Site icon

Coronavirus: o identikit

Vamos analisar mais de perto o Coronavirus causa da “pandemia” de Covid-19.

Em 1912, alguns veterinários alemães ficaram intrigados com o caso de um gato febril com a barriga muito inchada. Pensa-se hoje que este foi o primeiro exemplo na literatura científica da capacidade dos Coronavírus para debilitarem as suas vítimas. Naqueles dias os veterinários não o sabiam, mas também havia Coronavírus que causavam bronquite nos frangos e uma doença intestinal que matava quase todos os leitões com menos de duas semanas de idade.

A ligação entre estes agentes patogénicos só foi descoberta na década de 1960, quando investigadores na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos isolaram dois vírus que causam a comum constipação (resfriado no Brasil) nos seres humanos e têm estruturas tipo coroa. Os cientistas rapidamente notaram que os vírus identificados nos animais doentes tinham a mesma estrutura desgrenhada, cravejada de inchaços espinhosos de proteínas, ou espículas. Ao microscópio electrónico estes vírus parecem uma coroa solar, razão pela qual os investigadores cunharam o nome “Coronavírus” para todo o grupo de vírus em 1968.

Mas o que é um vírus afinal?

O que é um vírus

Os vírus são os mais pequenos entre os temas tratados pela Biologia. E já aqui temos um problema: é a Biologia que tem que tratar dos vírus? Porque a Biologia é o estudo das coisas vivas e não há certeza quanto à vida dum vírus.

Os biólogos concordam que a vida começa a partir do nível da célula, que é um pacotinho gelatinoso cheio de moléculas como proteínas, DNA ou RNA. Nenhuma dessas moléculas está viva mas, em conjunto e com as interacções químicas que se desenrolam, as células ganham vida.

E os vírus? Um vírus é um pedacinho de molécula de DNA ou de RNA dentro dum invólucro de proteína. São muito pequenos, muito mais pequenos do que uma célula qualquer ou duma bactéria. Medem algo entre 20 e 300 nanômetros (milionésimos de metro), por isso podem ser observados apenas com o microscópio electrónico.

São exactamente as dimensões reduzidas a tornar a maioria das máscaras de protecção inúteis: a carga viral consegue ultrapassar a barreira e espalhar-se.

Ao contrário dos seres vivos, os vírus não são compostos por células, não têm o citoplasma e os órgãos celulares típicos dos eucariotas (plantas, animais e fungos). Em particular, faltam-lhes ribossomas, os pequenos componentes celulares que produzem proteínas. Os vírus são inertes, não fazem nada do que caracteriza um ser vivo. Pelo que, de acordo com a esmagadora maioria das definições, os vírus não estão vivos.

Todavia, quando um vírus penetra numa célula, aproveita da máquina molecular disponível para criar cópias de si mesmo. Pode, porque transporta consigo o DNA ou o RNA. Num vírus não há um meio que possa proceder à reprodução, precisa dum hospedeiro para que o seu código DNA ou RNA possa actuar. Portanto, os vírus são parasitas: só desta forma conseguem multiplicar-se e “parecer” vivos.

O facto dos vírus serem ou não seres vivos não é apenas uma curiosidade: é por esta razão que os antibióticos são ineficazes na actual “pandemia” de Coronavirus como em qualquer outra epidemia de gripe. O antibiótico (do grego αντί – anti + βιοτικός – biotikos, “contra um ser vivo”) é eficaz contra agentes patogénicos “vivos”, enquanto os vírus não são propriamente “vivos”.

Dado que precisam dum hospedeiro, os vírus contêm proteínas ou outras substâncias no revestimento que os ajudam a agarrar-se às células que atacam. Outros vírus, chamados de bacteriófagos, têm uma estrutura muito mais complexa, com uma cabeça (que contém o material genético) e uma cauda, que se liga aos hospedeiros e injecta o material genético.

Uma vez conseguido infectar o hospedeiro, os pedaços de vírus recombinam-se e saem, acabando por matar a célula hospedeira e atacando outras. É desta forma que a infecção propaga-se até todo o corpo ficar doente.

