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A Globalização em coma

Um das mais conhecidas vítimas que temos de contabilizar entre as baixas da invasão da Ucrânia não tem apelido, só o nome: Globalização. Pifou de vez? Não sabemos, ainda é cedo para o funeral: mas as condições não são famosas, podemos falar de coma profundo. É uma dura paragem na teoria baseada numa competição sem fronteiras, no mercantilismo, nas exportações ganhas através da redução dos custos e não no crescimento da procura interna.

O paradoxo é representado pelos Estados Unidos, a ponta de lança do Ocidente capitalista que abandonou completamente a produção industrial, a velha economia, imaginando que a “nova” economia teria proporcionado um século de prosperidade: e em vez disso tornou-se o País mais endividado do mundo, com uma posição financeira líquida negativa de 13 triliões de Dólares e um défice comercial estrutural que em 2021 atingiu o valor astronómico de 859 mil milhões de Dólares.

O problema nem é tanto a dívida, como sabe quem segue a Modern Money Theory. O problema é que todos estes gastos não significaram uma subida do nível de vida dos norte-americanos. E dos 859 mil milhões de Dólares de défice comercial, bem 353 mil milhões derivam das trocas comerciais com a China (+14.5%), o principal adversário económico do EUA. Washington compra com dívida, apostando no facto que atrás do Dólar há o petróleo: mas ao longo de quanto tempo ainda?

A Europa também enfrenta enormes dificuldades. O excedente da Zona Euro provém de quatro Países: Alemanha (+249 mil milhões de Euros), os Países Baixos (+78 mil milhões), a Irlanda e a Itália (+68 mil milhões). Tirando estes quatro, a situação não é nada alegre: a França, por exemplo, regista um novo recorde negativo da balança comercial em 2021, com -84.7 mil milhões de Euros em comparação com -75 mil milhões de Euros em 2020, agravando ainda mais a sua posição financeira externa líquida (agora de -800 mil milhões de Euros). É ultrapassada apenas pela Espanha, que tem um défice de 909 mil milhões de Euros.

Mas este quadro vale até hoje e não tem em conta o efeito das sanções, que será ruinoso. Em qualquer caso, estes são os números do Ocidente e mostram que EUA e UE perderam gravemente o desafio de vinte anos de Globalização.

O processo de reequilíbrio passa agora pelo hipotético isolamento geopolítico da Rússia e da China, aquele que no mundo da Economia é chamado de decoupling. Como explicam as páginas do diário económico Il Sole 24 Ore:

Literalmente significa “desacoplar”, “desengatar”, como quando uma carruagem é desacoplada da locomotiva. […] Mas a palavra também pode significar uma dissociação dos mercados: se, por exemplo, Wall Street desce e a Bolsa de Londres sobe, diz-se que houve um decoupling entre os dois mercados.

Entre as motivações da guerra na Ucrânia há também esta: os EUA quiseram acelerar um processo que pode representar uma boia de salvação, com a criação dum espaço económico “fechado”, supostamente impermeável a influências do Resto do Mundo.

Lembramos quanto já afirmado em artigos anteriores: a passagem para uma energia “verde” (com muuuuitas aspas) determinará o fim do petro-Dólar. O efeito poderia ser catastrófico, particularmente nos EUA como é óbvio. Dado que a transferência de poder para a China não pode ser parada ou invertida (e ninguém tenciona fazer isso, a não ser uma parte minoritária no âmbito do Deep State norte-americano), a solução mais rápida consiste na criação duma zona económica fechada, uma espécie de reserva de caça dos EUA. Este é o decoupling em curso, a razão mais profunda (e também a principal) da actual guerra na Ucrânia.

Então explica-se o regresso ao TTIP (Trans Atlantic Trade and Investment) e as tentativas para ressuscitar a TPP (Trans Pacific Partnership). É o regresso às políticas de Barack Obama, não acaso Democrata, do ano de 2014.

Uma escolha que podemos definir “autárquica”, como era aquela da União Soviética e dos seus Países satélites. Mas não será simples. O Ocidente terá que eliminar as suas duas dependências fundamentais, a dependência tecnológica em relação à China e a dependência energética em relação à Rússia.

