempre gostei de carros e lembro que, quando era jovem, em Italia a maior parte dos automóveis vendidos eram fabricados em Italia (Fiat, Lancia, Alfa Romeo…) ou na Europa (Renault, Peugeot, ainda existia até a holandesa DAF, ante de dedicar-se exclusivamente ao transporte pesado).

E carros orientais? Havia, mas mesmo poucos. A razão era simples: existia uma barreira comercial, um limite acerca do número de carros que era possível importar e distribuir.

A mesma coisa acontecia no Japão, na altura o maior produtor oriental: apenas poucos veículos europeus podiam ser vendidos em Tóquio.

Assim: tu produzes e compras o que é teu, um pouco podes exportar mas sem exagerar. E todos viviam felizes e satisfeitos.

Depois chegou a ideia de Globalização.

O início do fim

A ideia era simples: a “livre troca”, o “mercado livre”, um paraíso no qual Vietname, Portugal, Malásia, Brasil, Paquistão, Estados Unidos e todos os outros competem entre eles, tanto como importação e exportação de mercadoria, quanto na migração de trabalhadores.

O projecto da União Europeia, entre outros, tem como objectivo final este Santo Graal: homogeneizar um continente que desde sempre foi dividido em dezenas de Estados para melhor integrar os seus 340 milhões de habitantes com a Ásia, o Médio Oriente.etc.

Resultado? Todos ficam melhor, uma autêntica maravilha.
Pelo menos em teoria. Na prática as coisas ficaram de forma um pouco diferente.   

Porque o pressuposto segundo o qual integrar numa única grande economia a Europa com a Ásia, com a Oceania e as Américas seja benéfico para todos é falso. Portugal nem consegue integrar-se comercialmente com a Alemanha, imaginem todos os Continentes juntos.
Porque a realidade é que do ponto de vista da Europa, da América (do Norte e, em parte, do Sul) e da Austrália, a Globalização económica e migratória é absolutamente negativa.

Um exemplo prático.
Há 25 anos, a mais importante empresa dos Estados Unidos era a General Electric, um colosso com 800mil dependentes dos quais 700mil em território americano.
Hoje a sociedade mais importante é a Apple: 870mil dependentes dos quais 800 mil empregados na Ásia na produção de iPhone e Mac. E nos EUA? Mais ou menos 80mil pessoas, das quais 60 são vendedores ou empregados nas lojas da Apple e apenas as restantes 20mil são técnicos que trabalham na sede de Cupertino (Califórnia).

Portanto, do ponto de vista dos Chineses as coisas melhoraram, sem dúvida: mas pioraram pelos americanos.

E a ideia da migração? Quantos americanos deixaram o próprio País para trabalhar nas empresas Apple sediadas na China? Não tenho dados, mas desconfio que sejam poucos. Porque a verdade é que o mundo não é um único mercado do trabalho, trabalhar em New York ou em Shangai é diferente, emigrar não é tão simples.

Depois temos o discurso do padrão de vida. Porque um Primeiro Ministro de Portugal insiste na tentativa de cortar 7% dos ordenados de todos os trabalhadores quando esta medida nem era prevista pela Troika (FMI, BCE e UE?).

O padrão de vida ocidental não pode ser integrado no mercado globalizado: os ordenados de quem está melhor têm que descer para aproximar-se dos ganhos de quem está pior. Quando são postas em concorrência milhões de pessoas que custam 30.000 Euros por ano com centenas de milhões que ganham entre 5.000 e 10.000 Euros, o que acontece? Acontece que ambas as partes convergem em direcção dos 20.000 Euros. Nada mal para quem antes ganhava 5.000 ou 10.000, uma tragédia para quem estava acostumado aos 30.000.

E se alguém achar esta uma coisa justa e mais equitativa, lembro que haveria também outra solução: fazer subir os ordenados de quem ganha 5.000 ou 10.000 até os 30.000.
Facto esquisito, esta hipótese não é tomada em consideração.

É depois necessário lembrar outro aspecto: esta Globalização de “global” tem pouco, pois esquece dum pequeno pormenor chamado África, onde as pessoas devem continuar a ser exploradas e morrer de fome, apesar das enormes riquezas que o continente possui.

