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Ucrânia: os planos da Rand Corporation em 2019

De acordo com o relatório da Rand Corporation de 2019, intitulado Overextending and Unbalancing Russia (“O prolongamento e o desequilíbrio da Rússia”, aqui o documento em Pdf), o objectivo dos Estados Unidos era minar a Rússia tal como fez com a União Soviética na Guerra Fria. Em vez de tentar ficar à frente ou melhorar os EUA do ponto de vista interno, ou ainda nas suas relações internacionais, a ênfase estava nos esforços e nas acções para minar o adversário designado, a Rússia.

A Rand é um think tank quase governamental, no sentido que recebe três quartos do seu financiamento das forças armadas americanas. Entre os mais notáveis membros, lembramos o Prémio Nobel da Economia Kenneth Arrow, o académico Francis Fukuyama (autor do O Fim da História), Condoleezza Rice, Donald Rumsfeld e, obviamente, Henry Kissinger que está presente em todos os think tank passados, presentes e futuros dos EUA.

O relatório enumera medidas anti-Rússia divididas nas seguintes áreas: económica, geopolítica, ideológica/informativa e militar. São avaliadas de acordo com a percepção dos riscos, benefícios e probabilidade de sucesso. Assinala como a Rússia tenha ansiedades “profundas” sobre a interferência ocidental e um potencial ataque militar. Estas ansiedades são consideradas uma vulnerabilidade a ser explorada com intervenções em várias possíveis frente: Síria, Bielorrússia, Cáucaso, Ásia Central e, obviamente, Ucrânia.

A actual subsecretária para os assuntos políticos, Victoria Nuland, afirmou que ao longo de 20 anos os EUA investiram 5 mil milhões de Dólares no projecto de transformação da Ucrânia. O ponto culminante foi o violento golpe em Fevereiro de 2014 e desde então os EUA têm vindo a formar as milícias ultra-nacionalistas e neo-nazis de Kiev. Nada disso é um mistério (é possível seguir. Todavia, até o ano de 2018, os EUA apenas forneciam à Ucrânia armas militares de carácter “defensivo”.

O relatório Rand avalia que prestar ajuda militar letal (ofensiva) à Ucrânia teria um risco elevado, mas também um benefício elevado. Como resultado, o armamento letal fornecido pelos EUA disparou de quase zero para 250 milhões de Dólares em 2019, para 303 milhões de Dólares em 2020 e para 350 milhões de Dólares em 2021.

O relatório Rand enumera várias técnicas e medidas para provocar e ameaçar a Rússia. Algumas incluem:

Estas e muitas outras provocações sugeridas pela Rand foram, de facto, implementadas. Por exemplo, a NATO conduziu maciços exercícios de guerra apelidados de Defender 2021, mesmo na fronteira com a Rússia. A NATO começou a “patrulhar” o Mar Negro e a fazer intrusões provocatórias nas águas da Crimeia. Os EUA retiraram-se do Tratado INF.

E nem podemos esquecer a questão da entrada da Ucrânia no seio da organização atlântica:

Embora a exigência de unanimidade da NATO torne improvável que a Ucrânia consiga a adesão num futuro próximo, se Washington empurrar esta possibilidade poderá aumentar a determinação ucraniana, levando a Rússia a redobrar os seus esforços para impedir tal desenvolvimento.

Portanto, mesmo admitindo que Kiev não terá a possibilidade de ingressar na NATO, pois para tal seria preciso que todos os actuais Estados-membros votassem em conformidade (o que não parece provável), em 2019 a Rand sugeria que o assunto fosse explorado como uma forte provocação para alarmar Moscovo. A alternativa, que até poderia ter impedido o actual ataque russo, teria sido declarar a Ucrânia inaceitável no âmbito a NATO: mas isto teria sido contrário à intenção dos EUA de aumentar deliberadamente a pressão, provocar e ameaçar a Rússia.

Aliás, em Novembro de 2021, os Estados Unidos e a Ucrânia assinaram um Documento de Parceria Estratégica, acordo que confirmava as aspirações da Ucrânia a aderir à NATO (apesar das poucas possibilidades disso vir a acontecer) e a rejeição da decisão do povo da Crimeia de se reunificar com a Rússia após o golpe de Kiev de 2014. Em Dezembro de 2021, a Rússia propôs um tratado com os Estados Unidos e a NATO: a proposta da Rússia era um acordo escrito de que a Ucrânia não teria aderido à NATO. Este acordo foi rejeitado por Washington.

Como afirmado, o relatório da Rand avalia custos e benefícios de várias possíveis acções dos EUA. É considerado um “benefício” se o aumento da assistência dos EUA à Ucrânia resultar na perda de tropas e recursos russos. Especulando sobre a possibilidade da presença de tropas russas na Ucrânia, o relatório sugere que isso poderia tornar-se “bastante controverso em casa, como quando os soviéticos invadiram o Afeganistão” (pág. 99 do relatório completo).

E mais:

O aumento da ajuda militar dos EUA iria certamente aumentar os custos russos, mas fazê-lo poderia também aumentar a perda de vidas e de território ucraniano ou resultar num acordo de paz desvantajoso.

Desvantajoso para quem? Vidas e território ucraniano estão actualmente a ser perdidos. Um acordo de paz que garantisse direitos básicos a todos os ucranianos e a neutralidade do Estado na rivalidade entre as grandes potências beneficiaria a maioria dos ucranianos. Só a política externa dos EUA e da Rússia, incluindo o complexo industrial militar e os ultranacionalistas ucranianos, é que estariam numa posição “desvantajosa”.

Pensamento final: o estudo da Rand não é algo segredo. Está online, tal como sempre esteve. Os meios de comunicação norte-americanos, e ocidentais no geral, sempre tiveram livre acesso a este como a outros documentos que traçavam um rumo claro para a guerra. Todavia, estes documentos foram e continuam a ser ignorados, mesmo que sejam o trabalho duma organização tão próxima do Pentágono e da Casa Branca.

Da mesma forma, também os russos sabiam dos planos de Washington. E, mesmo assim, aceitaram seguir exactamente o percurso programado pelo Ocidente, “caindo” conscientemente na “cilada” e favorecendo a realização dos planos ocidentais.

Não é difícil ficar com o quadro geral, pois não?

 

Ipse dixit.