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Por que é que as cadeias de abastecimento estão a falhar?

Página da Mercedes Portugal:

Devido a falhas de abastecimento, em determinados veículos poderão ocorrer, temporariamente, limitações na disponibilidade do módulo de comunicação (LTE). Isto afeta, em particular, os serviços Mercedes me connect, incluindo o sistema de chamada de emergência (eCall). Os concessionários Mercedes-Benz disponibilizam informações em atualização contínua.

Dito duma forma mais simples: faltam peças. E não é apenas um problema da Mercedes ou europeu. O brasileiro Quatro Rodas perguntava no começo de Novembro: Por que faltam carros, matérias-primas e contêineres durante a pandemia? enquanto UOL Economia dava conta em Outubro que Por falta de peças, venda de carro zero desaba 25% e impactará no PIB. O mesmo cenário pode ser encontrado em todo o mundo, não estando limitado ao sector dos automóveis.

Como explica o advogado e economista James Rickards (colunista regular em publicações como Financial Times, New York Times, The Telegraph, Washington Post) em The Daily Reckoning, nos EUA a situação não está melhor:

Quarenta por cento de toda a carga nos EUA passa pelos portos de Los Angeles e Long Beach. No mar, há milhares de contentores empilhados em navios à espera de entrar. Quantos contentores podem descarregar nos portos num dia normal?

Para não mencionar que estão a chegar novos contentores. Quando é que o atraso das cadeias de abastecimento será eliminado?

A resposta é nunca. Se estão a entrar mais do que podem ser descarregados e se existe um atraso que está a piorar, a resposta, claro, é nunca.

Mas digamos apenas que, sem novas remessas a chegar, seriam necessários 30 dias apenas para descarregar o que já está à espera no mar. Trinta dias, já agora, em Dezembro e com a pressa do Natal.

E descarregar é apenas o início porque depois é preciso colocar a carga num comboio ou camião e levá-la para um centro de distribuição, depois colocá-la noutro camião e levá-la para uma loja.

Mas espere, também há falta de camiões. Esta é uma grande parte do problema das cadeias de abastecimento. Se podes descarregar mercadorias mas não transportá-las devido à falta de camiões, qual é o objectivo?

Exagerado? Um pouco. Aquele “nunca” é sem dúvida demais. Mas o problema existe de verdade e Rickards tenta analisa-lo.

Pode ter ouvido falar de uma escassez de semicondutores, mas não precisamos de um computador, por isso qual é o problema? Bem, não é mesmo assim pois há semicondutores em tudo: frigoríficos, máquinas de lavar loiça, sistemas de entretenimento doméstico, etc.

A questão é que estamos fortemente dependentes das cadeias de abastecimento, que estão actualmente a entrar em colapso. Algo radical terá de acontecer: por exemplo, teremos de deixar de importar bens, e a China poderá forçar-nos a fazê-lo, embora não por estas razões…

A China tem agora a que se chama de política de zero-Covid. Isso significa que não tolerarão nenhum caso e, se for encontrado, tomarão medidas extremas. Mas esse é um país de 1.4 mil milhões de pessoas e é a segunda maior economia do mundo: tem realmente zero casos de Covid? Sinto muito, mas isso não é realista.

A política está condenada ao fracasso. Muitas provas sugerem que os bloqueios não funcionam e as máscaras também não funcionam. O vírus vai para onde quer, segue o seu curso e depois desaparece, não importa o que aconteça.

Mas se tiver decidido que a política é de zero casos Covid? Bem, fechará a sua economia, ou partes dela: cidades, redes de transporte, fábricas, mais ou menos aleatoriamente. Isto irá reduzir a produção económica, claro, mas irá também perturbar as cadeias de abastecimento.

E se a epidemia, em particular, encerrar uma fábrica? Claro, isso é mau para a fábrica, mas se essa fábrica for um fornecedor-chave de peças intermédias para outra fábrica que não esteja fechada? Adivinhe? A outra fábrica ficará inactiva porque não receberá as peças das quais necessita.

O encerramento propaga-se, esse é o elemento chave. O comércio global é um sistema complexo e dinâmico e é muito eficiente em circunstâncias normais, mas o que sabemos sobre sistemas complexos e dinâmicos é que é preciso muito pouco para os perturbar. Um evento muito pequeno algures pode fazer com que todo o sistema falhe.

A propósito, temos mais do que um desses eventos, que não são pequenos. Portanto, não é surpreendente que o sistema esteja a entrar em colapso.

A China tem uma grave escassez de energia neste momento: bem mais de 50% da sua produção total de electricidade provém de centrais eléctricas alimentadas a carvão. Recebe a maior parte desta matéria-prima da Austrália, mas a China iniciou uma guerra comercial com a Austrália porque esta exigiu uma investigação independente sobre a origem do vírus Covid, algo que a China não quer. O resultado foi uma escassez de carvão na China.

Então, o que fez a China? Impôs controlos de preços sobre o carvão, mas todos sabemos que os controlos de preços não funcionam. É o ABC da economia: quando se limita o preço do carvão, obtém-se menos carvão.

