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A libertação do Afeganistão

Basta de férias, tenham vergonha! É tempo de voltar ao trabalho. Começa aqui uma nova época de Informação Incorrecta, com música, gastronomia, concursos, hospedes internacionais e muitas orações, como do costume.

A propósito: Covid ou Afeganistão? Comecemos com algo exótico, vamos com a guerra de libertação no Afeganistão. Porque disso tratou-se.

 

A libertação do Afeganistão

Não gostamos dos Talibãs? O Leitor não sei, eu pessoalmente não gosto. Mas o conto dos poucos “revoltosos” que em dez dias conquistam um inteiro País contra a vontade dos habitantes não convence: estamos a falar de mais de 30 milhões de indivíduos, estamos a falar de forças de seguranças governamentais organizadas e treinadas pelas Americanos ao longo de 20 anos. Mal equipados, numericamente inferiores, os Talibãs conseguiram o sucesso só com o apoio popular, o que explica também um exército regular que derreteu-se como neve ao sol.

Pelo que podemos não gostar de Talibãs e afins, mas são eles os legítimos donos daquele território e agora, após 20 anos de ocupação estrangeira, podem finalmente decidir qual o futuro do País deles.

Do outro lado temos uma nova derrota dos Estados Unidos, mais uma após os fracassos no Iraque, na Líbia, na Somália, na Síria… Começa a ser complicado manter as contas em dia: é isso que dá exportar a democracia em Países que não a querem. Mas esta é uma derrota um pouco diferente, mais pesada e não acaso muitos evocaram o espectro do Vietname. Há geopolítica, há petróleo, há drogas, há o “terrorismo”… Mas vamos com ordem, pode ser?

Os Talibãs, como afirmado, podem ser não apreciados do ponto de vista religioso, social e cultural, apesar de, em parte, tudo isso ser também mistificado e caluniado até ao extremo pela propaganda ocidental. Aquela propaganda que neste momento caiu no desespero através de órgãos de comunicação que choram a “queda” da civilização ocidental no Afeganistão. Aquela mesma propaganda que nem um pio dedicou ao longo de vinte anos sobre o extermínio que tem custado dezenas de milhares de mortos, nunca contados porque os mortos do inimigo não devem ser contados. Provavelmente nunca iremos saber quantas famílias, quantas mulheres, quantos filhos, quantos casamentos, quantas casas foram arrasadas até ao chão, destruídas e pulverizadas pelas bombas americanas e por aquelas da Nato.

Um crime que durou 20 anos e que nasceu de uma gigantesca mentira, como aquela que tinha servido para justificar o assalto e a destruição do Iraque. Se no caso de Saddam Hussein a desculpa tinham sido as armas de destruição maciça, obviamente nunca encontradas, no caso do Afeganistão tudo começou com o 11 de Setembro de 2001: um atentado no qual nenhum afegão participou e cuja alegada “mente” (aquele Osama bin Laden formado pela CIA) foi depois (supostamente) encontrado no Paquistão.

A verdade era bem outra, nunca confessada: controlar o Afeganistão significa controlar as vias de acesso ao coração do mundo, ficar na fronteira da Rússia, da China, do Irão, perto da Índia. Significa pôr as mãos na maior produção planetária de ópio. Significa trânsito de gás e de petróleo. Estas as razões pelas quais o Afeganistão estava na mira dos neocons.

A organização Al Qaeda, uma invenção da CIA liderada por Osama bin Laden (provavelmente um agente duplo dos americanos), forneceu o pretexto para uma invasão supostamente contra as actividades terroristas. Na realidade: uma deliberada agressão contra um País soberano.

 

Petróleo e gás

 

Petróleo, dizíamos. E gás também. Já antes de 2001, os EUA tinham tentado convencer os Talibãs a aceitar a construção do Gasoduto Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia (também conhecido como Duto Trans-Afeganistão, TAP ou TAPI), obtendo reposta negativa. Líder do projecto era uma das companhias petrolíferas mais importantes da América do Norte, a Unocal Corporation, na qual convergiam os interesses tanto da família de Bush quanto da família de Osama Bin laden (lembram-se do único avião que na noite entre 11 e 12 de Setembro de 2001 foi autorizado a abandonar o espaço aéreo dos EUA? Lembram-se de quem transportava de volta apara a Arábia?).

