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As leis injustas

Diziam os Romanos: Non omne quod licet honestum est, “Nem tudo o que é lícito é honesto”.

E do mesmo modo, nem tudo o que a lei proíbe é imoral.

O conceito segundo o qual “existem leis, estas devem ser respeitadas”, conceito que é repetido frequentemente em alturas alturas de restrições como apresente, contém uma falácia considerável. A ideia é que “se for lei, então é justo”: o que está errado.

As leis devem ser respeitadas se não se quisermos incorrer em sanções, mas a sua mera existência não garante automaticamente a sua moralidade intrínseca. A história humana é marcada por uma longa série de governos e vários poderes que impuseram regras injustas e abjectas, e não é necessário recuar séculos para lembrar alguns exemplos; e nem sequer é preciso falar de regimes totalitários.

Nos Estados Unidos, o País considerado por muitos como o símbolo da democracia por excelência (sic!), por exemplo, até 1967 os casamentos mistos entre brancos e negros ainda eram proibidos em certos Estados. E historicamente falando, 1967 é ontem. Mesmo naquela altura, quando a segregação racial estava em vigor, havia quem dissesse que era justo que os negros ficassem fora de determinados lugares: havia leis, tinham que ser respeitadas. A lei era injusta, mas era lei e era respeitada.

Nós, democratas ocidentais do final do milénio, fomos finalmente educados com o pensamento de que a questão das “leis injustas” pertence ao passado: a ideia que nos foi transmitida é que o progresso contínuo e imparável trouxe finalmente uma era em que a liberdade e a democracia triunfam, em que certas aberrações pertencem apenas ao passado, e que finalmente atingimos uma época em que as leis representam o ápice da justiça e da moralidade.

Tendemos a esquecer que as leis são feitas pelos homens. E não é preciso pensar em grandes conspirações ou em corrupção: é suficiente pensar que os homens falham. Um homem, 10 homens, um Parlamento cheio de homens: todos eles podem errar e erram. Acham que as leis raciais foram aprovadas por uma ou duas pessoas? Acham que foram precisas uma ou duas pessoas para revoga-las?

As pessoas mais nobres, e falamos de nobreza de alma não de sangue, são as primeiras que não têm qualquer interesse em dedicar-se a dar ordens aos seus semelhantes. O exercício do poder atrai inevitavelmente os piores expoentes da humanidade, e não pode ser de outra forma pois são eles que anseiam pelo controlo sobre outros homens.

E, tanto quanto sabemos, esta situação dura há pelo menos 5.000 anos. A Revolução Francesa, ou ’68 foram apenas etapas, assim como as tragédias do Comunismo e do Fascismo, sendo estes últimos uma representação perfeita dos danos que a paródia distorcida dos mitos pode causar.

O problema continua a ser a imposição do poder do homem sobre o homem. Pensar que existam seres “nobres” que podem governar em nome do Bem é pelo menos ingénuo. As pessoas governam para satisfazer o narcisismo, a sede de poder, a continua procura do dinheiro. Não pode haver nobreza na imposição do poder do homem sobre um outro homem. Não pode haver nobreza na imposição do poder da maioria sobre a minoria.

Isso levanta a questão da Democracia, assunto extremamente complexo sobretudo para quem, como nós, foi treinado a pensar que a Democracia representa o máximo desenvolvimento da sociedade humana. Não, não é, e num futuro distante ficarão horrorizados ao olhar para a nossa época “democrática” assim como nós hoje vemos com revolta os totalitarismos do passado.

Um sistema geneticamente não nobre bem pode gerar leis não nobres e injustas. E, mesmo assim, são leis aprovadas, por vezes entre os aplausos da multidão, até num momento histórico em que essas mesmas leis limitam as liberdades básicas dos seres humanos: a liberdade de circulação, de trabalho, de agregação, de instrução, até de expressão.

Diário Expresso de hoje:

Apesar da diminuição do número de infeções, de mortes e até de internamentos, quase metade dos portugueses (46%) entendem que o confinamento deve durar até ao período da Páscoa.[…] A principal falha, apontada por 47% dos inquiridos, foi a “demora na implementação de medidas restritivas”.

As sondagens valem o que valem, mas não é difícil encontrar nas ruas esta linha de pensamento onde a síntese é: “Batam-me, batam-me mas é mais forte”. E nunca antes o velho mantra das “leis que existem e devem ser respeitadas” ressoou tão alto.

 

Ipse dixit.

Dum pensamento de Tra Cielo e Terra