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Séneca, Attali e a Covid

Lucius Anneus Seneca (4 a.C. – 64 d.C.) foi o autor do texto De Vita Beata, frequentemente traduzido para português como “A Vida Feliz” e que constitui o sétimo livro dos seus Diálogos, escrito por volta de 58 d.C.

Gallione [“Gálio” em Português, ndt], meu irmão, todos nós aspiramos à felicidade, mas, quanto a conhecer o caminho, apalpamos como na escuridão. Pois é tão difícil alcançá-la que quanto mais nos esforçamos, mais longe estamos dela se enveredarmos por um caminho errado; e se este nos levar mesmo numa direcção contrária, a velocidade com que avançamos torna o nosso objectivo cada vez mais distante

Assim, temos primeiro de ter uma ideia clara do que queremos, depois procuraremos o caminho para lá chegar, e ao longo da própria viagem, se for a correcta, teremos de medir dia após dia o caminho que deixamos para trás e o quanto mais próximo está o objectivo a que o nosso impulso natural nos leva.

É certo que, enquanto vaguearmos ao acaso, não seguindo um guia mas ouvindo o clamor de vozes discordantes que nos empurram em diferentes direcções, a nossa vida, já curta em si mesma, será consumida neste vaguear, mesmo que nos esforcemos dia e noite, animados pelas melhores intenções.(…)

Não há portanto nada pior do que seguir, como fazem as ovelhas, o rebanho daqueles que vão antes de nós, porque não nos levam para onde devemos chegar, mas para onde todos vão. Esta é a primeira coisa a ser evitada.

E nada nos traz os piores males do que seguir a conversa das pessoas, convencidos de que as coisas aceites por consenso geral sejam as melhores e que, uma vez que tivermos muitos exemplos, é melhor viver não de acordo com a razão mas por imitação: daí toda esta massa de homens que caem uns sobre os outros.

O que acontece numa grande multidão de pessoas, quando as pessoas se esmagam umas às outras (pois ninguém cai sem arrastar outra pessoa com ele, e as primeiras fazem cair os que ficam para trás), acontece na vida: ninguém erra por si só, mas é a causa e origem dos erros dos outros; pois é um erro apegar-se àqueles que nos precedem, e como todos preferem acreditar em vez de julgar, nunca se faz juízo sobre a vida, mas apenas acreditamos: assim, o erro, passado de mão em mão, ultrapassa-nos e faz-nos cair.

Os exemplos de outros são os que nos arruínam; nós, por outro lado, estaremos bem assim logo que afastados da multidão.

Agora, na verdade, o povo, contra a razão, faz-se a si próprio o defensor do seu próprio mal. E é como num comício, quando o favor inconstante do povo muda, e as pessoas espantadas com os eleitos são mesmo aqueles que os elegeram: aprovamos e desaprovamos as mesmas coisas ao mesmo tempo; este é o resultado de cada julgamento que é feito de acordo com o que a maioria diz.

Passaram dois mil anos e eis o pensamento dum outro filósofo, Jaques Attali, conselheiro do Presidente francês Mitterand, resumido na obra “O Futuro da Vida” de 1981:

No futuro será uma questão de encontrar uma forma de reduzir a população. Começaremos com o velho, porque assim que ele tiver mais de 60-65 anos de idade, vive mais tempo do que produz e custa muito caro à sociedade. Depois os fracos e depois os inúteis que não trazem nada à sociedade porque haverá sempre mais deles, e mais importante ainda, finalmente os estúpidos.

A eutanásia dirigida a estes grupos; a eutanásia terá de ser um instrumento essencial das nossas futuras sociedades, em todos os casos. É claro que não podemos executar pessoas ou montar campos. Livrar-nos-emos deles, fazendo-os pensar que é para o seu próprio bem. Uma população demasiado grande, e na sua maioria inútil, é algo demasiado dispendioso do ponto de vista económico. Socialmente, é também muito melhor para a máquina humana parar abruptamente do que se deteriorar gradualmente. Não conseguiremos passar os testes de inteligência de milhões e milhões de pessoas, pode imaginar!

Encontraremos algo ou causá-lo-emos, uma pandemia que afecta certas pessoas, uma verdadeira crise económica ou não, um vírus que afecta o velho ou o grande, não importa, os fracos sucumbirão, os medrosos e os estúpidos acreditarão e pedirão para serem curados. Teremos tido o cuidado de planear o tratamento, um tratamento que será a solução.

A selecção dos idiotas será assim feita por conta própria: eles irão para o abate por si próprios.

No ano 65 d.C., Séneca foi acusado de ter participado na conspiração de Pisone (“Pisão” em Português), na qual teria sido planeado o assassinato de Nero. Sem qualquer julgamento, foi obrigado a cometer o suicídio e, na presença dos seus amigos, cortou os pulsos com aquele ânimo sereno que defendia na sua filosofia.

Também no caso de Jaques Attali não houve processo: nem é preciso pois confessa tudo no seu escrito. Mas os tempos mudaram e hoje ninguém quer obriga-lo a cometer suicídio. Uma pena.

 

Ipse dixit.