O gasoduto fazia parte dum projecto de maior alcance: a ideia era ligar a Ásia Central ao Oceano Indico, portanto conectar as reservas de hidrocarbonetos de Uzbequistão, Tagikistão, Cazaquistão através duma passagem pelo Afeganistão até chegar ao porto de Karachi, no Paquistão. Mas para isso era necessário também desestabilizar alguns Países da área, sobretudo aqueles onde maior era a resistência ao projecto: nasce assim o clima de constante tensão na faixa que já engloba não apenas o Médio Oriente (o caso do Irão e o mais recente da Síria) como também alguns Países da antiga União Soviética (Arménia, Azerbaijan, Kyrgyzstan, Tajikistan, Uzbekistan), o Paquistão e o Afeganistão, sem esquecer a “Revolução Açafrão” de 2007 em Myanmar.

A ideia é simples: “aquecer” para depois “normalizar” aquela faixa do planeta que detém grandes reservas de hidrocarbonetos e/ou que se encontra na relativa via de trânsito, também para permitir que Washington consiga infiltrar-se mais ou menos estavelmente no coração da maior massa continental do planeta. Este é o sentido dos “valores ocidentais” que continuam a ser impingidos em regiões que com os nossos valores não sabem o que fazer.

Drogas

 

Já muito foi dito acerca do crescimento exponencial do cultivo do ópio após a ocupação dos Estados Unidos, num País que com os Talibãs tinha conseguido erradicar uma tradição milenária. Para saber mais:

Portanto seria supérfluo acrescentar algo a não ser uma nota curiosa: até poucas semanas atrás, Washington controlava o mercado mundial da cocaína e do ópio através da ocupação dos maiores produtores, a Colômbia no primeiro caso e o Afeganistão no segundo. Obviamente tudo não passa dum mero acaso.

 

Democracia

 

Como sempre, os nossos crimes são disfarçados sob o pretexto das boas intenções porque nós somos bons. Os outros é que são maus. Invadimos um País soberano como o Afeganistão? Sim, mas é explicado que isso foi para o bem nosso (luta ao terrorismo) e dos afegãos que viviam numa realidade que desconhecia os valores democráticos. O primeiro ponto é clamorosamente falso, mas o segundo?

É verdadeiro: o Afeganistão nunca foi um País democrático (nem durante a ocupação ocidental, verdade seja dita) e, após a derrota ocidental, tornou a ser aquilo que era. O mesmo aconteceu no Iraque ou na Líbia, por exemplo. Porque, pasmem-se!, é possível viver sem democracia. Isso é inconcebível aos olhos das massas ocidentais, devidamente formatadas já a partir da época escolar.

Mas se a instrução fosse uma coisa séria, hoje não teríamos dificuldades em reconhecer que a exportação dos “valores ocidentais” é a repetição da conversão forçada actuada durante a época das Descobertas e a conseguinte colonização de América, África e Ásia. Na altura, a Europa tinha que converter os “selvagens” porque detentora da “verdadeira” e “única” fé; hoje é todo o mundo “democrático” que tem que converter os “atrasados” para o “verdadeiro” e “único” regime político admissível.

Há séculos enviavam-se os missionários devidamente escoltado pelos soldados, hoje as tropas abrem a estrada para legiões de burocratas, ONGs e empresários que tentam implementar aquela abstracta entidade que chamamos de “valores ocidentais”. A História repete-se, como sempre acontece. E nós não temos memória disso, como sempre.

 

Recursos históricos

 

Mas dá para ficarmos consolados: não somos os únicos sem memória. Toda a operação dos EUA e da NATO tem sido um total esquecimento do passado. E, paradoxalmente, são os americanos os que mais deveriam saber o que significa invadir e tentar controlar o Afeganistão. Em 1979 a então União Soviética já tinha tentado implementar os seus valores pseudo-comunistas com resultados terríveis: 10 anos de guerra, mais de 14 mil soldados mortos, uma retirada inglória. Doze anos depois foi a vez da tentativa americana: 20 anos de guerra, mais de 12 mil mortos contando os homens de Washington e da Aliança Atlântica, os contractors privados e os óbitos entre as fileiras do remendado exército governamental afegão. E a mesma retirada inglória (e caótica).

Será que no Pentágono alguém achou que, sem as armas fornecidas pelos ocidentais (como durante a ocupação soviética), a resistência não teria conseguido aguentar-se? Talvez. Ou talvez não: a guerra é sempre um bom negócio.