Mas voltemos aos Países asiáticos.
Sem contar o Japão, os Países asiáticos apresentam um custo da mão de obra mais baixo e um nível de impostos/taxas bem mais baixo também (uma empresa coreana paga cerca de metade quando comparada com uma homologa portuguesa); além disso, têm continuamente desvalorizado a moeda e mantido ou introduzido barreiras comercias directas (por exemplo, na Coreia existem taxas que atingem os carros estrangeiros) ou indirectas (na China existem regulamentos complicados que desfavorecem os produtos importados).

Sempre na China, não podemos não falar do roubo da propriedade intelectual, pelo que um produto de sucesso ocidental é copiado e alegremente vendido no mercado internacional com um preço inferior.

E, para acabar, uma palavra dedicada aos trabalhadores deste Países, muitas vezes privados dos mais elementares direitos humanos.

Todas coisas que no Ocidente são severamente proibidas, perseguidas, punidas; mas que na Ásia acontecem e são deixadas acontecer. Seria lógico, por exemplo, limitar ou mesmo proibir a importação dos Países que não respeitam os direitos dos trabalhadores. Mas isso não acontece. E se não acontece, haverá uma razão.

Nobels e teorias

Pôr-se em concorrência com estes Países é uma ideia absurda. E criminal. Não existe nenhuma razão lógica pela qual comerciar de maneira indiscriminada com Países que importam um quinto (ou até menos) daquilo que nós importamos. Nem existe uma base teórica que possa justificar uma tal escolha. 
Keynes  e Adam Smith sempre apoiaram a ideia pela qual o saldo comercial de dois Países que comerciam entre eles deve estar em paridade; isso é, tanto é exportado, tanto é importado.
De facto é isso que acontece quando dois Países comerciam com base em condições equivalentes.

Mas que acontece quando um dos dois Países goza de condições excepcionalmente favoráveis? Acontece o seguinte: um dos dois Países, aquele desfavorecido, reduz progressivamente a base industrial e agrícola, ficando assim mais pobre. Este é o que as teorias clássicas ensinam e isso é o que acontece.

É também interessante notar que antes, quando ainda existia o Gold Stantard (pelo que o dinheiro era a representação da quantia de ouro realmente guardado nos cofres do Estado), ter uma balança comercial negativa (isso é, com muitas importações e poucas exportações) era perigoso: pagar as mercadorias importadas significava transferir a própria moeda para o estrangeiro; e como a moeda representava o ouro guardado, pagar a mercadoria a fornecedores estrangeiros equivalia a ver as próprias reserva áureas desaparecer em favor de outros Países.

Na reunião de Bretton Woods, em 1944, Keyne apoiou a ideia pela qual mesmo sem o Gold Standard era necessário que importações e exportações ficassem mais ou menos equivalentes. E de facto foi isso que aconteceu até 1971, quando o Gold Standard foi abolido e o dinheiro deixou de ser a representação do ouro guardado nos cofres do Estado.
E foi mesmo desde 1971 que foi possível acumular enormes deficit na balança comercial com os outros Países: teria sido impossível ter o “fenómeno” China antes daquele ano, nenhum País teria aceite a desproporcionada importação de mercadorias chinesas contra uma irrisória exportação dos próprios produtos. 

A abolição do Gold Standard, portanto, foi um impulsionamento fundamental na via da Globalização.

Não existe nenhuma teoria que possa justificar a abertura indiscriminada das fronteiras comerciais dum País industrializado e já inserido num amplo mercado de Países em condições similares; da mesma forma, ninguém pode demonstrar que seja saudável importar cinco ou seis vezes mais ou mover as próprias empresas para Países onde a mão de obra é mais barata. 

A livre concorrência foi até agora um desastre do ponto de vista Ocidental e não favoreceu a melhoria das condições de vida do Terceiro Mundo: só alguns Países conseguiram melhorar a própria situação, outros nem por isso. E, em qualquer caso, estamos ainda bem longe dos padrões de vida ocidentais (que, entretanto, baixam).

