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O RCEP

Um dos argumentos ligados à guerra na Ucrânia é, como é natural, o assunto económico. Quem está a arriscar mais não é a Rússia por causa das sanções ocidentais mas a Europa: boa parte do fornecimento de energia no Velho Continente chega via Moscovo e é claro que problemas neste sentido poderiam provocar o enfraquecimento da economia no Velho Continente. Mesmo que Moscovo decida não suspender o fornecimento (como parece até a data), as sanções teriam um efeito-boomerang, castrando as trocas comerciais do eixo Oeste-Leste (empobrecendo e ligando ainda mais a Europa aos EUA).

Ao assistir aos debates dos “especialistas” no órgãos de comunicação, é simples encontrar a ideia de que as sanções irão “destruir” a economia russa. E mais: circula até a sugestão segundo a qual as medidas “punitivas” ocidentais poderiam representar uma forma de atingir indirectamente a China também, pois Pequim precisa desesperadamente do mercado ocidental para manter e fortalecer o seu crescimento. Portanto, podemos ficar descansados: as sanções serão “inteligentes” e “cirúrgicas”, nada de crise que possa pôr em causa a nossa indiscutível supremacia e o relacionamento entre o Ocidente e a primeira potência comercial do planeta, sempre obrigada a chegar a um acordo connosco.

Como demasiadas vezes acontece, e tanto para utilizar uma expressão tipicamente americana: bullshit (“estupidez” em bom e pudico português). Alguém deveria explicar o que é o RCEP.

RCEP

Desde o dia 1 de Janeiro de 2022 está em vigor o RCEP (acrónimo inglês para “Parceria Económica Regional Abrangente”), o acordo de livre comércio entre Sudeste Asiático, Coreia, China e outros Países. É o maior acordo de comércio livre existente neste momento. E podem crer: irá perturbar as cadeias de produção, o comércio internacional e a inovação tecnológica no planeta todo.

A lista dos Países interessados:

Para ter uma ideia do que estamos a falar: estes 15 Países representam 30% da população mundial (2.2 mil milhões de pessoas segundo estimativas conservadoras), 30% do PIB mundial (29.7 triliões de Dólares) e 40% do comércio mundial.

Fonte: Wikipedia

É verdade, neste acordo há um grande ausente, a Índia: o governo indiano retirou-se do RCEP principalmente devido a preocupações com um aumento nas importações, sobretudo da China, o que poderia afectar os seus próprios sectores industriais e agrícolas. Mas o potencial do RCEP permanece intacto e impressionante. O PIB combinado dos membros do RCEP ultrapassa o PIB combinado dos membros da Parceria Trans-Pacífico (TPP) de 2007. O crescimento económico contínuo, particularmente na China e Indonésia, poderia aumentar o PIB total dos membros do RCEP em mais de 100 biliões de Dólares até 2050, aproximadamente o dobro da dimensão do projecto TPP.

De acordo com uma projecção da Brookings Institution, o RCEP poderia acrescentar 209 mil milhões de Dólares anuais aos rendimentos mundiais, e 500 mil milhões de Dólares ao comércio mundial até 2030, enquanto “novos acordos tornarão as economias do Norte e Sudeste Asiático mais eficientes, ligando os seus pontos fortes em tecnologia, manufactura, agricultura, e recursos naturais”. Tudo isso produzirá benefícios especialmente para China, Japão e Coreia do Sul e perdas para os Estados Unidos e Índia, e “será especialmente valioso porque reforça a interdependência da Ásia Oriental, aumentando o comércio entre os membros em 428 mil milhões de Dólares e reduzindo o comércio entre os não-membros em 48 mil milhões de Dólares” (Peterson Institute for International Economics).

China em crise por causa das escolhas ocidentais? Não brinquemos. A China já não é o País de 30 anos atrás: as enormes despesas em educação, investigação e desenvolvimento tornam Pequim um polo tecnológico avançado em pé de igualdade com o Ocidente. E a sua taxa de inflação é de 1.6% (e tende a baixar) enquanto na UE é superior a 5%: o diferencial de inflação é totalmente a favor dos chineses, que desta forma irão corroer as quotas de mercado dos europeus nos mercados mundiais, principalmente na Ásia.

Como se não bastasse: no último ano o preço do gás disparou e, tendo os génios de Bruxelas recusado a oferta da russa Gazprom, a Europa procura o produto no mercado spot (o melhor oferente na altura da contratação) enquanto a China tem acordos de longo prazo com os fornecedores russos e pode contar com preços inferiores. A vantagem energética chinesa sobre a UE é óbvia.

O quadro resultante não é nada alegre na óptica ocidental: a Rússia estabeleceu um eixo com a China e agora olha para Oriente; a China tem 30% do capital industrial mundial (a UE 15% mas está sempre a diminuir) e pode privilegiar o “quintal” do RPEC. Mas também os EUA têm pouco para rir: Washington aproveitará a guerra para vender armas e injectar capital na Bolsa de Valores, o que é bom para a aristocracia financeira americana mas pouco mais do que isso.

Se a guerra implicar o encerramento do eixo energético Alemanha-Rússia (e o Primeiro Ministro da Alemanha Scholz acabou de destruir o North Stream 2, tal como o dono americano tinha ordenado), não é certo que os europeus não se voltem cada vez mais para o cenário asiático não para “impor” mas para “pedir”.

Aqui no Ocidente estamos condicionados por uma retórica de regime que apresenta o nosso mercado qual elemento central e incontornável da economia mundial. Sem dúvida é ainda um mercado de primária fundamental, acerca disso não pode haver dúvidas. Mas já não é motivo de sobrevivência. A Rússia, com a invasão da Ucrânia, acaba de fechar a porta na nossa cara: alguém entre os “especialistas” deveria explicar que Moscovo pode fazê-lo porque o seu bem-estar já não depende apenas do Ocidente.

A ideia segundo a qual “ou estás connosco ou ficas miserável” deixou de representar a realidade porque o projecto de tornar a China o novo “umbigo do mundo” continua a avançar com uma rapidez assinalável. O RCEP é mais um passo bem conseguido nesta direcção, uma peça na construcção dum novo quadro global.

 

Ipse dixit.