 

Os Talibãs

 

Mas afinal, quem são estes Talibãs? Eis um breve retrato encontrado no site do grupo Sky, que como fonte provoca gargalhadas mas que dá para ter uma vaga ideia (em futuro veremos de ter material mais sério):

O termo “taliban”’ em língua Pashtu (a segunda língua mais falada no Afeganistão e também difundida no Paquistão) significa “investigador”’ ou “estudante”. O movimento, nascido durante a década de ‘90 na madrasse, escolas corânicas paquistanesas, foi oficialmente formado em 1994 em Kandahar, a segunda cidade afegã, com Mullah Mohammed Omar à cabeça, antigo combatente entre os Mujaheddin islâmicos na guerra entre o Afeganistão e as tropas soviéticas que ocuparam o País entre 1978 e 1989.

Os Talibãs nasceram com o desejo de restabelecer o equilíbrio no Afeganistão após a retirada do exército soviético e com o objectivo de implantar nos territórios conquistados um estilo de vida baseado na interpretação mais ortodoxa da Sharia, a lei islâmica, com execuções públicas para aqueles que desobedeceram aos preceitos religiosos, a obrigação da burka para as mulheres e da barba para os homens [porque segundo Sky estas são as principais características da ortodoxia islâmica…, ndt].

Os Talibãs organizaram-se rapidamente em milícias. Após a conquista de Kandahar em 1996, tomaram também Cabul, parcialmente apoiada pela população por se terem imposto como substitutos do governo através de planos de recuperação económica e reconstrução das infra-estruturas destruídas durante a guerra com a União Soviética.

O Emirado Islâmico do Afeganistão foi assim fundado que, em poucos anos, passou a controlar quase todo o País – com excepção de algumas regiões do nordeste – sem um líder político semelhante ao das democracias ocidentais, mas sob a orientação do Mullah Mohammed Omar. O Paquistão, os Emirados Árabes e a Arábia Saudita foram os únicos Estados do mundo a reconhecer a legitimidade do Emirado e a apoiá-lo com dinheiro e ajuda humanitária. Segundo muitos peritos, o exército talibã ainda é financiado pela Arábia Saudita. […]

Os Talibãs rejeitam a ideia de eleições e de estruturas democráticas. Os cidadãos afegãos que colaboraram com a diplomacia internacional, os meios de comunicação ocidentais e os exércitos de outros países são considerados “traidores”. Quando chegaram ao poder nos anos ‘90, os Talibãs proibiram o cinema, a música e a televisão. As mulheres – que não estavam autorizadas a ter relações com homens excepto com o seu pai, marido ou outro membro da família – estavam proibidas de conduzir desde carros a bicicletas, de usar maquilhagem ou joias.

Em 2001, os Talibãs destruíram as estátuas de Buda de há dois mil anos esculpidas na rocha do vale de Bamiyan [e esta foi mesmo uma bestialidade, ndt], apesar dos apelos da comunidade internacional para não o fazer devido ao seu valor histórico e cultural: a interpretação da lei islâmica pelos Talibãs proíbe qualquer representação de “ídolos”.

Os líderes talibãs fugiram para o Paquistão, para Quetta, na região do Belucistão. Ao longo dos anos, o grupo continuou a recrutar combatentes e organizou-se de forma descentralizada, conseguindo continuar a ter influência em muitas áreas afegãs. […]

Após a morte do Mullah Mohammed Omar, anunciada em 2015 mas datada de 2013, os Talibãs foram liderados por Akhtar Mansour, que foi morto por um drone americano no Paquistão em 2016, e por Hibatullah Akhundzada, o actual líder e chefe da Justiça durante os anos do Emirado. […] Nascido em Kandahar, filho de um teólogo, Akhundzada manteve juntos os militantes envolvidos em lutas internas pelo poder após a morte de Mansour.

Outra figura importante é Abdul Ghani Baradar, combatente contra os soviéticos nos anos ‘80 e co-fundador dos Talibãs juntamente com Mohammad Omar. Durante os seus cinco anos no Emirado, ocupou cargos militares e administrativos, incluindo o de Vice-Ministro da Defesa. Preso em 2010 em Karachi, Paquistão, foi libertado em 2018 sob pressão dos EUA. Após a assinatura dos Acordos de Doha, foi nomeado chefe do gabinete político dos Talibãs. Ele seria um dos candidatos mais prováveis à presidência do novo governo.