Microchip e Telecomunicações

O processo de isolamento de Pequim, que tem continuado ao longo dos anos nem sequer tão silenciosamente (proibição da importação dos produtos de telecomunicações, 5G da ZTE e Huawei com Donald Trump), levou a um maior controle da exportação (leia-se “limitação”) americana de microchips para a China: estes componentes representam o coração de cada dispositivo electrónico e são indispensáveis para qualquer aplicação de Inteligência Artificial, na qual Pequim deu enormes passos em frente nos últimos anos. Então as atenções focaram-se na produção em Taiwan, que actualmente oferece a maior concentração de qualidade e volumes: não acaso, nos últimos tempos a fricção entre a China continental e aquela insular voltou ao rubro.

Por outro lado, o Ocidente tem gradualmente abandonado o sector da produção de electrónica de consumo desde os anos 60: no início, os fabricantes japoneses e sul-coreanos eram os mais fortes, depois vieram os chineses, com uma capacidade esmagadora e preços imbatíveis.

A Europa saiu de cena: as suas marcas tradicionais, da Nokia à Ericsson, da Alcatel à Italtel, passando pela Siemens, foram varridas. A América só conseguiu manter uma forte capacidade de produção nos mainframes, os processadores de grande escala, sistemas de recolha e processamento de dados que são a força de plataformas de comércio electrónico, como eBay ou Amazon, ou das redes sociais como Facebook e Twitter.

Curiosamente, não se fala muito nos meios de comunicação ocidentais sobre o que está a acontecer na Rússia, excepto para enfatizar o perigo representado pelos hackers e pelos relativos ataques cibernéticos à escala global. Isso apesar de Moscovo ser a sede do melhor produto antivírus em circulação (Kaspersky) e, como os utilizadores Linux sabem, de sistemas operativos completos e muito eficientes (além de diversificados. Como simples curiosidade: ALT Linux e ROSA*).

Agora estão a ser feitas tentativas para reiniciar a produção no sector das telecomunicações (TLC), mas no meio de imensas dificuldades. O NGUE (Next Generation EU), o Plano Europeu de Recuperação e Resiliência, atribui recursos consideráveis ao sector das tecnologias de informação e inteligência artificial. O mesmo é feito nos EUA com o programa federal 3B (Built Back Better), iniciado pela administração Biden. Sem estes enormes investimentos públicos, incluindo subvenções e encomendas não reembolsáveis à indústria europeia e americana, seria impossível reconstruir um sistema de produção destruído pela globalização mercantilista.

Este é o primeiro aspecto do “percurso autárquico” ocidental, um sistema de relações industriais e comerciais fechadas e subsidiadas no sector das TLC com o qual os EUA e a UE estão a tentar reconstruir um sistema de produção autónomo em relação ao resto do mundo, especialmente à China e aos seus parceiros asiáticos, como o Japão e a Coreia do Sul, e a própria Índia. E, é claro, impermeável a qualquer presença da Rússia.

A transicção energética

Depois há a questão da transicção energética.

O objectivo é descarbonizar a produção a fim de contrariar a alegada tendência para um aumento da temperatura da Terra. A teoria não é muito sólida mas isso não importa: foi assumida como válida pelos governos e agora há um plano. Só que o calendário previsto pelo Acordo Climático, que visa o ano de 2050 como meta final não é compatível com o processo geopolítico de isolamento da Europa da Rússia. Dito de forma mais simples: falta a energia.

Portanto, o conflito na Ucrânia dum lado poderia ser a oportunidade para acelerar o processo de redução da dependência do gás russo. Gás que é fundamental, ao ponto de ter sido considerado pela União Europeia como uma fonte compatível com o processo de transição energética, que prevê o abandono apenas do carvão e do petróleo como fontes fósseis de produção de electricidade. O problema será substituir o gás actualmente fornecido pelos Russos.

Os recursos do citado plano europeus NGUE para a transição energética representam assim o segundo pilar da mesma estratégia, com o qual a Europa tenciona isolar-se da Rússia: são contribuições não reembolsáveis e encomendas às empresas europeias para a produção de energia a partir de fontes renováveis. Este é um enorme empreendimento, um desafio tecnológico e financeiro sem precedentes. Com muitas dúvidas, não acerca da capacidade tecnológica mas acerca da disponibilidade da matéria-prima e da eficiência das mesmas fontes renováveis.

