Site icon

Um mínimo de coerência

Na Palestina está a consumar-se o enésimo acto de agressão levado a cabo pelas forças nazisionistas de Tel Avive. E alguns Leitores devem ter reparado no silêncio de Informação Incorrecta acerca do assunto. Não é que eu não siga os acontecimentos e não fique enjoado, só que para falar seriamente deste novo ataque seria antes preciso fazer um discurso um pouco mais amplo, que já foi feito várias vezes nestas páginas e que vou resumir apenas para os Leitores mais recentes.

Desresponsabilização alternativa

Uma das funções da assim chamada “informação alternativa” é aquela de representar um abrigo para quem costuma pensar out of de box, de forma diferente. É bonito encontrar-se aqui, trocar informações, discutir, ver que não estamos sozinhos, que há outras pessoas fartas duma realidade construída e manipulada. Tudo bom, tudo verdadeiro. Mas, no meu entender, acho que a informação alternativa deveria ir um pouco além disso: pegar com duas mãos a coragem e dizer aos Leitores “Senhores, a culpa é vossa”. Não “também vossa” mas “sobretudo vossa”.

O que se passa na Palestina é o que já aconteceu demasiadas vezes no passado. Também as reacções da “maioria silenciosa” são e continuarão a ser as mesmas: tudo segundo o esquema já visto vezes sem conta. Nas páginas da informação alternativa, actualmente cheias de imagens e artigos impressionantes, iremos encontrar textos nos quais o regime nazisionista de israel é condenado. Pelo que: israel é mau, israel é cruel, israel isso e aquilo. E os EUA também são maus: condenação para Washington também.

Tudo correcto, tudo verdadeiro: o governo nazisionista de Tel Avive é um regime altamente racista e prevaricador que não tem a mínima justificação possível. Tem que ser condenado e o mesmo vale no caso do maior aliado israelita, os EUA. Todavia, há anos que condenamos e com quais resultados? Zero. Talvez seja altura de perguntar: será que estamos a fazer tudo o que deveria ser feito para evitar um novo massacre? Será que estamos a fazer tudo para ajudar o povo palestiniano? Será que condenar é a nossa única arma?

E a resposta é “não, não estamos a fazer tudo”. Aliás: não estamos a mexer um dedo. E não falo dos nossos governos, dos quais afinal podemos esperar o quê? Falo de mim, falo dos Leitores, falo de nós. E não, condenar não é a nossa única arma.

É neste ponto que trava a maioria da informação alternativa, é neste ponto também que pára o Leitor com o “Mas o que posso fazer eu?”. E este é um erro porque tanto a informação alternativa quanto o Leitor, se fosse presente a vontade, poderiam fazer algo.

A reportagem

Uma reportagem de France 2, Envoyé Spécial, transmitido na Quinta-feira 11 de Outubro de 2018, deu a palavra a um soldado do exército israelita. Este reconheceu que o seu exército aconselhava tiros incapacitantes: dispara-se para ferir e incapacitar, para que os jovens sofram amputações.

A reportagem mostrou a reeducação de jovens palestinianos que tinham perdido uma perna. “Alaa, 21 anos, sonhava ser o campeão palestiniano de ciclismo de estrada. Mas a 30 de Março, uma bala tirou-lhe a perna direita e todas as suas esperanças. Mohamad, 13 anos, gostaria de se tornar um médico. Também ele foi amputado, como Atallah, 17 anos, e muitos outros. Todos eles perderam as pernas para o fogo dos franco-atiradores israelitas”.

Reacções? Zero. Aliás, uma: a embaixada israelita pediu que a emissão fosse proibida por causa do risco de reacções anti-semitas. Porque ser anti-semita é mau. Ser o açougueiro de jovens palestinianos, pelo contrário, é auto-defesa.

“Eu?”

“O que posso fazer eu?” pergunta novamente o Leitor. Aqui está uma possibilidade: contactar a sua emissora televisiva favorita e pedir que aquela reportagem seja traduzida e transmitida em horário nobre, tal como aconteceu em França. Aquela ou outra reportagem do mesmo tom. Este é só um entre os exemplos possíveis.

