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O Capitalismo depois do Coronavirus

Lei universal: nada é perene, excepto a mudança.

E o Capitalismo? Mesma coisa. No entanto, sabemos que o Capitalismo, comparado com as formações sociais que o precederam, se distingue pelo seu dinamismo, pela sua tendência intrínseca a adaptar-se perante diferentes circunstâncias, pela sua capacidade de ultrapassar as crises mais devastadoras. O Capitalismo não é nada simpático mas admitimos: é um inimigo e peras. É de facto um organismo mutante, pela sua própria natureza condenado a uma metamorfose incessante. As crises, em particular quando são profundas, marcam sempre a passagem de uma fase para outra: mas o Capitalismo sempre aqui está. Certo, mudou muito desde o seu aparecimento, até que por vezes parece errado chama-lo ainda de “Capitalismo”. Um Adam Smith ficaria pasmado ao ver a sua criatura tal como ela é hoje. Mas os princípios gerais continuam a ser os mesmos.

Portanto: o Capitalismo é perene também? Não. O Capitalismo é um sistema criado pelo Homem e todos os sistemas criados pelo Homem têm um começo e um fim, não há excepções. Também o Capitalismo desaparecerá. Aliás, provavelmente já alguém está a trabalhar para um definitivo abandono deste sistema, em prol de algo “novo” que mais não será se não a “natural” (e péssima) evolução do actual sistema. Mas este é o futuro: por enquanto temos que lidar ainda com o nosso querido inimigo, o Capitalismo.

Neste contexto, o ano 2020 será recordado como um ano-fronteira entre um período e outro, como uma data historicamente fundamental, como as linhas que separam o antigo do novo.

Colapso? Nem pensar.

Sabemos o que é antigo que deixamos para trás: o longo ciclo marcado pela combinação da extrema globalização, do Neoliberalismo e da hiper-finanização. O que vai ser o novo não é conhecido com certeza: é dito que a história é um campo de batalha onde forças diferentes e opostas por interesses e visões do mundo lutam pela vitória. Só que nesta batalha as forças em campo não são iguais, há uma clara vantagem duma facção. Então fica um pouco mais simples saber como será o amanhã.

Não é lícito esperar um colapso do Capitalismo nos próximos tempos. Aqueles que defendem a ideia do colapso do Capitalismo a deduzem dos estudos marxistas segundo os quais, dada a tendência do capital para aumentar a sua composição orgânica (o peso das máquinas em relação ao da mão-de-obra viva no processo de produção), e dado que só a mão-de-obra viva produz mais-valia, o Capital seria destinado ao auto-consumo. A lei geral é verdadeira, mas também o são as numerosas contra-medidas que o capital põe em prática: é por esta razão que o Capitalismo mergulhou quase totalmente na Finança nas últimas décadas.

Ao falhar esta lei, não sobram outras que possam razoavelmente prever a queda do actual sistema. Deve deduzir-se que o Capitalismo não está destinado ao colapso por si só, mas apenas pode ser derrubado por uma força social e política organizada para esse fim. Se essa força estiver ausente, ou se estiver presente mas não tiver o poder de vencer a batalha, o Capitalismo não só sobrevive como também muda de pele, pois todo o sistema se reconstitui para adaptar-se às novas condições.

Qual hoje a força social e política que possa organizar-se para derrotar o Capitalismo? Resposta deveras simples: não há. Ou melhor: há mas nem sabe de ser uma força. Pelo que é como se não existisse. O cadáver lá está mas falta o coveiro. Então teremos que continuar com o sistema malcheiroso em putrefacção, algo velho tal como as ideologias dominantes (de Esquerda e de Direita, tanto faz).

Globalização? Talvez.

É difícil ver como é que, a curto prazo, a actual crise possa conduzir à saída do Capitalismo. Pelo que, é fácil deduzir que a nova ordem que surgirá do actual marasmo será, antes de tudo, o resultado do conflito interno dentro do campo capitalista. Um choque multiforme cujo resultado dependerá, dada a complexidade das circunstâncias, da acção e da reacção dos vários actores envolvidos. Evitando desperdiçar o tempo em profecias distópicas (o caminho parece este, mas ainda é cedo para ver todos catapultados num 1984 de Gerge Orwell), é necessário, como primeiro passo, estabelecer se actual crise levará ou não a uma nova globalização. Não é mera curiosidade: o surgimento duma realidade hegemónica ou dum cenário multipolar depende disso.

A resposta? Não faço ideia. Sério: há em cima das mesa elementos que apontam tanto para o “sim” quanto para o “não”. Mas, em todo o caso, estamos a entrar num período histórico de instabilidade e profunda turbulência que se arrastará por muito tempo. Qualquer que seja o resultado final, é certo que não iremos passar do velho para o novo com mudanças graduais, mas devido a fortes quebras.

Neste contexto, tratar da agonia da União Europeia ou das escaramuças dum Bolsonaro vs. Lula é fútil. A sociedade (entendida como conjunto global) não é gerida por estas entidades ou indivíduos, não são eles que determinam o caminho a ser tomado. A pandemia não é um acontecimento local e nem é apenas um intervalo: deixará uma marca profunda.

Hegemonia

As respostas dadas pelos governos das mais diversas espécies convergem num ponto comum: na maior parte dos casos, o uso da emergência sanitária chegou ao estado de emergência. Os governos, desajeitadamente, alimentaram a sensação de medo e assumiram poderes extraordinários. Em muitos casos, quotas de liberdades sociais e civis foram sacrificadas no altar duma alegada segurança; o esforço de disciplina social e de domesticação tem sido bem sucedido.