[nota: isso num mercado “livre” pois os fornecedores, perante um cliente que limita o preço dum bem, irão preferir mercados com preços não controlados, ndt].

A escassez de carvão não está a desaparecer e a China está a tratar do problema desviando a energia para áreas residenciais e habitações densamente povoadas. Isto é compreensível porque o Partido Comunista Chinês não quer que as pessoas congelem e fiquem no escuro, o que também é uma boa receita para a agitação social. Mas se há falta de energia e esta está a ser desviada por razões políticas, então quem está a ser prejudicado? A resposta é: as fábricas. E assim as siderurgias fecham, por exemplo. É o efeito de propagação.

Uma das grandes indústrias na China é a mineração de lítio. Bem, se deixar de minerar porque não há carvão para a electricidade, onde se arranja o lítio para fazer baterias de iões de lítio e construir um novo Tesla? A resposta é: em lado nenhum. Na verdade, a lista de espera para um Tesla é de cerca de seis meses. Não vou entrar num debate sobre esta empresa, mas se quiseres um, não pense que vais recebe-lo em breve.

[nota: no caso das motas, aqui em Portugal e dependendo da marca, a lista de espera pode chegar a um ano come confio-me um concessionário, ndt]

Quando se soma tudo isto, há aqui um grave problema.

Falei recentemente com o CEO de uma grande empresa e ele disse: “Jim, o que tens de compreender é que levámos 30 anos a construir estas cadeias de abastecimento. Rebentámo-las em três anos, a começar em 2018, e não se consegue voltar a montá-las. Este é o Humpty Dumpty. Serão necessários pelo menos 10 anos para reconstruir as cadeias de abastecimento se não o quisermos fazer com a China e a globalização”.

[nota: Humpty Dumpty é uma expressão que não tem igual em português e que é utilizado para demonstrar a ideia pela qual, após a queda dum sistema, é altamente improvável devolvê-lo ao seu estado anterior, uma vez que a entropia (o caos) do sistema nunca diminui. ndt]

Portanto, não pense que toda esta confusão desaparecerá em breve.

A Alemanha é outro exemplo. Devido à pressão de grupos ambientalistas, a Alemanha livrou-se de todas as suas minas de carvão e centrais nucleares. Adivinhe? Os alemães estarão a congelar no escuro este Inverno porque estão completamente dependentes do gás natural, que a propósito é um combustível fóssil. Não podem depender da energia eólica e solar porque são intermitentes e não conseguem satisfazer a procura.

Vladimir Putin controla a torneira do gasoduto e diz: “Querem gás natural? Preparem-se para pagar muito dinheiro, ou nada”.

Isto irá prejudicar a produção industrial alemã, que já está em queda. Mais uma vez, isto traduz-se em mais perturbações nas cadeias de abastecimento.

Consideramos agora o papel das exigências de vacinação nas rupturas da cadeia de abastecimento…

A Administração Biden está a insistir muito nisto e há também muitas obrigações estatais e municipais, especialmente nos Estados Azuis. Quanto mais azulado for o Estado, em geral, mais rigorosas são as obrigações.

[nota: nos EUA, os Blue States – Estados Azuis – são aqueles Democratas, enquanto os Red States – os Estados Vermelhos – são os Republicanos, ndt].

Estas vacinas experimentais mRNA não te impedem de ficar infectado ou de infectar os outros, e a sua eficácia desvanece-se com o tempo, pelo que as obrigações têm uma fraca base científica. Mas vamos pôr todas estas considerações de lado e concentramos-nos nos seus efeitos práticos.

Damos uma vista de olhos à indústria aeronáutica. Há milhares, talvez milhões de componentes que são utilizados na produção de uma aeronave. Estes componentes são especializados e fabricados em diferentes locais, depois enviados e montados. A indústria da aviónica (electrónica de aviação) está muito concentrada na vizinhança de Wichita, no Kansas, por razões históricas e outras. É como o Vale do Silício da aviónica.

Mas a indústria tem uma taxa de participação muito baixa no que diz respeito à vacinação obrigatória, que é de cerca de 50%. A nível nacional cerca de 80% receberam pelo menos uma dose, mas nesta indústria específica, talvez por ser mais orientada para os homens, talvez por ser mais conservadora, a taxa é muito mais baixa. A razão em si não importa realmente.

Mas se não foram vacinados até agora, provavelmente nunca o serão. Não é que eles não saibam que estas coisas estão disponíveis gratuitamente na CVS local [nota: cadeia de farmácias, ndt]. Uma vez que não obedecem aos ditames, vão desistir, ser despedidos, reformar-se antecipadamente, etc. Isto significa uma escassez de aviónica crítica.

Percentagem de trabalhadores nos EUA que abandonaram voluntariamente o emprego. Fonte: The Washington Post

O que acontece quando as companhias aéreas não podem actualizar a sua aviónica? As aeronaves ou saem de serviço, potencialmente, ou permanecerão em serviço mas ficarão parados. Estamos a falar de seis meses para alguns dos mais sofisticados sistemas de navegação e comunicação. Os atrasos já estão a acumular-se nesta área. Como é que isto vai ajudar a economia se as aeronaves estiverem paradas devido à falta de componentes?

