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Digital divide

O nome é digital divide e significa “barreira digital”. É uma linha divisória ideal entre as pessoas que acedem regularmente à informação na internet (a informação digital) e as que não o fazem.

Uma rápida vista de olho nas páginas de Wikipedia permite perceber como aí o fenómeno seja apresentado e tratado dum ponto de vista mais técnico e económico: na versão portuguesa, por exemplo, fala-se:

da criação de pontos de acesso à internet em comunidades carentes (favelas, cortiços, ocupações, assentamentos) e capacitação (treinamento) de usuários de ferramentas digitais (computadores, DVDs, vídeo digital, som digital, telefonia móvel).

As comunidades carentes, os mais pobres e pessoas com uma posição econômica desprivilegiada são excluídas digitalmente, pois não tem acesso à tecnologia.

Tudo correcto, mas não é suficiente:

É importante ressaltar que a literatura tem apontado que as desigualdades relativas às formas de acesso à comunicação digital são de diversas naturezas. Em outras palavras, é preciso compreender tal fenômeno como algo que vai além da mera falta de acesso a computadores.

Exacto. O problema não é apenas poder ou não aceder à internet. O que está em causa não é apenas poder apresentar o nosso curriculum online, descarregar um novo programa, facilitar as transações comerciais. A “brecha digital” (outro sinónimo de digital divide) não existe apenas entre “quem tem internet” e quem “não tem internet”: existe também entre as camadas de cidadãos que têm acesso ao meio informático.

A informação ensina

Desde o início da internet, esta diferença começou a ser notada pois os “não utilizadores” continuavam a receber informação de um único ponto de vista, o institucional; isso enquanto os utilizadores da internet descobriam que muitas questões importantes também podiam ser vistas de pontos de vista diversos, com uma completa mudança de sentido.

Aqueles que veem a televisão ou leem a imprensa podem ouvir uma única voz, uma espécie de coro que relata os acontecimentos sempre da mesma forma. Aqueles que entram online têm acesso a uma multidão de versões, teorias, “provas” e “testemunhos”.

A diferença? Enorme: os segundos podem tirar as suas próprias conclusões, os primeiros raramente conseguem afastar-se do caminho indicado. É uma questão de instrumentos.

Na realidade, a multiplicidade de pontos de vista é apenas a primeira das vantagens oferecidas pela revolução da internet: a verdadeira diferença começa a fazer-se sentir quando o utilizador começa a explorar esta multiplicidade de pontos de vista para construir novos objectos de informação, que não existiam antes, nos quais pode basear os próximos passos da sua pesquisa. Vamos fazer um exemplo.

Ao aprofundar a guerra do Kosovo na internet não é difícil compreender que a “intervenção humanitária” foi uma operação planeada e orquestrada pelos Países ocidentais para se livrarem, de uma vez por todas, do obstáculo da Sérvia. Agora um salto temporal, até a guerra na Líbia: simples perceber que os mesmos Países ocidentais utilizaram uma táctica muito semelhante para se livrarem de outro obstáculo, o Coronel Kaddafi.

Então, no futuro, ouvir o termo “intervenção humanitária” fará tocar uma campainha de alarme e será mais fácil observar novos acontecimentos e entender o que estar a passar-se.

Por outras palavras, a análise separada das diferentes situações históricas leva não só a compreender melhor cada uma delas, mas também a assimilar um novo conceito (neste caso a de operações de falsa bandeira ou false flag) que antes não era reconhecido.

Mas enquanto isso, o telespectador ou o leitor do diário permaneceu preso no Nível 1: do acontecimento continua a ver apenas a fachada, aquela mostrada pelos media institucionais. Kosovo e Líbia continuam a ser considerados como acontecimentos distintos, tais como os meios de comunicação social institucionais mostram. E da próxima operação false flag provavelmente só será vista uma outra fachada, desligada dos acontecimentos anteriores. Desta forma, torna-se extremamente difícil compreender o verdadeiro significado de cada evento, como nem sequer haverá a capacidade de os ligar uns aos outros.

Por outro lado, aqueles que aprendem a aproveitar ao máximo internet procedem de forma cada vez mais ágil e rápida, e desenvolvem os seus conhecimentos não só expandindo-a horizontalmente, mas também acrescentando novas camadas verticalmente. E quanto mais alto sobem, paradoxalmente, mais fácil se torna adquirir novos conhecimentos e chegar a novas conclusões.

Guthenberg, fake news…

Quanto dito até aqui levanta um sem número de problemas. É fácil entender o digital divide que existe entre um morador duma aldeia da Nigéria e um de New York. Mais “escondido” mas igualmente grave é o digital divide de quem mora numa metrópole mas utiliza internet apenas para fazer compras online, partilhar fotografias de gatinhos sorridentes e pôr likes no Facebook. Neste aspecto, não há muita diferença entre o digital divide do cidadão da metrópole e aquele do camponês da Nigéria pois ambos não utilizam o meio informático para melhorar o conhecimento e a sua condição: o cidadão porque não sabe fazê-lo, o camponês porque não pode. Mas o resultado não muda.

