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Bio-laboratórios: o caso da Ucrânia

Em 2017, o site russo Stopfake, especializado em desmentir as fake news, atacava um artigo do jornalista italiano Maurizio Blondet. Assunto: os laboratórios americanos na Ucrânia.

Numerosos meios de comunicação social russos e estrangeiros divulgaram informações sobre experiências biológicas secretas realizadas pelos Estados Unidos em território ucraniano e associaram-nas a surtos de várias doenças, que foram recentemente discutidas. Todas as publicações indicam o grupo hacker “Kiber Berkut” como a fonte de informação. […] Voltando à versão original da falsificação, este é um exemplo de utilização duma “teoria da conspiração” que, não pela primeira vez, é divulgado com a ajuda de vários meios de comunicação e websites. Como sempre, tais artigos nunca são acompanhados de provas reais e […] as informações sobre “armas biológicas” e “vírus secretos” que desenvolvidos na Ucrânia” têm sido repetidamente refutadas por Stopfake.

Portanto: uma fake news, na Ucrânia não há laboratórios americanos que tratam de agentes patogénicos virulentos. Portanto, não faz nenhum sentido o pedido apresentado no passado dia 14 de Abril (1, 2 e 3) pelos deputados da Plataforma da Oposição – Pela Vida ao Presidente Zelenskyj, ao Primeiro-Ministro Shmygal, ao Chefe da SBU, Bakanov, e ao Ministro da Saúde Stepanov.

Neste apelo, obviamente sem sentido, foi noticiado que os Estados Unidos têm mais de 400 laboratórios bacteriológicos em todo o mundo, dos quais pelo menos 15 se encontram na Ucrânia. Laboratórios americanos que seriam financiados pelo Departamento da Defesa dos EUA e localizados em Odessa, Vinnytsia, Uzhgorod, Lviv (três), Kiev (três), Kherson, Ternopol, e perto da Crimeia e Lugansk.

Os deputados do parlamento de Kiev argumentam que o funcionamento dos bio-laboratórios americanos na Ucrânia teria começado durante a presidência de Viktor Yushchenko e de Yulia Timoshenko, em 29 de Agosto de 2005. Naquela altura, sempre segundo a absurda reconstrução dos deputados, foram assinados acordos de cooperação entre o Departamento de Defesa dos EUA e o Ministério da Saúde da Ucrânia para estudo sobre o crescimento de tecidos corporais por divisão celular, agentes patogénicos e conhecimentos especializados que podem ser utilizados para o desenvolvimento de armas biológicas.

De facto, o trabalho nos laboratórios é realizado no âmbito do programa de experiências biológicas. O orçamento é de 2.1 biliões de Dólares e é financiado pela Agência de Redução de Ameaças da Defesa dos EUA. O Centro Científico e Técnico na Ucrânia, uma organização internacional financiada pelas autoridades americanas e cujo pessoal goza de imunidade diplomática, também tem estado envolvido nesta actividade. Esta organização está envolvida no financiamento de projectos para a criação de armas de destruição maciça.

Os deputados afirmam ainda que, desde o lançamento dos bio-laboratórios na Ucrânia, foram registados surtos de doenças infecciosas.

Depois, em Ternopil, em 2009, um vírus que provocou a propagação de uma pneumonia hemorrágica. As vítimas foram 450 ucranianos. Em 2011 registou-se um surto de cólera na Ucrânia, morreram 33 pessoas. Três anos mais tarde, 800 cidadãos foram diagnosticados com cólera e um ano depois foram registados mais de 100 casos de cólera em Nikolaev.

Os deputados também deram mais exemplos. Em Janeiro de 2016, 20 soldados morreram de um vírus da gripe em Kharkov, e mais de 200 foram hospitalizados. Dois meses mais tarde, foram registadas 364 mortes na Ucrânia: “A razão foi uma gripe suína da mesma estirpe que levou à pandemia global em 2009”. Salientam também que ocorreu um surto de hepatite A em Nikolaev, em 2017. No Verão do mesmo ano, registaram-se surtos de infecção semelhantes em Zaporozhye e Odessa, e no Outono – em Kharkov. Continua o documento:

Em 2010-2012 [ou seja, já sob a égide de Yanukovych – ed.], o Governo ucraniano iniciou controlos para verificar se os laboratórios cumpriam todas as medidas de segurança. Como resultado, foram identificadas numerosas deficiências graves que poderiam levar à libertação de estirpes de infecção perigosas. Ficou mesmo registado que a ventilação por extracção está em frente às instalações de um jardim de infância.

