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O Canada e os caminhos cársicos

Cometário de Bandido (que agradeço!):

Estes bonitos selos que os detentores dos processos de podridão no nosso mundo, ou seja, aquela massa amorfa que habita o centrão em todo e qualquer país e que está deitado na mesma cama com os maiores criminosos do planeta, a começar pelos donos dos Bancos/Fundos, são os selos “giros”.

Tudo o que escapa ao centrão (que rima com podridão) é logo batizado de:

1 – Comunista/Pedófilo/Lunático/Terrorista/Radical/Fanático;

ou

2 – Fascista/Pedófilo/Populalista/Terrorista/Racista/Radical/Fanático;

O centrão são os fofinhos, os responsáveis, os adultos.

E assim vamos nós, aceitando este estado de coisas, repetindo as frases e expressões que ouvimos na televisão, acusando o vizinho (tão pobre quanto nós), alegremente, mas convictos da razão, a caminho do abismo.

Hoje abro o sito L’AntiDiplomatico (de Esquerda) e encontro esta reflexão marxista acerca dos protestos no Canada (a propósito: atenção aos acontecimentos das últimas horas na França também). Peço desculpa pelo estilo contorcido, traduzi de forma literal:

Um ponto de vista marxista

Em todo o mundo, as pessoas manifestam-se com bandeiras nacionais e canções nacionalistas. Temos de ser marxistas e perguntar-nos por que razão isto está a acontecer antes de acusarmos um movimento mundial de ser o quê. Nazi? Fascista?

Penso que se trata simplesmente de populismo nacional. Nacional porque, face ao globalismo das mercadorias sem Estado, a única resistência possível ao mundo pós-moderno e pós-religioso/ideológico são as comunidades nacionais e territoriais.

Resíduos de um passado mas fontes de construção do sentido num mundo em rodopiante mudança. O Greta Reset do capital, de facto. Isto não significa nacionalismo. Também. Mas nem sempre. […] Indica apenas a revolta popular contra os dominantes.

A defesa do perímetro de ser contra a tecnologia e o dinheiro.

A busca de sentido em simplesmente pertencer a algo em oposição à financeirização e despersonalização do mundo. A revolução prossegue em caminhos cársicos [do Carso, típica região de fronteira entre Italia e ex-Jugoslávia; no geral, indica uma terra cheio de buracos, ndt] e nunca iguais. Quanto mais cedo compreendermos isto, mais cedo poderemos lutar pela hegemonia de um movimento de massas mundial. Para o inferno todos os progressistas.

Estamos com os bárbaros sujos, malvados e talvez até bêbados de cerveja no assalto aos belos centros urbanos, lugares também metafóricos da ZTL [áreas urbanas dedicadas aos veículos com “emissões zero”, ndt] do pensamento liberal. A força centrífuga da mercadoria na unificação do Mercado Mundial e na era da verdadeira submissão do trabalho ao capital é sempre oposta por um movimento centrípeto de reconhecimento social básico. A dialéctica deve ser sempre aplicada aos fenómenos históricos. Concreto e abstracto.

Nunca perder de vista o movimento do conhecimento, sob pena de permanecer à margem das verdadeiras contradições.

A realidade caleidoscópica é oposta por um sentido primitivo de valores parciais e sobre-simplificados. Arcaicos. Pasolínios (do realizador Pasolini, ndt], poderíamos dizer.

Precisamos de compreender o significado de uma revolta para a podermos dirigi-la melhor.

Mas fora dela existe apenas a presunção livreira de uma era que terminou em escombros. Quando corpos e sonhos renascem (de alguma forma e em qualquer forma historicamente determinada) no acto de revolta, devem ser compreendidos. E depois actuados em conformidade. Mas nunca condenado a priori.

Embaraçoso. Porque toda esta masturbação dialéctica pode e deve ser resumida numa única expressão: “falhámos”. O Marxismo, o Socialismo e todos os outros -ismos (tanto de Esquerda quanto de Centro e Direita) foram não apenas incapazes de socorrer o cidadão na altura dum dos piores ataques globais contra as liberdades, como até não poucas vezes foram cúmplices na aplicação das medidas mais apertadas e na consequente demolição económica dos Países.

Na Europa, a Esquerda e a Direita casaram sem a mais pequena dúvida a linha da narrativa oficial, permanecendo culpavelmente em silêncio face à censura actuada por parte de todos os meios de comunicação social, negado espaço para opiniões “fora do coro”. No Brasil a Esquerda utilizou a mesma narrativa para conduzir um ataque de carácter exclusivamente político contra os adversários. Dos EUA nem vale a pena falar. A China foi o berço da “pandemia”. A Rússia foi o primeiro País a desenvolver uma vacina. Síntese: a Covid representou o fim de todas as alternativas políticas tradicionais. Tornou evidente, da forma mais clara possível, como todos os -ismos afinal não passam dum chamariz para que a sociedade continue a correr sobre os carris escolhidos… pois, por quem? Não pelos cidadãos, de certeza.