As classes dominantes experimentaram uma nova maneira de explorar a hegemonia. E não irão desistir tão simplesmente disso no futuro. Pelo contrário, preparam-se para voltar a utilizá-la com a ajuda da tecnologia. O jogo vai funcionar no futuro? Impedi-lo deveria ser a tarefa de quem se considera, não digamos revolucionário, não digamos rebelde, mas aos menos um pouco reformista, uma vez aceite o facto de que continuar na emergência significa só ter espaço para esforços de “segurança” e reaccionários.

Os “perdedores da globalização”

Um jogo que, e esta é uma aposta pessoal, dificilmente irá funcionar. A sociedade hoje atingida por uma recessão, que pode ser mais grave daquela que foi desencadeada pela crise financeira de 1929, já estava marcada pelas profundas desigualdades produzidas pela globalização neoliberal. O velho e combativo proletariado foi substituído por um ectoplasma social precário, desprovido de forma, autoconsciência e coesão. O proletariado “força da renovação” espalmou-se como manteiga perante o Coronavirus, um inimigo que nem consegue ver. A verdade? Fomos re-proletarizados, só que este novo proletariado (imenso: biliões de pessoas no planeta) não sabe de ser proletariado, em alguns casos até acha-se “classe média”. Na verdade somos o que alguém definiu como “o poliverso dos perdedores da globalização”. Uma boa expressão esta: “perdedores da globalização” soa melhor do que o velho e demasiado marxista “proletariado”.

Não há consciência mas há desconforto. Daí os fenómenos chamados de “populistas” que deram voz aos que sentem que algo não está bem. Abandonados pela Esquerda (que encontrou novos ninhos na City de Londres e em Wall Street), quando não conduzidos por uma Esquerda fossilizada, o “povo contra a elite” encontrou uma temporária válvula de escape em pessoas como, em Portugal, André Ventura ou o partido Livre. Pior a emenda que o soneto (ou, como costumo dizer, “pior a ementa que o sorvete”). Trata-se de votos de protestos, uma forma primordial e inconsciente de luta que, obviamente, não tem futuro de longo prazo. Mas, por enquanto, esta dos partidos “populistas” é a máxima forma de expressão “revolucionária” aqui na Europa.

Submersos e salvos

A recessão, profunda e duradoura, não se destina apenas a produzir roturas. Vai acentuar as desigualdades sociais, vai produzir mais mutações dentro daquilo que é chamado de “povo trabalhador”. A crise provocará uma primeira mudança: a transição da re-proletarização para a miséria. E teremos novas linhas divisórias entre incluídos e excluídos, entre integrados e desintegrados. Teremos, como dizia Primo Levi, “os submersos e os salvos”.

Os “salvos” poderão ser reconhecidos não apenas pelo seu rendimento ou pela sua função social, mas pela forma como se recusam a acabar entre os “submersos”. São eles que poderão ficar satisfeitos com as migalhas que cairão da mesa do capital, actuando assim como o seu apoio social.

Por outro lado, haverá uma massa de lixo social que se recusará a ser sacrificada, que, para não acabar entre os “submersos”, tenderá a rebelar-se. Esta massa é por natureza bipolar: pode actuar como força motriz de um bloco social revolucionário anti-capitalista (como no caso da Revolução de Outubro, conseguindo assim sair do Império do Czar para entregar-se à ditadura de Stalin) ou como combustível para aventuras reaccionárias e obscurantistas (Hitler saiu da derrota da Grande Guerra e do fracasso da República de Weimar). Não pode actuar como uma força motriz espontânea, para o fazer precisa de uma cabeça, de uma direcção política para canalizar essa energia que, de outro modo, se dispersaria numa rebeldia destinada à derrota.

Este é, no meu entender, o maior desafio que a elite terá que enfrentar no futuro: como lidar com os desesperados, o que fazer com eles. Inúteis, porque não consumidores, não podem ser deixados livres porque constituem sempre uma ameaça, mesmo que potencial. Um ordenado mínimo garantido de inclusão social, uma subvenção que permita a sobrevivência? Não é suficiente. Todos sabemos (e a elite também sabe) que não se vive apenas de pão. Pagar enormes massas para nada fazer tem um grave efeito colateral: com muito tempo livre, alguém poderia começar a pôr em função um par de neurónios. Daí ao nascimento duma ideia o passo é curto. E as ideias são perigosas. Demasiado arriscado: a subvenção poderá ser um chamariz político mas nunca uma solução ao problema dos desesperados.

No partido? No revolução!

Os camaradas avisam agora que, como não há partido, seria aleatório falar de um bloco social. E é verdade que não há revolução sem bloco social, e que não há bloco social sem partido, porque partido significa “organização”. Mas isso não significa que a solução fique entre os partidos e as ideologias que já existem. Bem pelo contrário: a História, ainda mais em tempos de grandes fracturas, não pode dar-se ao luxo de seguir padrões pré-determinados. A História recusa ideologias já apodrecidas, quando não vendidas ao melhor oferente.

Já estamos num Maelstrom sem partido e sem bloco social. Ambos devem ainda nascer e serão forjados no fogo do conflito. Qual direcção irão tomar ninguém sabe. Mas a História é isso: mudança.

 

Ipse dixit.