Outro grave problema é o tipo de informação que é possível encontrar na internet. Não é suficiente desejar saber mais, é preciso saber onde procurar, porque na internet as fake news (institucionais também) são coisa que não falta. Não existe um curso para aprender a distinguir o trigo do joio, cada um deve aprender a fazer isso com base num processo que junta verificação, lógica, experiência e até confiança. O perigo neste caso é abandonar o pensamento único da informação institucional em prol de teorias aparentemente válidas mas que podem não ir além de meras hipóteses; ou até de encontrar autênticos delírios que acabam por rematar os leitores mais conservadores para a “segurança” das instituições.

De facto, internet hoje não é apenas uma mina de informações, é sobretudo uma selva de notícias e hipóteses que se perseguem sem parar e na qual pode ser difícil até encontrar um sentido. Numa palavra: confusão. E no meio da confusão, será sempre o institucional a ter a última palavra.

Tudo isso pode parecer interessante mas não é: é extremamente grave. Internet está cada vez mais presente nas nossas vidas e no futuro irá ganhar mais espaço ainda. O seu potencial é excepcional: tem a capacidade de espalhar o conhecimento, todo ele, para os quatro cantos do planeta em tempo real e com custos mínimos. Nunca houve um instrumento assim, até ultrapassa a Bíblia de Guthenberg. Mas há amplas áreas do planeta onde esta informação não chega por falta de meios; em outras áreas, internet é utilizada apenas como instrumento de persuasão e entretenimento, deixando à boa vontade do utilizador a descoberta do seu imenso potencial.

Digital divide em casa

Nos últimos anos o digital divide começou a aparecer no meio televisivo também ao juntar internet e televisão. Induzido? Fruto apenas do “livre “mercado? Pouco interessa: os resultados são os mesmos.

Pegamos numa das ofertas digitais mais difundidas em Portugal, neste caso o pacote do fornecedor MEO (que, por acaso, é o meu). Tudo viaja através da fibra óptica, tudo é digital: internet, telefone e até a televisão. Acerca desta última: uma maravilha, um total de 200 canais (quem consegue vê-los todos), a maior parte do quais em alta definição. O que desejar mais da vida? É o nirvana, nesta altura podemos até morrer em paz.

Os canais de base são os generalistas, de entretenimento: faz sentido porque, é explicado, as televisões comerciais sobrevivem com a publicidade e esta aparece nos programas mais seguidos. Assim temos filmes, séries, desporto, gastronomia, música, banda desenhada, notícias, rádio… e há também a “cultura” com os documentários do National Geographic, History Channel, Discovery, Odisseia: é a “cultura” formatada, politicamente muito correcta, que nunca abandona o pensamento único.

Mas se tudo é digital, significa que é possível pedir mais canais, aceder a mais ofertas de internet, justo? E de facto há mais canais, os premium, aqueles que necessitam dum pagamento extra. O que oferecem este canais premium? Mais do mesmo: desporto, música e filmes. E pornografia, claro. Os únicos canais minimamente culturais são Arte, rigorosamente em francês, e RAI Storia em italiano (e que não recomendo).

Ehi, mas esta é uma smart tv, temos toda a potência de internet ao quadrado! De facto: Netflix (formidável meio de propaganda), Rakuten TV (pálida copia de Netflix), Prime Video (isso é: Amazon), Google Play (a Netflix dos pobres), HBO Portugal (a Netflix dos super-pobres), Retro (programas velhos), Youtube e Vimeo, mais a horripilante Tv Plus da Samsung (moda, gastronomia, música, banda desenhada…).

Resumindo: não há a mínima tentativa de “elevar o povo”, nem ao pagar uma quantia extra. Bem pelo contrário: apesar de hoje termos o potencial da internet até numa simples televisão de casa, a oferta continua focada no entretenimento, na distracção e a “cultura”, quando presente, é a directa emanação do pensamento único institucionalizado, com o resultado que o telespectador continua agarrado ao Nível 1, sem possibilidade de progredir. É o digital divide induzido.

Sim, verdade: com internet na televisão seria possível navegar e procurar mais, frequentar o mundo da informação alternativa, mas então voltamos ao discurso feito antes no caso do clássico computador: quantos fazem isso? Quantos sabem fazer isso? Como entender algo num oceano de notícias confusas e contraditórias? Quantos, vice-versa, ficam com os canais “institucionais” que não dão trabalho ao cerebrinho? É exactamente o mesmo problema que encontramos na internet num computador ou num smartphone: o digital divide continua, desta vez com o comando na mão.

O que inicialmente parecia ser uma simples barreira que separava dois grupos de pessoas, está agora a tornar-se um verdadeiro abismo. Não é preciso aumentar as velocidades da internet até o 5G. É preciso aprender a utilizar o que já temos antes do próximo passo. São necessários projectos de educação digital que permitam a todos os cidadãos, independentemente do seu nível de educação, adquirir os conhecimentos necessários para poderem navegar na internet de forma independente, segura e informada. Este é progresso.

 

Ipse dixit.