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O golpe no Sudão

O Sudão era uma das últimas tentativas de democratização no mundo árabe, mas no passado 25 de Outubro os militares puseram fim à experiência com um golpe contra o governo de transição, formado após a revolução de 2019, que tinha derrubado a ditadura de Omar al Bashir. O golpe militar foi recebido com uma inicial resistência por parte da população e algumas pessoas perderam a vidas durante os confrontos.

A transição

A transição era já por si extremamente frágil. O objectivo final era a organização de novas eleições, mas nos últimos meses poucos observadores teriam apostado num final positivo: todo o processo estava baseado num delicado compromisso entre a sociedade civil e os generais do antigo regime. O Primeiro Ministro do governo de transição, Abdallah Hamdok, falou de uma “aliança paradoxal” entre civis e militares, entre revolucionários e antigos carrascos.

O paradoxo deixou de existir a 25 de Outubro: Abdallah Hamdok foi detido e levado para um local desconhecido sob a acusação de se recusar a cooperar. Outros líderes civis foram presos. O acesso à Internet foi bloqueado, as estações de rádio e televisão começaram a transmitir apenas programas de música. Homens armados ao serviço dos golpistas vasculharam a capital.

O líder da junta golpista que anunciou unilateralmente a dissolução do governo de transição é o General Abdel Fattah al Burhan, representante da frente militar na aliança com os civis e antigo chefe do exército. O General ficou conhecido após a queda do ditador Al Bashir em Abril de 2019, quando lhe foram atribuídas funções equivalentes às do Chefe de Estado.

Os militares estão agora sozinhos no comando e nesta altura estão em posição de salvar o importante sector industrial ligado ao exército do qual os civis os queriam privar. Esta dimensão económica tem um peso considerável.

O exército também procura impunidade para crimes passados. O número dois do aparelho militar, Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemetti, comandou uma força paramilitar acusada de massacres, inclusive na capital do País, Khartoum, durante a revolução de 2019. No final da transição, teria provavelmente enfrentado um processo para responder dos crimes.

Embora estivesse no ar, o golpe apanhou o resto do mundo de surpresa. Um representante dos EUA esteve no País na véspera do golpe para tentar acalmar as coisas e um Comissário Europeu estava a voar para Khartoum quando o golpe teve lugar.

Cronologia

Eis a cronologia dos principais eventos desde os primeiros protestos de 2018:

O fracasso da Primavera Árabe

O retrocesso na transição no Sudão deve ser visto como o completo fracasso da onda de movimentos pró-democracia no mundo árabe: um ciclo iniciado com a Primavera Árabe, em 2011, na sequência da revolução tunisina, e seguido após 2018 em Países como Líbano, Argélia e Sudão.

Um ciclo que terminou este Verão na Tunísia com o golpe de Estado do Presidente Kais Saied. E que hoje põe o ponto final também no Sudão, último reduto da tentativa de democratizar o mundo árabe.

A lição e retirar é simples: a democracia não é um produto que possa ser enfiado num contentor e exportado para o mundo fora. Há diferenças entre Amazon e política. Mais: ao analisar as causas do primeiro golpe, aquele de 1989 que trouxe ao poder Al Bashir, é simples observar o papel ocidental.

Armas, FMI, pobreza…

Até ao início da década de 1970, a produção agrícola do Sudão era maioritariamente dedicada ao consumo interno. Em 1972, o governo sudanês tornou-se mais pró-ocidental e fez planos para exportar alimentos e culturas. Contudo, os preços destas commodities diminuíram ao longo da década de 1970, causando problemas económicos para o Sudão. Ao mesmo tempo, os custos da dívida (em boa parte gerada pela mecanização da agricultura) aumentaram.

Em 1978, o FMI negociou um Programa de Ajustamento Estrutural com o governo. Isto promoveu ainda mais o sector da agricultura mecanizada, provocando grandes dificuldades aos pastores do Sudão. Já em 1976, o movimento islâmico tradicional do Ansar tinha preparado uma tentativa de golpe de Estado, sangrenta mas mal sucedida.