Isso resolve a questão palestiniana? Claro que não. Mas se a alternativa for entre o nada e um pequeno gesto, qual a escolha da consciência do Leitor?

A emissora irá ignorar o pedido? Claro que sim. Mas ninguém faz uma revolução sozinho: é necessária a vontade de muitos. E se os muitos ficam calados, tudo continua segundo a vontade dos poucos. Que é exactamente o que acontece.

Mas a maioria silenciosa não entende. Outros fingem não entender. Verdade seja dita: pode não ser fácil perceber porque o sistema democrático é pensado para desresponsabilizar. Vamos às urnas, damos o nosso voto democrático e democraticamente aceitamos o resultado. A seguir o ponto fundamental: democraticamente aceitamos que o nosso governo nada faça para impedir os massacres na Palestina. Mas isso significa que, democraticamente, somos cúmplices daqueles massacres. Democraticamente estamos do lado dos israelitas. O nosso silêncio pesa e mostra o caminho: o caminho da condenação qual única arma. O nada.

“Eu não quero mas os outros…”

Há anos que estou pessoalmente envolvido no boicote dos produtos de origem israelita. Claro que o meu é um acto pouco mais de que simbólico e, em qualquer caso, este sou eu com as minhas escolhas, que podem estar certas ou erradas; pelo que não peço que o Leitor siga as minhas pegadas. Mas não dá para continuar a choramingar nestas ou noutras páginas com os mortos palestinianos como se isso não fosse também uma nossa responsabilidade, fazendo de conta que a culpa seja sempre e só dos outros. Não, não é culpa apenas dos outros.

O “eu não quero mas os outros é que fazem” já não pode satisfazer a nossa honestidade intelectual e tem que ser substituído por uma mais sincero “eu não quero mas deixo que aconteça”. Não importa se o Leitor vota na Direita ou na Esquerda: isso não tem a mínima importância, nunca teve. O Leitor é sempre parte do jogo democrático, aquele mesmo jogo que tranquiliza o Leitor ao dizer-lhe “Tranquilo, não é culpa tua, tu és bom, são os outros que não entendem”. E a consciência pode voltar para a gaveta.

Não, querido Leitor, não é assim que as coisas funcionam: nós somos o sistema que legitimamos com o nosso voto. Se o sistema por nós legitimado não impede os massacres na Palestina, significa que nós não impedimos os massacres na Palestina. Então, como afirmado, nós somos cúmplices do regime nazisionista de israel, nós somos os seus aliados.

Ninguém pede ao Leitor para resolver sozinho a questão palestiniana. Mas por esta altura o “que posso fazer eu?” começa a roçar o patético. E o desonesto, porque a falta de acção torna o Leitor parte daquela maioria silenciosa feita de muitas boas pessoas que “não querem mas deixam que aconteça”.

Vale sempre: coerência

Como é óbvio, este discurso todo não vale apenas no caso da Palestina. Vale quando entramos numa urna eleitoral para sermos “bons cidadãos”. Vale quando entramos num supermercado e entregamos o nosso dinheiro às multinacionais. Vale sempre. Pelo que o primeiro e insubstituível passo é admitir que a nossa pessoal falta de acção tem uma consequência. Pequena, mas tem. São as milhões de pequenas consequências juntas que ditam o presente e preparam o futuro: são elas que viabilizam as escolhas ou as omissões dos nossos governos.

A partir deste ponto é com a consciência do Leitor: está satisfeito com o mundo que tem? Nada quer mudar? É uma escolha legítima, até compreensível: não pode ser criticada. A não ser que o Leitor comece a queixar-se mesmo por causa do mundo que tem: é aqui que se torna obrigatório pedir coerência.

Voltando ao caso da Palestina: basta de lágrimas perante as imagens dos nazisionistas israelitas que massacram um povo inerme, basta de álibis e desculpas. Fazemos uma escolha com as nossas decisões ou com a falta delas: aos menos tentamos ter a coragem para admitir isso.

 

Ipse dixit.

Imagem: Youssef Massoud/AFP