Esta é a Globalização: a redução dos padrões de vida ocidentais, a melhoria das condições de vida (e raramente de trabalho) em alguns Países (não em todos), as massas de trabalhadores obrigados a abandonar o próprio País para seguir (quando possível) o mercado do trabalho, a concentração das riquezas em poucas mãos. 

Doutro lado, estas são as coisas que um Nobel da Economia, Maurice Allais, tentou explicar ao longo de toda a vida profissional. Com o resultado de nunca poder aparecer na televisão do seu País.
Como costumava dizer:

Sou o único Prémio Nobel da Economia da França e neste debate sou um espectador qualquer, ninguém quer que eu apareça na televisão.

Não é difícil imagina qual a razão.

Ipse dixit.

Fontes: Wikipedia (versaõ francesa) (portuguesa), Cobraf 

9 Replies to “A Globalização”

  1. Olá Max: no Brasil,uma espécie de nacionalismo econômico só perdurou na era Vargas (razão pela qual é execrado à direita e à esquerda). De 54 ao novo milênio,meio século de entreguismo puro deixou pouca margem de manobra para o lulopetismo reverter a situação, com reduzido apoio parlamentar, em função de poderosos grupos lobistas interagindo a favor dos dispositivos de poder da chamada globalização,que mais me parece ser da miséria da maioria em prol da concentração de riqueza e poder de minorias.Então, aqui conseguimos facilitar a compra de imensas parcelas de terra para corporações (ao contrário da Argentina, que está conseguindo restringi-las,com o apoio de uma maioria politizada), aqui fabricamos coisas, sem acesso às tecnologias referentes, aqui basta a empresa se estabelecer em território nacional para ser "brasileira", e gozar de benefícios que vão pouco a pouco sufocando as empresas nativas, aqui as mineradoras, empresas extrativistas, produtoras de insumos, de agricultura, pecuária, silos, distribuição e revenda de alimentos são corporações multinacionais que gozam de vantagens com ausência de impostos, financiamento e infraestrutura a cargo do governo, ou seja pagos pelos impostos cobrados aos brasileiros e responsável pelo esmirrado contributo em saúde, educação e cultura. Resultado simples: somos e seremos um território rico, com uma população pobre e inculta, onde uma minoria detém imensas fortunas em paraísos fiscais e poder de mando sobre o mundo político, judicial e econômico. Logo, somos modernos, ou seja, globalizados. Abraços

  2. Mandamento globalista: enfraquecer os Estados no plano internacional e fortalecê-los no plano interno.

    Dito de outro modo: desarmá-los contra seus inimigos e armá-los contra suas próprias populações, de modo a fazer deles os cães de guarda, ao mesmo tempo dóceis e implacáveis, da nova ordem global. De sob as cascas dos velhos Leviatãs nacionais começa a erguer-se, majestosamente sinistro, o Leviatã planetário.

    Nota: O desenlace sangrento da intromissão dos EUA na Líbia ajudou a grande mídia a abafar pelo menos uma notícia importante: o Instituto de Ciência e Tecnologia de Israel examinou a certidão de nascimento de Barack Hussein Obama divulgada pelo governo americano –

    https://usjf.net/2012/09/video-former-netanyahu-adviser-obama-birth-certificate-forged/?utm_source=USJF+List&utm_campaign=418932d804-RSS_EMAIL_CAMPAIGN&utm_medium=email

    e confirmou que "é manifestamente falsa".

  3. "E se alguém achar esta uma coisa justa e mais equitativa, lembro que haveria também outra solução: fazer subir os ordenados de quem ganha 5.000 ou 10.000 até os 30.000.
    Facto esquisito, esta hipótese não é tomada em consideração."

    E não é? São as "complexidades económicas".
    Por outro lado…
    "Cada vez que te encontrares do lado da maioria, é tempo de fazer uma pausa e reflectir."
    Mark Twain

    Abraço
    Rita M.

  4. Há uns tempos atrás O Max, colocou aqui no blog o seguinte desafio:
    'Numa ilha deserta ponham um grupo de pessoas e perpectivem um cenário de evolução'.

    Eu vou colocar um desafio parecido mas com condições:
    Numa ilha deserta coloca mil pessoas, em que tu serás o patrão de 950 sendo que as restantes 50 serão destinadas ao governo local.

