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Transumanismo? Não, obrigado: out of the box!

“Pensa localmente, age globalmente”. O aforismo dum moderno filósofo globalista filho do pensamento único? Não: a frase foi pronunciada em 2000 pelo então CEO da Coca-Cola, Douglas Daft, e resumia a nova estratégia de marketing da empresa, que sempre foi um dos melhores símbolos duma sociedade completamente sujeita às leis do mercado. A nossa sociedade.

Desde então, outras marcas globais têm seguido o caminho da Coca-Cola, tornando a frase de Daft um autêntico dogma e declinando a sua própria língua de acordo com segmentos de mercado. Dizia o antigo Chanceler alemão Willy Brandt: “Quando se vende a alguém, é preciso fazê-lo na língua dele”. Pode parecer uma banalidade mas é verdade.

E assim, na aldeia global, tornou-se completamente normal para a maioria das pessoas acordar numa cama Ikea, fazer um café com cápsulas Nestlé (mas o nome é Nespresso ou Dolce Gusto), usar um par de jeans Levi’s, ligar o iPad da Apple enquanto tomam o pequeno-almoço alternando entre os cereais da Kelloggs e os cookies virtuais que os algoritmos da internet utilizam para apresentar apenas as notícias que devem chegar ao dispositivo do consumidor do Terceiro Milénio. O consumidor está incomodado com tudo isso? Nem pensar: aliás, cultiva a ilusão de escolher o melhor para si, com o seu próprio cerebrinho, mesmo que todos os dias esteja a perder um pedaço de liberdade, de vontade, de expressão e de identidade.

E dado que estas multinacionais parvas não são, até constroem uma precisa hierarquia dos produtos para que a ovelha-consumidora possa encontrar o orgasmo da exclusividade: quem bebe Dolce Gusto são os desgraçados que não podem permitir-se os exóticos sabores da Nespresso. Alguma vez viram George Clooney beber um Dolce Gusto? Nem pensar.

O mercado é o Mal Absoluto? Não. O mercado já existia antes, quando nem a ideia de dinheiro tinha tomado forma. Até um sistema “primitivo” baseado na simples troca é um mercado. O mercado é quanto de mais natural possa existir em qualquer comunidade: gosto daquilo, tu gostas disso? Logo trocamos e ficamos todos satisfeitos.

Mas então quando é que o mercado se torna “o Mal”? Opinião pessoal: quando o mercado sai da sociedade como instrumento e volta como objectivo final. Isso é: já não é o mercado que serve as pessoas, são as pessoas a serem escravas do mercado. Ok, ok, confesso: a ideia não é totalmente minha pois foi um tal William James Booth que escreveu do assunto em On the Idea of the Moral Economy em 1994, provavelmente copiando uma minha ideia que ainda eu não tinha pensado só por falta de tempo. Homem miserável.

Seja como for: como todos sabemos, hoje um dos maiores problemas do mercado é a sua versão globalizada, onde dominam as instituições multinacionais. Mas há algo mais que está a espreitar nestas últimas décadas, e cada vez mais: o Transumanismo que (cito a infalível Wikipedia) “é um movimento intelectual que visa transformar a condição humana através do desenvolvimento de tecnologias amplamente disponíveis para aumentar consideravelmente as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas humanas”.

A coisa interessante é que, pela sua natureza, o Transumanismo é estranho ao mercado e à dimensão da economia. Não vamos aqui enfrentar a questão do porquê o Transumanismo está a ser imposto, simplesmente porque o foco do artigo é outro. E o foco é o seguinte: o homem, escravo do mercado e agora das multinacionais também, dirige-se para uma sociedade como para um lugar que lhe é desconhecido, que faz pouco ou nenhum sentido. E nunca como na sociedade actual isto foi feito de forma tão rápida, tão imperceptível e ao mesmo tempo tão simples: consumindo (outro que copiou uma minha ideia: Karl Polanyi em The Great Transformation de 1944, gatuno…).

