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Gás? Tão simples!

A Rússia fecha o gás? E nós importamos tudo a partir de Qatar e Estados Unidos. Ouvi isso mesmo num canal televisivo aqui do burgo.

Muito simples, não é? Que Putin fique com o gás e desfrute para preparar um churrasco de salsichas de rena, nós temos válidas alternativas: temos amigos já prontinhos a enviar tudo o que precisamos. Não há gasodutos entre as novas reservas de gás e a Europa? E nós carregamos tudo em navios, não somos burros.

Mas antes de começar a carregar, talvez duas contas possam ajudar. Nada de complicado, também porque perante a Matemática o meu cerebrinho entra em crise. Vamos manter tudo no básico, ok?

A Europa importa um total de cerca de 168 mil milhões de metros cúbicos de gás da Rússia. O que não é pouco.

Quanto consegue transportar um navio-tanque, mesmo um daqueles de dimensões colossais? Existem poucas unidades deste tipo de embarcação mas o dado é o seguinte: cada navio pode transportar um máximo de 266.000 metros cúbicos de gás liquefeito, o que corresponde aproximadamente a 70 milhões de metros cúbicos no estado que sai dos gasodutos.

Infelizmente, a quase totalidade da frota de navios-tanque pode carregar entre 125.000 e 147.000 metros cúbicos. Uma pena.

Mesmo assim, no mundo existem pouco menos de 500 navios para o transporte de gás, com uma capacidade total de 75 milhões de metros cúbicos em estado liquefeito: apenas um décimo do gás que viaja da Rússia para Europa. Tendo em conta uma média de 20 dias para carregar, descarregar e regressar quer dos EUA quer do Qatar, e incluindo o tempo de paragem de manutenção (particularmente dispendiosa), cada navio poderia completar entre 11 e 12 ciclos por ano.

Por conseguinte, toda a frota mundial de navios-tanque para o transporte de gás teria de ser inteiramente utilizada para a Europa porque, claro está, somos os mais bonitos. Mas há uma nota dissonante neste raciocínio: isso aumentaria os custos dos fretes em dezenas de vezes num curto período de tempo. É a lei do mercado. E já agora os fretes oscilam entre 20 e 30 mil Dólares por dia. Incómodo, não é? Pois.

Mas até aqui falamos apenas da operação de transporte. Depois há a liquefacção: o gás tem o péssimo vício de torna-se (parcialmente) líquido quando fica parado, provavelmente por causa do tédio (experimente o Leitor ficar fechado num navio-tanque ao longo de dias). Este fenómeno aumenta os preços do produto em 20%. Portanto, temos que considerar também os custos das operações de carga, descarga e regaseificação. Quanto custa tudo isso agora (isso é, sem calcular eventuais e futuras manobras especulativas)? Três mil milhões de Euros por ano. É um 3 seguido por 9 zeros. Os zeros não valem muito, mas aquele 3 inicial arruína tudo. Obviamente seria a Europa a pagar, tanto os zeros como o 3.

Tudo isso significa que, mesmo que fosse possível reduzir para metade as importações da Rússia dentro de 6 ou 7 anos (a energia limpa, a energia eólica, os paneis solares!), continuaria a ser necessário um número impraticável de navios e de instalações. Mesmo que isto fosse hipoteticamente viável, significaria preços exorbitantes e empresas com uma produção completamente fora do mercado.

Uma situação que teria um resultado curioso: um empurrão adicional para a deslocalização das empresas para onde os preços forem mais baixos, com energia mais em conta e mão de obra mais barata. O Leitor está a pensar em qual País? Por acaso é um País que começa com a letra “C”? Parabéns, o Leitor adivinhou.

Isso explica as sanções ocidentais que expulsaram tudo o que for russo do sistema SWIFT mas não o banco Gazprombank, de propriedade da Gazprom, a maior exportadora de gás natural do mundo. Isso chama-se “medo”. Sempre esperando que a Rússia não corte os fornecimentos, porque caso contrário a melhor opção seria começar a acumular lenha.

Mas nada disso explica como é possível que autênticos analfabetas possam ter tempo de antena. Ou será que explica também isso? Explica, admitindo que o ódio dos imbecis apenas serve para ocultar a desindustrialização do continente.

 

Ipse dixit.

Imagem: PxHere CC0 Public Domain