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O Dólar devora o Euro. E não só.

Pssssst! Peço desculpa pela reduzida actividade tanto aqui no blog quanto no Canal Telegram: está a ser uma semana complicada. A próxima será melhor. Ou igual. Ou até pior. Quem sabe?

 

Como já afirmado, a guerra na Ucrânia é muito mais do que um conflito local: foi programada para constituir um ponto de não regresso e, ao mesmo tempo, para implementar uma nova ordem global que irá perdurar ao longo de vários anos, provavelmente décadas.

Um planeta dividido em duas grandes áreas de influência, um pouco ao estilo da antiga Guerra Fria: dum lado um Capitalismo financeiro neoliberal dominado pelos grandes monopólios, do outro lado uma industrialização “socialista” (com muuuuitas aspas!) que opera num regime de “livre mercado” (idem). Venha o diabo e escolha.

Isso significa também que estamos prestes a experimentar mudanças que irão muito além dos confins europeus: o que é inevitável num planeta onde são cada vez mais fortes as interdependências entre os vários Países e onde qualquer episódio pode ter repercussões em qualquer ponto do globo.

Euro? Já foi.

Por exemplo: o Euro. Como realça o economista Michael Hudson, a moeda europeia já foi. Bruxelas tem seguido diligentemente as ordens de Washington, sacrificando-se no altar ucraniano em prol das empresas norte-americanas. Se até ontem a Europa podia contar com a energia russa, abundante e razoavelmente barata, agora as linhas de abastecimento são e serão cada vez mais escassas e, provavelmente, irão ser definitivamente cortadas. Poucas ilusões: assim permanecerão ao longo de muito tempo, substituídas em primeiro lugar pelos fornecedores dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, a histeria bélica provocará o florescimento das exportações militares americanas. Mas quais as consequências?

O comércio e o investimento europeus antes da guerra das sanções sugeriam que haveria uma crescente prosperidade mútua entre a Alemanha, a França e outros países da NATO em relação à Rússia e à China.

Um mercado onde a Europa importava energia e exportava bens para a Rússia, investindo também no desenvolvimento industrial. Isso era verdadeiro tanto em relação à Rússia quanto à China. Tudo isso acabou.

Em vez disso, os Países da NATO comprarão gás dos EUA, mas terão de gastar milhares de milhões de Dólares para chegarem a uma capacidade portuária suficiente, o que é pouco provável que aconteça até 2024. (Boa sorte até lá). A escassez de energia irá aumentar significativamente o preço mundial do gás e do petróleo.

Os Países da NATO também aumentarão as suas compras de armas ao complexo militar-industrial dos EUA. A compra, quase em pânico, irá também aumentar o preço das armas. E os preços dos alimentos também irão subir devido à escassez desesperada de cereais resultante da cessação das importações da Rússia e da Ucrânia, por um lado, e à escassez de fertilizante de amoníaco proveniente do gás, por outro.

Pode não parecer, mas estamos a falar de balança de pagamentos: um País (ou um conjunto de Países, como neste caso) compra e, para equilibrar as contas, deveria vender também. Mas vender o quê? Como irá a Europa equilibrar os seus pagamentos internacionais com Washington? O que pode de exportar para os EUA? Além dos pasteis de nata, entendo.

Resposta: não muito. E o resultado mais evidente desta nova situação será um assinalável reforço do Dólar face ao Euro. Então a previsão de Hudson torna-se simples:

Para a Europa, […] o custo em Dólares da sua dívida externa contraída para financiar o seu crescente défice comercial com os EUA para petróleo, armas e alimentos irá explodir. As taxas de juro irão subir, atrasando o investimento e tornando a Europa ainda mais dependente das importações. A Zona Euro vai transformar-se numa zona economicamente morta.

Para os EUA, isto significa a hegemonia do Dólar com esteroides, pelo menos em relação à Europa. O Continente tornar-se-ia uma versão um pouco maior de Porto Rico.

O Sul do Mundo

Mas, como dissemos antes, a guerra na Ucrânia não foi pensada como conflito local e vivemos num mundo onde as interdependências são pesadas. O reflexos disso irão muito além do Velho Continente. Então é inevitável que a nova “Guerra Fria”, a luta entre o Neoliberalismo e o “Socialismo”, terá consequências globais. Em primeiro lugar: a tentativa por parte de Washington,  para bloquear os Países sul-americanos, africanos e (alguns) asiáticos de forma semelhante ao que está planeado para a Europa.