Os caminhos cársicos

Agora os -ismos olham para os acontecimentos do Canada e rotulam. Porque já não podem fazer outra coisa. Neste aspecto, particularmente difícil é a posição das forças de Esquerda. Para já é preciso assumir como este movimento não nasceu das profundezas das fábricas ou nos bairros mais degradados do “proletariado”: nasceu entre as microempresas dos trabalhadores autónomos. O que é embaraçoso: mas não deveria ter sido o pobre trabalhador escravizado na fábrica a liderar a revolta contra o “patrão”? Sim, deveria segundo os sagrados textos. Mas acontece que o pobre trabalhador escravizado não pude participar pois ainda está na fila para receber a terceira salvífica dose.

E não deixa de ser soberanamente irónico o facto do -ismo marxista, que fez da análise das forças económicas que determinam os movimentos da sociedade a sua bandeira, ter sido incapaz de prever, reconhecer e acompanhar de forma digna o movimento canadiano. Definir isso como “embaraçoso” é limitativo: foi um fracasso total e sem apelo. E pouco importa agora o mea culpa, aqueles “a dialéctica deve ser sempre aplicada aos fenómenos históricos” ou “a revolução prossegue em caminhos cársicos”. Os caminhos cársicos estão todos na cabeça de quem fica agarrado aos dogmas ideológicos e depois é obrigado a olhar-se no espelho para dizer-se “precisamos de compreender o significado de uma revolta”. Melhor esquecer, o tempo acabou: não há hipótese de entender o que acontece no século XXI com as receitas do século XIX.

Mas os outros -ismos não foram melhores. Nem um levantou a voz em defesa dos manifestantes enquanto a comunicação social esmerava-se na obra de rotulagem: comunistas, terroristas, radicais, fanáticos, fascistas, tal como lembrado por Bandido, mais uns quantos punks (!!!) e até agentes de desestabilização ao serviço de Putin.

O que a pandemia veio demonstrar, entre as outras coisitas e além de qualquer dúvida, foi quanto os velhos -ismos possam estar desactualizados. Não se trata de renegar o passado ou de anular os conhecimentos conseguidos: a análise histórico-económica marxista mantém intacto todo o seu valor (que é de tipo histórico, não profético). O problema, como já lembrado, é que estamos em 2021: por esquisito que possa parecer, nos últimos 150 anos a sociedade mudou. Hoje a escravidão não é exercida primariamente nos lugares de trabalho mas sim directamente no interior dos nossos cerebrinhos com uma panóplia de instrumentos inimagináveis até poucas décadas atrás. Mas, enquanto isso, por aqui tentamos entender a realidade com um esquema nascido em 1789 com a Revolução Francesa e, para os mais vanguardistas, com O Capital de 1867.

Esquerda, Centro, Direita: existem?

Tudo isso significa que Esquerda, Centro ou Direita já não existem? Não, o discurso é mais complexo. Numa sociedade como a nossa, e até houver mudanças estruturais particularmente profundas, sempre irão existir políticas mais viradas para o bem estar do cidadão ou para facilitar as empresas no âmbito do “livre” mercado. Isso é implícito numa sociedade como a nossa e não pode ser mudado porque é assim que funciona o tal “livre” mercado que, lembramos, é o actual pino da sociedade toda.

O problema é que focar-se exclusivamente no lema “Esquerda, Centro ou Direita”, ou no mais simplificado dualismo “Esquerda/Direita”, significa entrar num círculo vicioso que tem como efeito continuar a manter em vida o actual sistema e impedir qualquer visão que possa ultrapassa-lo. Ao ficarmos agarrados a este velho esquema, nos factos impedimos a elaboração de novas alternativas. Mas, o que é mais grave ainda, isso permite a supremacia de quem utiliza o tal esquema como mero instrumento de poder e de controle; alguém que tem todo o interesse em assegurar que a realidade não mude ou, mesmo que tenha que mudar, mude de acordo com as suas expectativas e desejos.

Os acontecimentos do Canada demonstram que é possível sair desta armadilha ideológica. Claro, trata-se apenas duma reacção e não de algo realmente proactivo. Claro também, após a fase de rotulagem, os -ismos tentarão absorver o fenómeno e provavelmente irão conseguir. Mesmo assim: ainda existe algo imprevisto que pode perturbar o sistema. E esta é uma boa notícia.

 

Ipse dixit.

Imagem: paisagem cársica na Irlanda de Jonathan Wilkins, modificado, Attribution-ShareAlike 2.0 Generic (CC BY-SA 2.0)