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A “revolução” do Cazaquistão

O que se passa no Cazaquistão?

Quase três milhões de km², 18 milhões e meio de habitantes, mais de 7.000 km de fronteiras com a Rússia, 1.200 km com a China. Ao observar um mapa podemos entender a relevância estratégica do País:

Mais: uma abundante oferta de recursos minerais e de combustíveis fósseis. Petróleo, gás natural, potássio, a segunda maior reserva mundial de urânio, depois crómio, chumbo, zinco, a terceira maior reserva de manganês, a quinta maior reserva de cobre, carvão, ferro e ouro (entre as dez maiores reservas do planeta) E diamantes.

Quando num País como este o “povo” decide revoltar-se, as suspeitas acumulam-se. Também porque já sabemos o que são as “revoluções coloridas”: a Ucrânia, tanto para ficar no âmbito do antigo império soviético, ensina.

“Conspiradores”

Os factos: Nursultan Nazarbayev já não é o ditador do Cazaquistão. Foi o Presidente Tokayev que o dispensou do cargo de chefe do Conselho de Segurança do Cazaquistão. Nazarbayev voou para o estrangeiro “para tratamento médico”. Um tratamento oportuno.

Sempre Tokayev despediu o governo inteiro “cedendo à vontade dos manifestantes” e prometeu eleições livres, mas emitiu uma declaração muito dura:

Como Presidente, tenho o dever de proteger a segurança e a tranquilidade dos nossos cidadãos, de me preocupar com a integridade do Cazaquistão. As medidas que tomei visam o bem-estar do Cazaquistão multiétnico. Mas estas medidas ainda não são suficientes. Chama-se a atenção para o elevado nível de organização dos elementos desestabilizadores. Isto é a prova de um elaborado plano de acção dos conspiradores que estão financeiramente motivados. Precisamente os conspiradores. Por conseguinte, como Chefe de Estado e, a partir de hoje, como Presidente do Conselho de Segurança pretendo agir da forma mais dura possível. Esta é uma questão de segurança dos nossos cidadãos, que me apresentam numerosas exigências para proteger as suas vidas e as vidas das suas famílias. Esta é uma questão de segurança do nosso Estado. Estou certo de que as pessoas me apoiarão.

O Cazaquistão já não tem meios para contrariar os protestos dado que as forças de segurança e os militares começaram a mudar maciçamente para o lado dos manifestantes, entregando voluntariamente armas, equipamento e instalações militares. Sabe-se que houve a transferência de membros russos de PMC para o Cazaquistão ao fim de assumir o controlo de locais e instalações de importância estratégica, incluindo o cosmódromo de Baikonure, a maior base de lançamentos de foguetes do mundo.

A sigla PMC significa “Empresas Militares Privadas”, ou seja, mercenários: Moscovo não quis dar a impressão de intervir oficialmente com as forças armadas regulares na revolta.

Tokaev apelou aos aliados da CSTO para o ajudar a lidar com os “terroristas treinados no estrangeiro” que lutam contra as autoridades do Cazaquistão. A CSTO (Организация Договора о Коллективной Безопасности Organizatsiya Dogovora) é uma aliança defensiva criada em 1992 por seis Países pertencentes à Comunidade de Estados Independentes; os membros são Arménia, Bielorrússia, Quirguistão,  Rússia, Tajiquistão e o mesmo Cazaquistão.

O Presidente Tokaevc considera o que está a acontecer no País como um acto de agressão externa, como afirmou numa declaração transmitida pelo canal de televisão estatal Khabar 24:

Os bandos terroristas são essencialmente internacionais, passaram por um forte treino no estrangeiro e o seu ataque ao Cazaquistão pode e deve ser visto como um acto de agressão

Então: “conspiradores”, “bandos terroristas”, “internacionais”. Uma revolução colorida com matricula ocidental? Talvez, mas pode não ser tão simples assim.

O Cazaquistão até há pouco tempo parecia ser o País mais estável da região e agora está a transformar-se num território de caos: os manifestantes estão a atacar os escritórios das autoridades locais, queimando carros da polícia, e centenas de agentes da polícia estão feridos. As autoridades estão confusas, não estão preparadas para restabelecer a ordem.

É óbvio que a estabilidade no Cazaquistão era só aparente. O descontentamento das pessoas surgiu simultaneamente em muitas regiões. É igualmente óbvio que uma tal agitação não pode ter surgido espontaneamente e ao mesmo tempo em todo o País que, inclusive, é muito amplo. Pelo menos uma parte das elites, dos clãs que estão interessados na redistribuição do poder, poderia estar por detrás destes protestos.

Mas nem é tão fácil acreditar na hipótese estrangeira sugerida pelo Presidente Tokayev. Moscovo e Pequim não estão claramente interessados em desestabilizar o Cazaquistão, bem pelo contrário. E aqueles que teoricamente poderiam estar interessados (EUA e Reino Unido em primeiro lugar) não têm uma tal influência ou tantos agentes capazes de precipitar todo o País no caos numa questão de horas.

Mais interessante observar com atenção os “rebeldes”, entre cujas fileiras podemos encontrar os nacionalistas, sobretudo jovens, com os quais o governo teve muitos contactos e que agora representam a força motriz por detrás dos protestos. A minoria russa representa 25.9% da população, sendo o resto 58% cazaques, um grupo étnico de origem turca. E agora os “rebeldes” pedem ao governo que cancele qualquer aliança com a Federação Russa.

Para Moscovo, os acontecimentos no Cazaquistão representam um grande desafio. É com este País que a Rússia tem a fronteira mais longa, 7.600 km. Caos, desestabilização, perseguição de pessoas por motivos étnicos, fluxo de refugiados: um cenário de pesadelo geopolítico para o Kremlin. Moscovo (e Pequim também) está interessada em que a situação no Cazaquistão se estabilize o mais rapidamente possível, mas a forma como pode ajudar as autoridades do Cazaquistão neste momento não é totalmente clara: os acordos no âmbito da CSTO não preveem assistência no caso de uma crise política interna e não acaso Tokayev insiste no ataque vindo do estrangeiro. Mas até agora as autoridades do Cazaquistão ainda não fizeram pedidos para uma intervenção directa por parte da CSTO.

Uma hipótese? Um ajuste de contas interno, uma tentativa para redistribuir o poder entre os clãs; tudo explorando os movimentos nacionalistas e, claro está, com a ajuda do Ocidente, bem feliz de criar problemas numa zona tão sensível da Ásia.

 

Ipse dixit.

Imagem original: Pavel Mikheyev/Reuters in The Guardian