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Media, propaganda e ovelhas

Aviso desde já: este é um desabafo. Além duma curta notícia, o Leitor não irá encontrar nada de novo por aqui. Só uma pergunta no fundo.

Cada vez mais complicado descodificar a avalanche de notícias que diariamente atinge internet. Cada vez mais complicado distinguir a verdade da mentira: o império online é feito de tudo e do contrário de tudo. A propaganda não tem limites, engole os factos e regurgita interpretações vendidas como verdade.

Um exemplo.

Aurora, sito italiano declaradamente de Esquerda, apresenta com orgulho a última novidade da China, directamente das páginas do Global Times:

China mostra tolerância zero para fake news ao proibir a BBC World News

A China enviou ao mundo um sinal claro de tolerância zero para as fake news na Sexta-feira, impedindo que a BBC World News transmita na China. A decisão não é uma surpresa. Segundo a National Radio and Television Administration, a BBC World News está proibida porque algumas reportagens sobre a China violaram os princípios da veracidade e imparcialidade do jornalismo.

Desde há algum tempo, a BBC não tem sido um canal de notícias que apoie reportagens objectivas, mas tem sido degradada a um moinho de rumores infundados. É justo dizer que é a vanguarda ocidental na elaboração e divulgação de rumores e mentiras sobre a China. A BBC vê o que diz respeito à China com dois pesos e duas medidas. E agora paga.[…]

A BBC lidera uma cruzada na opinião pública contra a China. É um instrumento de propaganda das forças secessionistas e separatistas da China, ameaçando a segurança nacional chinesa com notícias falsas. Para servir os secessionistas, segue um padrão em relatórios seleccionados degradando-se até tornar-se um megafone de rumores. Dito isto, a China tem todos os motivos para tomar medidas contra ela. A punição da emissora britânica é razoável. Se não respondermos, isso significa que toleraremos qualquer pessoa que nos menospreze. A China precisa de dar uma lição à BBC. É de salientar que a proibição da BBC World News não tem nada a ver com a liberdade de imprensa. Será que a chamada liberdade de imprensa defendida pelo Ocidente significa que os meios de comunicação social são livres de produzir mentiras e de lançar acções de repressão politicamente motivadas contra um alvo, ao mesmo tempo que são imunes a qualquer punição? Se assim for, a China não tem necessidade de tal liberdade de imprensa. Os meios de comunicação social ocidentais não têm a moralidade para criticar a China sobre a liberdade de imprensa.

Maravilhoso: Pequim que envergonha os meios da propaganda ocidental, fechando duma vez por todas um dos líderes desta cruzada anti-chinesa. E não pode haver dúvidas quanto ao facto, pois a fonte é o Global Times, o tablóide que é uma emanação do maior diário chinês, aquele Rénmín Rìbào (Diário do Povo), publicado pelo Partido Comunista Chinês. Data do artigo: 12 de Fevereiro.

Um salto no tempo e no espaço até o outro lado do mundo. Bloomberg:

O Reino Unido acaba com a licença da televisão chinesa, alimentando tensões com Pequim

O regulador dos media do Reino Unido retirou do ar o canal de televisão estatal chinês CGTN, uma decisão que está destinada a aprofundar as tensões com Pequim. […]

A China Global Television Network (CGTN) tinha pedido que a sua licença fosse transferida para uma entidade chamada China Global Television Network Corporation, mas faltava “informação crucial” no pedido, e o novo proprietário foi impedido de possuir uma licença uma vez que teria ficado sob o controle dum organismo dirigido em última instância pelo Partido Comunista Chinês, disse a Ofcom [o regulador, ndt].

Numa declaração, a CGTN disse estar desapontada e expressou “forte oposição” às conclusões da Ofcom ao mesmo tempo que defendeu a sua como uma organização “profissional” dos media. A emissora disse que cumpre todas as leis locais, acrescentando que iria “continuar a promover a compreensão, comunicação, confiança e cooperação”.

Data do artigo: 4 de Fevereiro.