Microchip, Energia verde… não é que falta algo?

Pelo que: EUA e Europa estão a construir um sistema fechado, um grupo energético independente e autónomo. Que terá custos de produção e consumo completamente fora do mercado. Ou seja: não serão preços concorrenciais, poderão ser aplicados apenas na “reserva de caça”. O automóvel eléctrico e a produção de energia a partir de fontes exclusivamente renováveis envolvem investimentos e custos insustentáveis num mercado global. Não são, hoje em dia, escolhas racionais e podem sobreviver apenas num mercado fechado, onde possam gozar de ajudas estatais.

Entretanto, as repercussões imediatas das sanções impostas à Rússia pela sua intervenção militar na Ucrânia penalizam a Europa muito mais do que a América, uma vez que só esta última é tão auto-suficiente em energia e agricultura como a Rússia. É fácil prever tempos duros na Europa: mesmo que o sector da telecomunicações digitais recupere, há não poucas dúvidas acerca da produção de energia a partir de fontes renováveis que serão incapazes de substituir 100% de gás, petróleo e carvão. Não acaso, há quem volte a falar de nuclear que, numa fase desta, seria a única alternativa capaz de fornecer grandes quantidades energéticas sem pegadas de carbono (as pegadas do nuclear, de facto, são outras).

Entre algo renovável e gás dos EUA, mais eventualmente o nuclear, o Velho Continente poderia até conseguir realizar o seu plano. Sem nuclear a coisa fica mais complicada. Uma solução bem mais rápida seria aquela de pôr em stand by a transicção “ecológica”, mas este cenário está fora de questão: os investimentos na Green Economy estão em constante aumento, parar agora significaria desperdiçar rios de dinheiro (e nem podemos subestimar as consequências nas Bolsas). EUA e UE estão intencionados a seguir os ditames da Green Economy, o que implicará também uma forçada redução dos níveis de vida (a felicidade do World Economic Forum).

As bolsas europeias estão a cair, juntamente com o Euro, enquanto os preços do Dólar e de Wall Street estão a subir: quando há perigo, o capital foge da periferia para refugiarem-se no centro do Império. Mau sinal: tudo o que resta ao Ocidente é uma autarquia tecnológica e energética, cada vez mais amarrado às ordens de Washington.

Voltando ao tema inicial: a Globalização ficará fora das possibilidades do sistema fechado EUA mais Europa. Com preços fora do mercado, por via dos custos das matérias-primas, a semi-Globalização ficará nas mãos da China, que problemas neste sentido não tem. Com a progressiva desdolarização (os principais adquirentes utilizarão cada vez mais moedas alternativas) e a criação dum quintal “de caça” limitado a Washington e poucos íntimos, continua com cada vez mais decisão a transferência de poderes para a China.

Tudo segundo os planos.

Agradecimentos

Para acabar: obrigado, obrigado a todos os Eurodeputados que, por medo de perder a cadeira (o tal “tacho”), viabilizaram qualquer medida castrativa apresentada pela Comissão.

Podemos (parcialmente) desculpar as ovelhas, alvos duma interminável propaganda e cada vez mais alérgicas ao uso dos neurónios. Podemos desculpar até a Comissão, doze indivíduos que afinal foram postos aí exactamente para executar o plano decidido por outros. Mas não podemos desculpar o Parlamento Europeu, cuja principal tarefa era a salvaguarda dos interesses de todos os cidadãos: a traição daqueles 704 vermes liderados pela maltesa Roberta Metsola terá agora custos que até é difícil imaginar. Mais simples adivinhar quem irá paga-los.

Pelo menos espero que agora já haja dúvidas quanto aos verdadeiros objectivos dos vários Euro e União: a completa destruição do Continente como entidade política e económica independente.

 

Ipse dixit.

*Nota: sempre como simples curiosidade, realço KolibriOS, um completo sistema operativo que cabe em 40 MB! É um “brinquedo” (funcionante), fruto só da paixão dum programador, mas é divertido.

Imagem: Pixabay