No tempo do meus avós, a sociedade tinha uns “carris”: sempre tinha funcionado duma forma, era normal pensar que o futuro fosse muito parecido com o passado. Depois isso nunca acontecia, porque a sociedade evolui e há sempre uma ou outra novidade que mudam o rumo dos acontecimentos. Todavia era lícito pensar que o quadro geral teria sido respeitado e que as novidades teriam sido visíveis e identificáveis. O meu avô era sapateiro, o pai dele tinha sido sapateiro, o avô dele… não sei, provavelmente sapateiro. Mas hoje já não é assim, já não há “carris” e imaginar o futuro é deveras complicado (e ao mesmo tempo assustadoramente simples: ver mais à frente).

O mercado, por seu lado, está a tornar-se o mecanismo dominante que integra toda a sociedade, mas ao mesmo tempo o tipo de integração que toma forma é superficial e mecânico, sujeito à mudança de interesses (não os nossos interesses!): já não compramos o que é necessário para nós, compramos o que é necessário aos que produzem. Mas o Leitor acha seriamente que um carro eléctrico polui menos dum motor de combustão? E onde encontrou esta ideia? Num ovinho da Kinder? Não, foi-lhe imposta através da publicidade baseada na campanha ambientalista conduzida pela virgem sueca (Greta para os amigos). E a campanha ambientalista responde a necessidades não nossas, das ovelhas-consumidoras, mas de quem produz os carros, das petrolíferas, etc. etc.. Pelo que, enquanto a ovelha-consumidora acha ter descoberto em si a “consciência ambientalista” (e polui mais do que antes, diga-se), na verdade está a viabilizar o interesse das multinacionais na mudança do paradigma energético.

Esta pseudo-integração torna-se uma regra que exclui valores (laicos e religiosos) e impõe outros (o “pensamento único”, o “politicamente correcto”) com o fim de monopolizar tudo e todos: a lógica do mercado global cria progressivamente distorções cada vez maiores que engolem todas as formas de cultura e ameaçam até os laços sociais. Esta integração é antidemocrática e totalitária, mesmo que tenha o vestido da festa (com bondade, paternalismo e consciência ambiental). É aterradora porque também corta o estímulo à descoberta e à inovação: estas dependem em boa medida da procura do consumidor, mas se a ovelha-consumidora já não pede ou pede “mecanicamente”, o mercado tem todo o interesse em reduzir os esforços. Há 20 anos um carro utilitário como o Fiat Punto tinha o interior das portas revestidos parcialmente em pano, nos carros de hoje é um pedaço único de plástico rijo, muito mais barato e esteticamente feioso: mas ninguém se queixa.

A actual procura da ovelha-consumidora, portanto, tende a repetir-se sempre nos mesmos moldes, orientando-se para as necessidades mais elementares e baseando-se nos instintos mais primitivos da espécie humana-ovina. O que determina ainda mais perda de valores e nivelamento da cultura para baixo (além duma queda do QI cientificamente demonstrada). Assim, sem a capacidade/vontade de escolher (adeus livre arbítrio), antropologicamente alterado (tome o RNA sintético que faz bem à saúde) e estupidificado (Nespresso, what else?), o homem perde a capacidade de escolher e dobra-se perante uma “imposição ao consumo” cada vez mais maliciosa. O homem do Terceiro Milénio, liderado por bandos de psicopatas (os donos das multinacionais. E atenção, “psicopatas” não é um ofensa gratuita: é desde os anos ’70 do século passado que o tema é discutido), é reduzido a uma ovelha-consumidora que só pode ser dependente duma evolução científica e tecnológica. Para tornar tudo ainda mais deprimente: uma evolução previsível.

