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Michel Onfray: entre queijos e ditaduras

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E falamos de livros. Aliás, dum livro: Théorie de la dictature, de Michel Onfray, publicado neste anos pela editora Robert Laffon.

Michel Onfray é um filosofo com um defeito: é francês. Mas, apesar disso, tem muitas ideias interessantes: costuma definir-se um pós-anarquista, anticomunista, anti-liberal, anticapitalista e simpatizante do socialismo libertário e do mutualismo de Proudhon, um assunto este que iremos aprofundar em futuro. Contrariamente a muitos filósofos teóricos, Onfray é alguém bem enraizado na sociedade e que não tem problemas em participar de forma activa na vertente social e politica. Um autor aconselhado, cujos livros podem ser encontrados nos links que ficam na parte final deste artigo.

Michel Onfray acaba de publicar um novo livro, como vimos, aquele “Teoria da Ditadura” que será possível ler em bom português perto do ano de 2097 ou pouco depois. Mesmo assim, vamos espreitar o conteúdo porque um dos pontos fulcrais da obra é a progressiva estupidificação das pessoas, algo que, segundo o autor, constitui um enorme problema.

Segundo Onfray, George Orwell era um pensador político de alto nível, alguém que antecipou o totalitarismo dos nossos tempos. Será este um exagero ou será que realmente entrámos numa nova forma de ditadura? Não, não há exagero: é importante realçar como não haja um regresso ao Nazismo ou ao Estalinismo, estas são formas de ditaduras que já tiveram o tempo delas e não voltarão. O que interessa não é como o totalitarismo costumava funcionar no passado, mas como o totalitarismo funciona hoje, na era da Internet, dos dados, dos smartphones. O totalitarismo de hoje não veste capacete ou botas. Mas vivemos numa sociedade feita de controle: o facto de podermos ser constantemente espiados, o facto de alguém estar constantemente a acumular dados sobre nós, etc., significa que esta sociedade do controle alcançou um ponto que nunca foi alcançado.

Vivemos numa espécie de escravidão voluntária com as novas tecnologias. Mas isso às vezes é extremamente perverso. Por exemplo, para garantir a confidencialidade e a segurança, é pedido para que sejam aceites certas coisas, mas, ao aceitá-las, transmitimos “voluntariamente” as nossas informações. É claro que podemos recusar, mas, ao fazê-lo, não podemos viajar de comboio, de avião ou fazer o que desejamos fazer.

Mas era isso que Orwell tinha antecipado? Orwell pensava como um romance, utilizava a ficção. Mas a sua ficção científica deixou de ser imaginária e tornou-se ciência. O ecrã da TV que controla tudo e de forma permanente existe hoje. Agora estamos naquele ecrã. Foi Orwell quem inventou certas coisas sobre o controle das pessoas e sobre a invisibilidade dos poderes, e é exactamente isso que distingue o antigo totalitarismo do novo totalitarismo. Na altura, o poder tinha um rosto que podia ser reconhecido, hoje quem decide? Quem são, onde estão as pessoas que tornam tudo isso possível? A resposta de Onfray é que aqueles indivíduos da Costa Oeste dos Estados Unidos têm um projecto de dominação sobre o mundo e não um projecto transhumanista.

E o Capitalismo? Segundo Onfray, o Capitalismo não desaparecerá porque é intrínseco aos homens. Uma visão demasiado pessimista? Não acho. Temos que admitir: a tendência para acumular mais do que precisamos é algo que sempre o Homem teve, assim como a ideia de propriedade privada, defendida com a força se necessário, surgiu bem cedo. Somarmos a vontade de melhorar a nossa condição de vida com objectos que não representam uma necessidade sempre foi presente. E foi assim também que nasceu o comércio, uma actividade que não é moderna mas que pode ser encontrada ainda antes do surgimento das primeiras civilizações: não o comércio de bens essenciais, mas o comércio de objectos desejados simplesmente porque “diferentes”.

A poucos quilómetros donde moro, em Palmela, perto do ano de 3.000 a.C., nasceu a cultura dos vasos campaniformes, objectos que depois foram encontrados na França, na Inglaterra, na Italia, na Áustria, República Checa, na Hungria, até na África do Norte. Os povos daquelas regiões não tinham vasos? Tinham, mas o comércio espalhou o desejo, a vontade de ter aquele objecto novo e exótico. Mas, para obtê-lo, era necessário pactuar com o comerciante e, ainda antes, acumular bens não necessários à nossa sobrevivência para depois emprega-los como moeda de troca. Era uma programação económica individual, baseada na procura, o que é a essência do Capitalismo.

O problema é que hoje o Capitalismo já não tem inimigos à sua frente. Com a queda do bloco soviético, o Capitalismo sentiu que poderia triunfar. Alguém, como o politólogo Francis Fukuyama, chegou a afirmar que este era o fim da História, a vitória completa do Neoliberalismo. Mas há um senão: o mundo não é composto apenas de Capitalistas e Comunistas, há outros actores neste conto, algo que a moderna civilização teima em esquecer e ocultar: os poderes espirituais. E o Islão é um bom exemplo disso.

Michel Onfray

E a democracia representativa? ainda poder ter um papel nisso tudo? Não. As pessoas e os seus representantes já não coincidem. Nos Parlamentos há uma super-representação de profissões liberais, como advogados ou professores, mas há poucos pastores, poucos taxistas, poucos estudantes. Isso significa que há uma parte da sociedade que simplesmente não está representada. E então, para ter esperança de ser eleito, é preciso ter dinheiro, entrar num sistema, assumir a forma de um partido. Essa democracia representativa já teve os seus dias. O referendo sobre o Tratado de Maastricht foi a personificação perfeita dos seus limites: os eleitos pelo povo votaram contra o povo.