Resumindo: a Grã Bretanha obscura no Reino Unido o canal chinês CGTN, acusando-o de imparcialidade. Uma semana depois, a China obscura a BBC como retaliação. Não há nenhuma luta contra as fake news, ambas as emissoras estão profundamente envolvidas, de forma simétrica, na divulgação de respectiva propaganda.

Tenho a sorte (por assim dizer…) de ter à disposição ambos os canais e, quando sinto-me demasiado alegre, costumo vê-los para equilibrar-me (dica para o Leitor: o mesmo efeito pode ser conseguido com um dos canais das igrejas evangélicas, cujos efeitos são ainda mais rápido. Canais aparentemente longes nas formas mas não na substância). A BBC é um dos amplificadores mais ortodoxos das posições político-económicas tipicamente “progressistas” do Ocidente, aquela parte do planeta que nunca falha (e se falha é por culpa da crueldade do inimigo). Mesmo discurso no caso da CGTN, só do lado oposto. E, com o canal CGTN Documentary, ficamos com a impressão de que a China seja o novo Éden: a versão moderna do Paraíso Terrestre, até um pouco melhor.

Infelizmente, este discurso todo tem algumas implicações, nenhuma das quais representa uma novidade.

A primeira é que somos continuamente feitos alvos da propaganda mediática. Como afirmado, não é novidade nenhuma, pois já na altura da Guerra Fira a situação era a mesma. Só que agora o nível foi aumentado num grau exponencial e nenhuma das partes (categoricamente: nenhuma) está imune aos atractivos oferecidos pela propaganda através de internet, televisão, imprensa, etc.

A segunda implicação é que encontrar notícias que sejam mesmo isso, notícias e nada mais, é cada vez mais complicado. Como demonstram os exemplos acima, não é suficiente individuar a fonte mas é também preciso contextualiza-la. No caso específico, uma decisão que poderia parecer como uma luta da China contra a propaganda ocidental, na verdade revela-se como uma retaliação contra uma anterior decisão da parte adversa. E nem vamos aqui procurar quais as motivações da parte adversa, porque ao cavar provavelmente seria possível encontrar uma anterior manobra da China que “justificou” a medida do regulado britânico (assim por alto vi o nome Huawei num dos artigos, mas sinceramente já não tinha paciência para procurar mais).

É triste, mas cada vez mais encontro provas do que penso e sustento nestas páginas há anos: não há o Bem dum lado contra o Mal do outro. Simplesmente: não há o Bem e não há o Mal. O que há é uma simples luta de poder entre vária facções que utilizam as mesmas armas para idênticos fins. As ideologias políticas, cada vez mais enfraquecidas, já não permitem camuflar a realidade atrás duma cortina de pseudo-valores:

Em qualquer um destes casos, a grande ausente é a ideia de Democracia, sempre substituída pelos interesses oligárquicos (a elite, seja a ocidental, a chinesa, a russa ou aquela supranacional). Calhava bem um reset. Não o Great Reset da manada de Davos, ora essa, mas uma reposição autêntica. E depois da reposição? Eis o problema: não é que não haja alternativas, é que não somos capazes de apresenta-las, nem de imagina-las. E sem uma alternativa não pode haver uma (re)acção.

Podemos ficar descansados pois, em qualquer caso, nada acontecerá até as ovelhas encontrarem um pouco de comida e um smartphone na manjedoura. Mas é mesmo aqui que fica bem uma pergunta para o Leitor: qual deve ser, na óptica dele, o nosso papel, o papel de todos?

Por exemplo: assumir a nossa condição e esperar que um dia possa mudar? Organizar-se para que algo mude já? E como? Continuar a recolher informações para ter uma ideia (na medida do possível) de quanto está a passar-se? Ou ignorar tudo, abraçar a “ovelhitude” com a consciência de que a mudança não está ao nosso alcance? Ainda: acha que algo irá mudar? Uma guerra, The Great Reset, uma revolução?

Resumindo: o Leitor espera o quê?

Obrigado por responderem.

 

Ipse dixit.