“Ó Max, mas não tinhas dito que na sociedade dantes era quase possível antever o futuro e que hoje, pelo contrário, é difícil imagina-lo?”. Exacto, querido Leitor, exacto. O problema é “o quê” podemos prever. A tragédia é que hoje a sociedade-mercado depende quase exclusivamente da inovação científica e tecnológica e estas em boa parte são previsíveis, quase mecânicas: “Hoje temos processadores de 4.500 Mhz, em cinco anos teremos a CPU de 5.100 Mhz, em 10 anos teremos…. etc., etc.”. Tudo isso influencia grandemente o nosso futuro pessoal, acerca do qual todavia não é possível fazer previsões: o que significará ter processadores cada vez mais potentes? Os trabalhos manuais deixarão de existir? E como reagirá a classe política? Haverá ainda uma classe política ou apenas um concelho de administração global de multinacionais?

O que foi tomado como “certo” ao longo de milhares de anos, hoje certo já não é. O que eu sei é que o meu bisavó era sapateiro, que o meu avó era sapateiro, que eu não posso ser sapateiro (a não ser que o meu desejo seja morrer de fome) e que os meus descendentes provavelmente nem terão a noção de “sapateiro”.

Numa sociedade racionalista e anti-heróica como a nossa, em que predominam a inércia, a uniformidade e uma vaga ideia (vaga para nós) de Transumanismo, os indivíduos só podem sofrer os efeitos, não inovar, construir o futuro deles ou até prevê-lo. Como a “pandemia” Covid-19 ensina.

Acabo esta seca com um outro ladrão de pensamentos meus: François Perroux, que irrita-me já pelo facto de ser francês. No livro Pouvoir et économie de 1973, Perroux escreve que aquela dum homem tão antropologicamente mudado no sentido transumanístico “não é a escolha de um comportamento racional, é apenas a aceitação da conformidade com modelos dominantes que em troca da renúncia à criatividade oferecerá a segurança da satisfação a curto prazo dos instintos e das necessidades básicas”.

Pelo que, minhas senhoras e meus senhores, hoje mais do que nunca precisamos não dum “homem forte” mas dum “pensamento forte”. Qual é ele? Será o da Esquerda, da Direita? Talvez o pensamento socialdemocrata? Fascista? Comunista? Nada disso: é o nosso pensamento, o pensamento do Leitor, o meu. É o pensamento desligado dos dogmas, que sai do convencional, do “politicamente correcto”, out of the box como dizem os anglo-saxónicos, fora dos esquemas impostos. O nosso pensamento está cercado por um oceano de dúvidas (Em que acreditar e porquê? Numa visão alternativa. Porque sim.)? Óbvio, acham um acaso? Mas é uma das poucas coisas que temos.

“Ó Max, mas tudo isso é a descoberta da água quente: quem segue Informação Incorrecta pensa out of the box!”. Têm a certeza? Mas mesmo certezinha absoluta?

Permitam-me o exemplo de algo que aconteceu exactamente há duas horas. Loja, estantes, latas de tomates em pedaços, vários preços. Uma lata mais cara: é de tomate biológico. O meu cerebrinho está em modo automático e pensa:

tomate biológico = lata mais cara = normal

Depois o meu olhinho repara na marca (Valfrutta) e envia a informação ao cerebrinho. Milagrosamente, este acorda: conheço, é marca italiana. Sei donde vêm muitos dos tomates da Valfrutta: da Região italiana da Campania, terra de óptimos tomates, possivelmente os melhores. Mas terra também de Bagnoli, um das maiores fábricas siderúrgicas da Europa. E siderurgia significa benzopireno, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, pós finos, dioxinas que saltitam pelo ar até depositar-se no terreno onde um querido tomatinho acaba de nascer.

É um tomatinho bio, o terreno é certificado, não tem pesticidas: provavelmente é a única coisa que não tem, do resto não lhe falta nada. E custa mais.

O que tinha pensado o cerebrinho do gajo que escreve na net e que tenta fazer informação alternativa?

tomate biológico = lata mais cara = normal

Parabéns. Imaginem o que vai ser depois de termos entrado na gloriosa época do Transumanismo…

 

Ipse dixit.