    Tu, serás o dono de uma fábrica que produzirá todos os tipos de bens que os seus habitantes necessitam.
    Essa fábrica produzirá por ex. 1.000.000 de euros/mês ( que será naturalmente o PIB da ilha)considerando um bom lucro pois não há concorrência.
    Em salários, reduzindo o lucro e os impostos, os 950 trabalhadores custarão uma fração da venda, por ex. 500.000 euros e os 50 funcionarios públicos 25.000 euros.
    Então podemos afirmar que a capacidade total máxima de aquisição dos habitantes da ilha será de 500.000+25.000, ou seja, 525.000 euros/mês.
    Este valor de 525.000 será pois o máximo que tu, enquanto empresário/patrão, poderás vender porque os habitantes da ilha não têm dinheiro para comprar mais. Para uma taxa de poupança igual a zero.

    Ficas assim com um excedente de produção igual a 475.000/mês.

    O que farias nesta situação?

    abraço
    Krowler

  5. -> A superclasse (alta finança internacional – capital global, e suas corporações) não só pretende conduzir os países à IMPLOSÃO da sua Identidade (dividir/dissolver identidades para reinar)… como também… pretende conduzir os países à IMPLOSÃO económica/financeira…

  6. O desafio do Krowler

    Com essas condições, escolhia um cidadão chamado Krowler para descalçar a bota 😉
    Desculpa Krowler, mas não resisti.
    🙂

    Isto é areia a mais para mim, mas fiquei curiosa.

    Estive para aqui a pensar e ocorreram-me demasiadas coisas que não consigo ligar de forma a não criarem por si só outro problema.
    Ora se eu consigo encontrar falhas nas minhas soluções… é porque não são grande coisa 🙂
    E resolver problemas arranjando outros… bom, não me parece solução.

    Agora estou curiosa com a solução.

    Por aqui já valeu para me pôr a pensar, ainda que não tenha chegado a uma solução.

    Abraço
    Rita M.

  7. Olá Anônimo: tudo indica que temos interpretações da realidade bem diversas, provavelmente opostas neste caso, o que não surpreende, e até é interessante, desde que não queiramos impor a nossa interpretação como "a" verdade. Argumento que a era do lulopetismo tem feito um esforço grande (não comparável, naturalmente, a Chavez,Evo Morales,Corrêa, e até mesmo Cristina)no sentido de estancar a torneira aberta às privatizações no Brasil (caso emblemático da Petrobras )comparado especialmente a era FHC/Serra, onde francamente de acordo com os interesses neoliberais e corporativistas empresas do porte da Vale foram trocadas por nada. Justamente não afirmei que se faz aqui aquilo que julgo deveria ser feito em termos de regulação corporativa e re-nacionalização de recursos e empresas. Teríamos de ter um empresariado nacionalista e produtivista, não financista. Teríamos de ter uma oligarquia rural menos truculenta e entreguista, e uma classe média identificada com os valores populares e não ao contrário. Teríamos de poder garantir desenvolvimento tecnológico brasileiro para aplicar às demandas brasileiras,empresas midiáticas minimamente independentes,e consequente opinião pública minimamente afinada com o que seja interesses de autonomia e soberania do país, tudo que não temos. De forma que, embora não aderente a nenhum partido político, tenho de reconhecer que o lulopetismo no poder representou uma ruptura e não uma continuidade na política absolutamente globalista anterior. Abraços

  8. Olá Krowler: tentando encaminhar algumas soluções. Se houvesse possibilidade de exportação do excedente de produção, acho que se poderia pensar também em importação, diversificando/aumentando o consumo.
    A ideia de uma única empresa a produzir tudo para todos não me parece ideal. Então daria um jeito de desmembrá-la de forma a organizar uma cooperativa de produtores e uma de consumidores para equilibrar produção e consumo, ao mesmo tempo distribuir inteligência, recursos e produtos.
    Mas, a bem da verdade, acho que poucos fariam o que eu faria, e também não estou certa que funcionaria. Tal funcionamento dependeria das metas a alcançar: se a concentração de lucro/poder ou um equilíbrio estável da vida na ilha. Abraços

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