Também no poder está Siraj-ud-din Haqqani, líder da rede Haqqani, fundada pelo seu pai e considerada uma das facções mais perigosas para as tropas da NATO durante as décadas de missão militar. O chefe da comissão militar que estabelece as linhas estratégicas contra o governo afegão é Mullah Yaqub, filho de Mohammad Omar.

Segundo os peritos americanos, os Talibãs têm pelo menos 60.000 combatentes armados activos, que poderiam aumentar para 200.000 com o recrutamento de outras milícias ligadas às guerras locais. A estes devem juntar-se 10.000 combatentes estrangeiros, na sua maioria paquistaneses mas também provenientes de vários países da Ásia Central, do Uzbequistão ao Turquemenistão, bem como de grupos de chechenos e uigures da China.

São estes os Talibãs? Não propriamente. Na verdade é muito difícil dizer agora que são de verdade os “novos” Talibãs. Parecem certamente muito mais moderados e unidos e “para já prometem, entre outras coisas, respeito pelos direitos das mulheres e das minorias, negando também qualquer próxima retaliação contra aqueles que tomaram o outro lado nos últimos anos.

Sabemos que os Talibãs são uma espécie de galáxia com profundas diferenças de pontos de vista, interesses e visão religiosa. Como vimos, há também entre eles combatentes que não são afegãos e, no geral, o grupo é o espelho da sociedade afegã, que está longe de ser uma realidade monolítica: no País convivem seis etnias (os pachtuns, 52% da população; os hazaras, 19%; os tajiques, 21%; os uzbeques, 5%, mais Baluchis e Aimak), vários idiomas (além dos dois oficiais, o Dari e o Pashto, há também línguas de origem turca mais o Nuristanti, o Urdu e o Balúchi) e até diferenças religiosas (apesar da grande maioria dos habitantes ser islâmica sunita). Uma sociedade que ainda vê na comunidade local (aquela que no Ocidente chamamos de “tribo”) um elemento absolutamente central da vida.

O futuro

O futuro do Afeganistão não promete nada de bom, bem pelo contrário. Nem tinham partido as últimas tropas e eis que reaparece o ISIS com duas bombas na zona do aeroporto de Kabul. Sim, é aquele mesmo Estados Islâmico que viaja em pickup Toyota novinhos em folha. As intrusões do ISIS constituirão provavelmente o maior desafio do novo regime nos futuro próximo. E perceber a razão não é complicado. Observamos o mapa:

No Norte o Afeganistão faz fronteira com três antigas repúblicas soviéticas, Turcomenistão, Usbequistão e Tajiquistão:

No Norte-Leste o Afeganistão tem uma curta mas importante fronteira com a China, um corredor largo pouco mais de 20 quilómetros mas suficiente para conectar o País dos Talibãns à região de Sinquião onde mora a minoria Uigures. São exactamente aqueles Uigures que nos últimos anos ocuparam as crónicas por causa do alegado “genocídio” operado por Pequim, supostamente fruto da actividade antigovernamental dos Uigures: motins de 2009, bombas em Cotã em 2011, ataque em Março de 2014 no estação de comboio de Kunming, bomba em Abril de 2014 na estação de comboio de Ürümqi, bombas em Maio de 2014 num mercado de rua em Ürümqi, etc. Não é difícil imaginar a origem das armas utilizadas.

No Leste e no Sul, o Afeganistão faz fronteira com o Paquistão, um País islâmico que tem de ser controlado por perto do ponto de vista ocidental por causa da sua política estrangeira “flutuante” e dos relativos perigos que podem afectar negativamente os substanciais investimentos ocidentais.

No Oeste o Afeganistão tem mais de 600 quilómetros de fronteira com o Irão: não é preciso dizer mais nada.

Resumindo: os Estados Unidos acabaram com a ocupação militar mas com certeza a presença continuará a ser importante. É impensável que Washington decida abandonar definitivamente o Afeganistão, a região é demasiado importante. Não podendo actuar de forma directa com as suas tropas (os custos anuais tinham-se tornado exorbitantes: quase 2.300 mil milhões de Dólares em 20 anos), lógico pensar que as operações serão conduzidas por interpostas pessoas, nomeadamente através daquele “terroristas” que tanto jeito deram nas várias frentes do planeta.

Vamos continuar a seguir os desenvolvimentos no Afeganistão porque haverá de que falar.

 

Ipse dixit.