Assim, os deputados escrevem que, em 2013, o Presidente Viktor Yanukovych abandonou a cooperação com os Estados Unidos. Mas já em 2014, Petro Poroshenko a retomou: “É provável que Yanukovych tenha perdido o poder com a participação activa do Governo dos EUA precisamente devido à sua recusa em cooperar com o Pentágono”, sugerem os deputados da Plataforma de Oposição – Pela Vida, que assim concluem: “É possível que as actividades secretas e opacas de estrangeiros em território ucraniano tenham a tarefa de testar as acções de vírus e bactérias nos corpos dos ucranianos” e pedem aos dirigentes da Ucrânia que compreendam isto.

A questão dos laboratórios biológicos dos EUA na Ucrânia não é nova e um dos assinantes do documento, Renat Kuzmin, tem vindo a trata-la há vários anos:

É sabido que a Convenção de Genebra de 1972 proíbe a produção de armas bacteriológicas e, por esta razão, os militares americanos não as produzem nos Estados Unidos. Porquê fazer isto, tendo em conta que existem tantos locais de ensaio excelentes em todo o mundo, como na Ucrânia ou na Geórgia, onde é possível produzir e testar vírus mortais na população local? Basta criar um laboratório militar, dar-lhe um nome inofensivo, como “Estação Epidemiológica de Saúde” e atribuir-lhe um supervisor.

Kusmin mencionou este facto em relação às revelações do antigo Ministro da Segurança do Estado da Geórgia, Igor Giorgadze. Em 2018, Giorgadzedisse que o American Lugar Center, localizado em Tbilisi, testou uma versão do sofosbuvir (um fármaco utilizado nos casos de hepatite C), produzido pela empresa americana Gilead Sciences, em cidadãos georgianos. Como resultado, houve 73 voluntários mortos.

Agora, como afirma o russo Stopfake, tudo isso não passa de teorias da conspiração, sem nenhum base concreta, fantasias difundidas por mentes doentias que querem espalhar o pânico e a desconfiança.

A melhor maneira de prova-lo? Simples: ouvir o que diz a Embaixada americana em Kiev. No dia 22 de Abril, a Embaixada dos Estados Unidos na Ucrânia respondeu, confirmando que há laboratórios americanos no País e que os programas biológicos são supervisionados pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos.

Como assim? Mas não eram “teorias da conspiração”? Ao que parece não: há laboratórios militares com programas biológicos na Ucrânia. No entanto, segundo os diplomatas, não é o caso de ficar alarmados: o Pentágono está a trabalhar na Ucrânia em conjunto com o Governo de Kiev com o objectivo de “garantir o armazenamento seguro de agentes patogénicos e toxinas que constituem uma ameaça para as instituições públicas”, para que se possa realizar uma investigação pacífica e o desenvolvimento de vacinas.

Pelo que: o Pentágono simplesmente guarda com atenção os agentes patogénicos e trabalha para o nosso bem que, lembramos sempre foi o objectivo supremo das forças armadas americanas.

Estamos também a trabalhar com os nossos parceiros ucranianos para desenvolver a capacidade da Ucrânia para detectar surtos causados por agentes patogénicos perigosos antes que estes constituam uma ameaça à segurança ou à estabilidade.