A subida acentuada dos preços da energia e dos alimentos atingirá duramente as economias deficitárias em alimentos e petróleo, mesmo enquanto as suas dívidas externas, denominadas em Dólares, para com obrigacionistas e bancos estão prestes a vencer e a taxa de câmbio do Dólar está a subir em relação à moeda deles. Muitos Países em África e na América Latina, especialmente no Norte de África, têm de escolher entre passar fome, reduzir o seu consumo de gasolina e electricidade, ou contrair empréstimos em Dólares para cobrir a sua dependência do comércio à medida dos EUA.

A este respeito, Hudson lembra que tem-se falado da emissão de novos DES (Direitos Especial de Saque) por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI), para financiar o crescente défice comercial e de pagamentos.

Os DES são um instrumento monetário internacional: são activos de reserva em moeda estrangeira, definidos e mantidos pelo FMI, criados para completar as reservas dum País em dificuldade. Na prática, os DES não são uma moeda mas podemos considera-los como uma espécie de “fundo de garantia”. Pelo que, os DES poderiam parecer algo simpático. Todavia, como observa Hudson:

Mas tais créditos vêm sempre com cordelinhos. O FMI segue a política de sancionar os Países que não obedecem à política dos EUA. A primeira exigência dos EUA será que estes Países boicotem a Rússia, a China e a sua emergente aliança comercial e monetária. “Porquê dar-vos os DES ou dar-vos novos empréstimos em Dólares se vão gastá-los com Rússia, China e outros Países que declarámos inimigos?” perguntarão os funcionários dos EUA.

E o economista vai além:

Não me surpreenderia ver um País africano tornar-se a “próxima Ucrânia”, com as tropas de representação dos EUA (ainda há muitos apoiantes e mercenários Wahabi) a lutar contra os exércitos e populações de Países que procuram alimentar-se com cereais de explorações agrícolas russas, e alimentar as suas economias com petróleo ou gás de poços russos, para não mencionar a participação na Nova Rota da Seda da China, que foi, afinal, o gatilho para o lançamento da América da sua nova guerra pela hegemonia neoliberal global.

A economia mundial já está em chamas e os EUA preparam-se para uma resposta militar e utilizam as suas exportações de petróleo, agricultura e armas como arma de chantagem, forçando os Países a escolher em que lado da Nova Cortina de Ferro querem estar.

Faz sentido? Sim, faz. Até aqui.

As perguntas erradas

Porque depois Hudson põe algumas perguntas com pouco sentido. Por exemplo:

Mas o que é que a Europa ganha com isso? […] O que é que isso significa para os Países do Sul global que estão a ser espremidos, e não apenas como “danos colaterais”, pela profunda escassez e subida dos preços da energia e dos alimentos causada pelo próprio objectivo da estratégia dos EUA que introduz a grande divisão da economia mundial em duas? A Índia já disse aos diplomatas americanos que a sua economia está naturalmente ligada às da Rússia e da China. […] O que é que os Países irão escolher fazer: irão proteger os seus próprios interesses económicos e coesão social, ou será que a diplomacia americana irá controlar os seus líderes políticos? […] Perante toda esta intromissão política e propaganda mediática, quanto tempo levará o resto do mundo a perceber que está em curso uma guerra global que se está a tornar na Terceira Guerra Mundial?

Pouco sentido porque estas perguntas têm como ponto de partida a ideia de que os vários Países sejam entidades autónomas, capazes de avaliar de forma objectiva e empenhadas em trabalhar para o bem dos cidadãos. Mas se assim fosse, nem sequer teríamos chegado ao ponto em que nos encontramos agora. O suicídio europeu é o mais flagrante exemplo disso: Bruxelas evita propositadamente pensar no bem estar do Velho Continente, todas as mais recentes escolhas têm como único fim agradar o dono americano. Quanto ao FMI, palavras para quê?

Conclui Hudson:

O campo de batalha militar será repleto de cadáveres económicos.

Tomara. Infelizmente não haverá apenas cadáveres metafóricos mas sim mortos de verdade, frutos da escassez e da fome. Começou a derradeira guerra pela sobrevivência do Dólar: não será feitos prisioneiros. A boa notícia: no longo prazo, o Dólar irá perder. A má: comecem a estudar Mandarim.

 

Ipse dixit.

Imagem: artbaggage via Pixabay Pixabay License Free for commercial use No attribution required