E veja-se o impacto das obrigações nos pilotos: muitos deles hesitam em ser vacinados porque os estudos indicam que os pilotos são mais susceptíveis a desenvolver coágulos de sangue do que a população em geral. Bem, adivinhe qual é o efeito secundário conhecido destas vacinas? Adivinhou-o: coágulos de sangue. Não apenas os coágulos podem matá-los, como também podem terminar as suas carreiras porque os pilotos têm de se submeter regularmente a rigorosos testes de saúde.

Recentemente a Southwest Airlines teve de cancelar milhares de voos, depois foi a vez da American cancelar milhares de voos. Gostam de afirmar que a culpa é do tempo, mas como é que o tempo só afecta uma companhia aérea de cada vez? Não foi o tempo, foram os pilotos (e os controladores de tráfego aéreo) que realizaram greves informais devido à obrigação vacinal.

Oh, e as obrigações estendem-se também às principais transportadoras aéreas como a FedEx e a UPS que transportam mercadorias em todo o mundo. Outras perturbações nas cadeias de abastecimento se estes aviões não voarem.

As rupturas nas cadeias de abastecimento são um grande problema: é omnipresente e não desaparecerá tão cedo porque exigirá o desmantelamento de décadas de globalização. Terás de se habituar a isso. Quando digo isto, não falo de azar, mas que este problema vai continuar.


Moral da história: as actuais cadeias de abastecimento são demasiado complexas para que qualquer pessoa possa compreender e gerir tudo com a esperança de nunca haver falhas. As empresas utilizam fornecedores dos quais não conhecem ao pormenor a logística que lhes fica por trás: e nem poderiam pois o nível de complexidade é assinalável. Pode parecer absurdo, mas a cadeia de abastecimento desenvolve-se como num bolo, camada por cima de camada: se uma das camadas inferiores falhar, é todo o bolo que entra em crise. As ligações são tão intrincadas que uma única pessoa ou grupo de pessoas não pode, de forma alguma, acompanhar a sua evolução ou geri-las completamente.

Juntamos a política do just in time, segundo a qual a maioria dos grandes produtores e revendedores tenta limitar ao máximo o armazenamento de peças: de facto, estas representam um capital imobilizado, muito mais conveniente é recebe-las só quando forem precisas. Mas isso pressupõe uma cadeia de abastecimento isenta de qualquer problema, caso contrário o sistema entre em crise.

Como disse o filósofo e economista austríaco Friedrich Hayek, a produção só se mantém estável porque as empresas fazem centenas de pequenos e grandes ajustes todos os dias. As empresas “ajustam” porque vêem problemas iminentes e potenciais soluções: o incentivo do lucro obriga a actuar com pressa e precisão. Mas a Globalização acrescentou à produção camadas cujos ajustes ficam fora do alcance das empresas.

Pegamos no caso da Mercedes citada no começo: a empresa alemã é alimentada, entre outros, por fornecedores de electrónica chineses. Agora, se a China tiver problemas e interromper a produção, a Mercedes não tem outras soluções prontas porque a Globalização, e a consequente deslocação de empresas para mercados onde a mão de obra é mais barata, reduziu ou até eliminou os produtores europeus e norte-americanos. Então a produção ou pára ou acumula enormes atrasos.

Soluções? Haveria. Vamos pôr de lado itens como: aprender a consumir menos, eliminando a obsolescência programada, aumentado a reciclagem e a reutilização… Vamos falar aqui apenas da produção e do consumo local.

Se eu fabrico boas bolachas, não é preciso exporta-las para o mundo todo: é suficiente partilhar a receita para que cada um, em sua casa, possa replica-las. Se as bolachas forem produzidas todas numa mão cheia de Países porque aí os trabalhadores são pagos muito menos, então o problema não está nas bolachas ou na receita mas no sistema. Porque este é um sistema claramente baseado na exploração (de alguns, no desemprego dos outros).

O que acontece se houver um Inverno rijo e a colheita de trigo não for boa nos poucos Países produtores? Acontece que não haverá bolachas para ninguém. Mas pode fazer sentido um sistema assim?

É esta a nossa actual situação? Não, é um pouco pior. Porque na verdade não houve nenhum Inverno rijo. Então houve o quê?

Houve o efeito disruptivo duma “pandemia” da qual nem vale a pena falar agora.

Houve a questão das vacinas e a criação dum fosso no interior da sociedade (vacinados vs. não vacinados).

Houve a descoberta da alma “verde”, que obriga a abandonar o consumo de combustíveis fósseis e nuclear (com o resultado de fazer disparar o consumo de carvão na primeira economia do planeta, a China).

Houve tensões políticas entre o Ocidente e a China.

Tudo junto, tudo na mesma altura? Sim, exacto. Quando se diz “o acaso”…

 

Ipse dixit.