Site icon

PPI: espelho, espelho meu…

As Nações Unidas estão a lançar uma ferramenta de simulação informática que, acredita-se, pode “ajudar os governos a resolver os principais problemas do mundo, desde a desigualdade entre homens e mulheres até às alterações climáticas”, escreve a página Technology Review do MIT (o Instituto de Tecnologia de Massachusetts). É evidente que, mesmo antes do algoritmo em questão, são as próprias Nações Unidas que tomam como certa a existência destes “problemas”, com boa paz de qualquer discussão.

Em 2015, os Estados Membros da ONU subscreveram um conjunto de 17 objectivos de desenvolvimento sustentável que deverão ser atingidos até 2030. Estes objectivos, resumidos:

Objectivo 1. Acabar com a pobreza.
Objectivo 2. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e uma melhor nutrição e promover uma agricultura sustentável.
Objectivo 3. Garantir vidas saudáveis e promover o bem-estar para todos em todas as idades.
Objectivo 4. Assegurar uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.
Objectivo 5. Atingir a igualdade entre homens e mulheres
Objectivo 6. Assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável da água e do saneamento para todos
Objectivo 7. Garantir o acesso de todos a uma energia acessível, fiável, sustentável e moderna.
Objectivo 8. Promover o crescimento económico sustentado, inclusivo, o emprego pleno e um trabalho digno para todos.
Objectivo 9. Construir infra-estruturas resistentes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação.
Objectivo 10. Reduzir as desigualdades dentro de cada país e entre países
Objectivo 11. Tornar as cidades e os aglomerados humanos inclusivos, seguros, resistentes e sustentáveis.
Objectivo 12. Assegurar padrões de consumo e de produção sustentáveis.
Objectivo 13. Tomar medidas urgentes para combater as alterações climáticas e os seus impactos.
Objectivo 14. Conservar e utilizar de forma sustentável os oceanos, os mares e os recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável.
Objectivo 15. Proteger, recuperar e promover a utilização sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, travar e inverter a degradação dos solos e travar a perda de biodiversidade.
Objectivo 16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas a todos os níveis.
Objectivo 17. Reforçar os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.

Tudo muito bonito, disso não há dúvida. Tivessem posto também o fim de todas as guerras, pelo menos como último objectivo, teria sido perfeito. Mas é verdade que a ONU não trata destas ninharias.

Problema: como alcançar estes 17 objectivos? Solução: eis o software Policy Priority Inference (PPI), concebido para prever o que acontece quando os decisores políticos gastam dinheiro num novo empreendimento em vez que noutro.

“A resposta da máquina facilita aos governos a escolha das políticas que devem ser priorizadas”, dizem às Nações Unidas. Uma espécie de versão moderna do espelho da bruxa, só que em de perguntar “Espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?” o político pode perguntar “PPI, PPI meu, o que acontece se vou avançar com o programa para reduzir o desemprego em vez de apostar num novo projecto cujos lucros vão enriquecer os financiadores do meu partido?”. A resposta não é simples, mas o PPI sabe e vaticina.

É por isso que alguns governos já se aderiram à prodigiosa ideia: o instrumento está a ser testado pelas autoridades do México e do Uruguai, com a Colômbia a seguir na mesma linha. E nem falta o Ministério do Desenvolvimento Internacional do Reino Unido, dizem na ONU.

O PPI recorre à economia, à ciência comportamental e à teoria da rede para simular um governo com o poder de atribuir dinheiro e depois simular burocratas que gastam o que lhes é dado em diferentes projectos. O modelo, que foi construído por economistas em Londres e no México, inclui uma série de dados, como os orçamentos governamentais, o impacto que as despesas tiveram em certas políticas no passado, a eficácia do sistema jurídico de um País, as perdas estimadas devido a ineficiências, etc. Sugere então quais são as políticas em que vale a pena investir mais: agora o decrescimento é aconselhado ao governo pelo algoritmo, com matemática e informática precisão científica. Indiscutível.

“A ideia é que o instrumento ajudará os políticos a antecipar os efeitos de arrastamento das suas decisões. Por exemplo, investir na educação pode atenuar a desigualdade entre homens e mulheres, mas investir no crescimento do PIB pode não ajudar a reduzir as emissões de gases com efeito de estufa” explica sempre o MIT. Portanto, um guia do bom político na óptica da ONU para alcançar os 17 prodigiosos objectivos.

Resumindo: trata-se de um sistema informático de persuasão governamental, ou seja, a mesma actividade de qualquer lobby. Mas custa muito menos duma lobby, é só entregar o programa para que o político se auto-lobbize na frente dum ecrã. Tal como já acontece ao comum cidadão, também a classe política tem que ser conduzida por mão, como uma criança perdida na escuridão: evidentemente incapazes de tomar boas decisões, os nossos governos terão agora uma luz no meio das trevas. Debates no Parlamento, Comissões que analisam, programas dos partidos, votos dos cidadãos? Tudo ultrapassado: o software tem a melhor das respostas.

Mas aqui surge espontânea uma pergunta: se o programa consegue ser tão bom, porque não substituir todas as decisões políticas com as escolhas dum software? Quem melhor do que ele sabe avaliar o que é bom e o que é mau?

Calma, pessoal, calma. Essa é a ideia, mas precisamos de tempo para acostumar as massas brutas. Comecemos com os 17 objectivos da ONU, que nunca serão alcançados (não porque impossíveis mas por falta de vontade) mas que servem também para facilitar a introdução do programito. Depois vamos em frente, um passo de cada vez. É só uma questão de tempo.

 

Ipse dixit.