Neste caso, o objectivo supremo é o bem estar dos cidadãos ucranianos. Como? Guardando agentes virais patogénicos na Ucrânia. O que pode parecer estúpido mas que, a bem ver, poderia ser encarado como uma medida homeopática. Claro, reconhece a Embaixada, há perigos: os diplomatas salientam que os seus esforços conjuntos ajudam a garantir que os agentes perigosos não caiam em mãos erradas. Uma boa maneira por exemplo, poderia ser aquela de não guardar os tais agentes perigosos em vários bio-laboratórios espalhados pelo mundo. Porque depois os bio-laboratórios colaboram com outras instituições. No caso da Ucrânia trabalham com:

Os americanos dizem que o programa de redução da ameaça biológica do Departamento de Defesa dos EUA está a trabalhar com os Países parceiros para combater a ameaça de epidemias (intencionais, acidentais ou naturais) das doenças infecciosas mais perigosas do mundo. Entre estes parceiros encontra-se a Ucrânia e quanto ao que é feito especificamente nos laboratórios, os diplomatas escrevem de forma muito evasiva: “parcerias de investigação” e “medidas de vigilância biológica”. Mas algumas descrições de projectos incluem:

Pelo que, sabemos agora que todos estes agentes patogénicos estão a ser guardado e estudados na Ucrânia. Mas há outros bio-laboratório: em 2016, sempre de acordo com a Embaixada dos EUA, a Ucrânia aderiu à “vigilância da doença no Leste” da qual fazem parte também o Azerbaijão, a Geórgia e o Cazaquistão.

Em conclusão, os diplomatas americanos escrevem que essa cooperação é necessária para “a paz e a prosperidade globais, reduzindo os riscos associados às armas químicas, biológicas, radiológicas e nucleares”.

Prevenir as doenças é justo; também reduzir o risco químicos, biológico, radiológico e nuclear é justo. Mas então porque manter tudo segredo?

Existe um acordo entre a Ucrânia e os Estados Unidos, datado de 29 de Agosto de 2005: trata da cooperação para impedir a disseminação de tecnologias, agentes patogénicos e experiências que possam ser utilizadas no fabrico de armas biológicas. O tratado foi assinado pelo Pentágono e pelo Ministério da Saúde da Ucrânia, que na altura era chefiado por Nikolay Polishchuk. Há muitas coisas interessantes no documento.

Afirma, por exemplo, que o Ministério da Saúde deve enviar ao Departamento de Defesa dos EUA cópias dos agentes patogénicos perigosos que surgiriam como resultado da investigação realizada nos laboratórios ucranianos. As partes acordaram igualmente em manter secretas as informações sobre os resultados das suas actividades. Mas se a Ucrânia tiver classificado alguma informação, esta deverá ainda estar disponível para os americanos. Um segredo “assimétrico”. E os dependentes americanos são cobertos por imunidade diplomática.

A Defesa de Washington tem investido muito na Ucrânia. O Pentágono financiou os laboratórios de Kharkov e de Dnepropetrovsk: o primeiro recebeu 1.5 milhões de Dólares e o outro 2 milhões de Dólares de 2010 a 2012. Por qual razão tanto dinheiro?

O jornalista Yury Tkachev dá a sua explicação:

Estes laboratórios estudam o comportamento de agentes patogénicos perigosos em determinadas condições regionais, tendo em conta factores climáticos, demográficos e outros.

Estes estudos podem ser designados por estudos de dupla utilização: por um lado, são realmente importantes para avaliar as ameaças de propagação de uma doença (a própria febre hemorrágica da Crimeia-Congo) e para desenvolver recomendações para a combater. Por outro lado, os resultados do estudo podem ser utilizados no desenvolvimento de armas bacteriológicas para utilização numa determinada região.

Agora, os bio-laboratórios americanos não são os únicos espalhados pelo mundo fora. De certeza há os russos também, há os chineses, há os israelitas, os franceses, os ingleses, os alemães, os indianos… Conhecemos as infra-estruturas com bio-segurança de nível 4, a mais elevada: são pouco menos que 60, a maior parte das quais civis. Mas estas são as infra-estruturas oficiais: não existe, como é óbvio, uma lista das infra-estuturas militares segredas.

O grupo de hacker Kiber Berkut fala de 400 laboratórios secretos no mundo. Laboratórios só dos EUA. É o mesmo Kiber Berkut que antecipou a existência dos laboratórios secretos na Ucrânia, notícia que os russos de Stopfake rotularam como uma “teoria da conspiração” e que depois foi regularmente confirmada pela Embaixada americana.

 

Ipse dixit.