Nos anos sucessivos o Sudão tinha conseguido manter um precário equilíbrio político que, todavia, pouco ou nada conseguia na vertente económica. A proximidade entre governo e Estados Unidos aumentou sob a administração de Ronald Reagan e a ajuda americana aumentou de 5 milhões de Dólares em 1979 para 200 milhões em 1983, para atingir os 254 milhões em 1985. A maior parte deste dinheiro era destinado a programas militares. O Sudão tornou-se assim o segundo maior beneficiário da ajuda dos EUA na África. Como contrapartida, quatro bases aéreas para alojar unidades da Rapid Deployment Force e uma poderosa estação de escuta para a CIA perto de Port Sudan.

Desde 1983, mais de 2 milhões de mortos por fome e mais de 4 milhões de refugiados. Em Março de 1985, o anúncio dum novo aumento dos preços dos bens de primeira necessidade, a pedido do FMI com quem o regime estava a negociar, desencadeou as primeiras manifestações. Foi aí que nasceu o golpe que trouxe Omar al Bashir no poder.

Omar al Bashir manteve um perfil ambíguo ao longo do seu mandato: alvo de sanções por parte dos EUA por ter apoiado a invasão iraquiana no Kuwait, tentou mais tarde uma reconciliação oferecendo a extradição de Osama bin-Laden. Em qualquer caso, é evidente como Washington considerasse al Bashir como um elemento não de confiança. O golpe para a destituição dele não foi uma surpresa.

Assim como não pode ser vista com espanto a deposição destes dias: o até ontem Primeiro Ministro, Abdallah Hamdok, não passava dum enviado ocidental. Doutorado na Universidade inglesa de Manchester, trabalhou na multinacionais de serviços Deloitte & Touche, depois no Banco Africano de Desenvolvimento, no Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral e na Comissão Económica das Nações Unidas. Uma vez no poder no Sudão, casou as teoria do IPCC (o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) e revogou todas as leis que restringiam a liberdade de vestuário, movimento, associação, trabalho e estudo das mulheres. Isso num País onde 97% da população é islâmica, a grande maioria da qual sunita e próxima da corrente wahabista.

E isso sem esquecer que no Sudão, como em outras realidades do mundo árabe, ainda é muito importante a componente tanto tribal da população quanto a étnica.

Democracia a qualquer custo

O Ocidente tem pressa: quer democratizar o planeta. Ou pelo menos boa parte dele. Sabemos qual a razão. Mas, mais uma vez, falha. Por qual razão? Porque a democracia não é intrinsecamente “boa” ou “má”: no mundo islâmico é simplesmente inapropriada.

Aos meus olhos de ocidental, por exemplo, um regime democrático é preferível a uma tirania; e a liberdade das mulheres é algo normal e positivo. Mas estas ideias não fazem parte da história e da cultura islâmica. Juntamos o facto da democracia ser um produto ocidental: implementa-la em Países que sempre foram (e continuam a ser) manipulados e explorados por parte do Ocidente significa forçar a adopção do enésimo modelo ocidental contra os tradicionais. No Sudão, mesmo ao não considerar a vertente religiosa, adoptar a democracia significa aceitar o sistema político daqueles que ao longo de décadas forneceram armas enquanto a população precisava de comida; os mesmos que sugavam as poucas receitas para cobrir os juros dos empréstimos internacionais.

Portanto, a pergunta não deve ser “como é que a democracia não vinga no mundo árabe” mas “como é que alguém pode seriamente que a democracia vingue no mundo árabe”.

Tudo isso não significa endossar o golpe dos militares: será preciso esperar para poder ter uma ideia da direcção tomada (mas já o facto de ter fechado internet “durante muito tempo porque representava uma ameaça à segurança nacional” não promete nada bom). Significa que, mais uma vez, a intervenção ocidental resultou numa situação de conflito e caos.

 

Ipse dixit.

Imagem: Paul Kagame Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 2.0 Generic (CC BY-NC-ND 2.0)