Hoje os defensores da democracia gritam perante a ameaça do “populismo”. No entanto, é preciso diferenciar entre populistas e “popolicidas”. E o problema está aqui e não, como querem que acreditemos, entre populistas e democratas. Macron, Chirac e Mitterrand, tanto para ficar na França de Onfray, são antes de tudo “popolicidas”, são homens que não querem governar em nome do povo. O problema é a progressiva cretinização do povo. E aqui Onfray pode surpreender com o seu optimismo que entra em contradição com quanto afirmado antes acerca do controle: a grande vantagem de Internet é que as pessoas podem procurar informações alternativas. “É fantástico um povo que decide assumir as suas responsabilidades, o facto dum texto jurídico possa ser pensado e criticado pelo povo é uma excelente ideia”.

Outro assunto tratado por Onfray é a questão da desobediência civil, com uma observação muito pertinente. A desobediência civil funciona? Quando o filósofo americano Henry Thoreau falava de desobediência civil, falava da guerra contra o México. Quando Martin Luther King utilizou a desobediência civil, foi para combater o racismo. A mesma coisa no caso de Ghandi, que queria a independência da Índia. Hoje todos pensam a desobediência civil funcione em todas as circunstâncias. Mas é mesmo assim? Feitas as contas, percebemos que estes movimentos não actuam por uma grande causa comum, mas por razões particulares. Mas recusar-se a fazer o nosso trabalho não transforma ninguém num herói da Resistência: a desobediência civil deve ser reservada apenas para as grandes causas comuns.

E depois há a emergência climática.

A emergência climática é o falso bicho-papão do Capitalismo. Por exemplo, os carros eléctricos que são apresentados como ecológicos, não são ecológicos. Querem propor novamente um “Capitalismo Verde”, o chamado “eco-responsável”. Hoje, quando queremos comprar um produto, nos dizem que é “orgânico”. A verdadeira ecologia, à qual aspiro, é tomada como refém por essa ecologia urbana que está nas mãos da publicidade. Estamos a brincar com o aquecimento global, que é inegável, independentemente das suas causas verdadeiramente científicas.

Então Greta Thunberg é apenas uma garota nas mãos do Capitalismo Verde que usa a ecologia como uma ferramenta de vendas:

Com a idade dela, por mais inteligente que seja, não consigo imaginar como poderia ter os argumentos necessários para entender completamente todas as questões científicas subjacentes à questão ecológica.

Voltando ao “social”, Onfray analisa os diferentes movimentos nos quatro cantos do planeta. Hoje em dia já não é possível enviar soldados para as ruas, porque, mais uma vez, graças ao fluxo de informações, todos percebem imediatamente o que se passa. Mas receio que todos esses movimentos sejam apenas uma espécie de grande “tremor” democrático, depois do qual um ditador sai e outro entre para substitui-lo. Isso muda realmente alguma coisa? Certamente não será afastando Macron e colocando no seu lugar Muriel Penicaud (a Ministra do Trabalho) que uma grande revolução democrática pode ser feita. Todos esses movimentos são um sinal de que as pessoas estão fartas: não aguentam mais ver que existem tantas pessoas arrogantes ou que começam uma guerra apenas para ficarem ricas. Como Trump, que, com incrível cinismo, declara, depois de matar Baghdadi, que fez isso para proteger o petróleo. Hoje, graças à rede, as pessoas estão prontas para sair às ruas muito rapidamente. Essas revoltas populares animam mas, ao mesmo tempo, o perigo real é que sejam exploradas por demagogos que estão sempre lá prontos para desfrutar a ocasião. Os Coletes Amarelos da França já foram explorados por Mélenchon, devido à violência dos provocadores, dos Black Blocks, etc. Num certo sentido, esta é a lição da História: as pessoas sempre sofrem com essas desapropriações dos movimentos.

Duas palavras acerca da escola: Onfray afirma que “A língua é atacada”. O que significa? Significa, como explica o filósofo, que os nosso pais cresceram e estudaram em escolas do Estado, onde era preciso escrever sem cometer erros gramaticais ou erros lógicos, onde aprenderam alguns grandes clássicos da literatura. A destruição da escola levou à destruição da inteligência. Trata-se cada vez menos de educar um cidadão a pensar e criar cada vez mais um consumidor que paga. Aprendemos cada vez menos. Mas o cérebro é um músculo: se não o mantermos activo, começa a encolher.

A uma nota acerca da frase que acaba o novo livro de Onfray: “Não tenho a certeza se quero ser progressivo”. Na verdade, Onfray é contrário ao progressismo apresentado até hoje. O progresso não é um bem só por si: pode haver o progresso do mal ou o progresso da morte. Dizer a uma mulher pobre que pode alugar um útero para ter um filho não é uma forma de progresso. O jogo de colocar sistematicamente populistas maus contra progressistas bons não faz sentido. Ser conservador por vezes é uma mais valia, mesmo no caso dum socialista libertário ou dum anárquico como Onfray. Porque o que é bom é para ser mantido. Por qual razão afirmar que é preciso mudar tudo? Mudar a qualquer custo não faz sentido. E hoje, a impressão é que a nossa civilização esteja a avançar às cegas.

 

Ipse dixit.

Livros de Michel Onfray:

Obviamente podem experimentar encontrar algo no Google com os termos “Michel Onfray Pdf”, às vezes funciona, quem sabe? 🙂