A origem

As estimativas acerca do aparecimento do primeiro Coronavírus variam muito: entre 10.000 anos e 300 milhões de anos atrás. Os cientistas conhecem hoje dezenas de estirpes, sete das quais infectam os seres humanos. Dos quatro que causam a constipação, dois (OC43 e HKU1) provêm de roedores e os outros dois (229E e NL63) de morcegos. Os três que causam doenças graves (SRA-CoV-1, a síndrome respiratória do Médio Oriente MERS-CoV e a SRA-CoV-2, a actual) todas provêm de morcegos.

Mas os cientistas acreditam que geralmente existe um intermediário: um animal infectado por morcegos que depois transmite o vírus aos seres humanos. Para a SRA, considera-se que os intermediários são as civetas (ou “ginetas”), vendidas vivas em alguns mercados alimentares na China.

A origem da SRA-CoV-2 ainda é uma questão em aberto. O vírus tem 96 por cento do material genético em comum com um vírus encontrado num morcego numa caverna em Yunnan, na China: uma boa razão para pensar que veio de morcegos. Mas há uma diferença crucial. As proteínas das espículas do Coronavírus incluem um elemento chamado “domínio de ligação aos receptores”, que é essencial para que possam entrar nas células humanas. O domínio de ligação do SARS-CoV-2 é particularmente eficiente e tem diferenças importantes em relação ao vírus do morcego Yunnan, que parece não infectar os seres humanos.

Para complicar a situação, verificou-se que o pangolim pode hospedar um Coronavírus com um domínio de ligação aos receptores quase idêntico à versão humana. O resto do vírus, porém, tem uma semelhança genética de apenas 90% com ele, pelo que alguns investigadores suspeitam que o pangolim não fosse o intermediário. A presença simultânea de mutações e recombinações complica as tentativas de rastrear a árvore genealógica deste vírus.

Alguns estudos que têm sido publicados nos últimos meses, mas ainda não revistos pelos pares, sugerem que o SRA-CoV-2 ou um antepassado ligeiramente diferente tem ficado escondido em alguns animais há décadas.

De acordo com um artigo publicado online em Março, a linhagem do Coronavírus de onde provém o SARS-CoV-2 ter-se-ia separado há mais de 140 anos da linhagem estreitamente relacionada que hoje se encontra nos pangolins. Depois, em algum momento dos últimos 40-70 anos, os progenitores do SARS-CoV-2 separaram-se da versão dos morcegos, que mais tarde perderam o domínio de ligação aos receptores que estava presente nos seus antepassados (e ainda está presente no SARS-CoV-2). Um estudo publicado em 21 de Abril chegou a resultados muito semelhantes com um método de datação diferente.

Mutações

Entre os vírus que atacam os seres humanos, os Coronavírus podem ser definidos “grandes”. Mas a verdadeira peculiaridade desta família de vírus é o genoma, que com 30.000 bases é o maior de todos os vírus RNA: três vezes o do vírus HIV ou do vírus da hepatite C. E, como todos os vírus, muda embora de forma mais lenta: a gripe sofre mutações mais de três vezes mais frequentes do que os coronavírus, o que lhe permite evoluir rapidamente e escapar às vacinas.

Mas os Coronavírus têm um truque que lhes confere mais dinamismo: recombinam frequentemente, trocando “pedaços” do seu RNA com outros Coronavírus. Normalmente é apenas uma troca insignificante de partes entre vírus iguais. Mas quando dois Coronavírus parecidos acabam na mesma célula, a recombinação pode levar a novas versões capazes de infectar novos tipos de células.

Muitas vezes a recombinação ocorre em morcegos, que transportam 61 vírus conhecidos por infectarem os seres humanos; na maioria dos casos, os vírus não prejudicam os morcegos e existem várias teorias sobre a razão pela qual o sistema imunitário destes animais pode lidar com os invasores mas ainda. Um documento publicado em Fevereiro afirma que as células infectadas dos morcegos emitem rapidamente um sinal que as torna capazes de hospedar o vírus sem o matar. Mas é apenas uma teoria.

O futuro

Acerca do futuro os especialistas não concordam. Segundo alguns, o vírus irá enfraquecer com o tempo através de uma série de mutações, graças às quais se adaptará à persistência no ser humano. Outros negam esta possibilidade e pintam um cenário mais catastrófico onde o Coronavirus continuará a espalhar-se mantendo imutadas as suas características.

O cenário mais provável? É que o vírus continue a propagar-se e a infectar a maior parte da população mundial num período de tempo relativamente curto, no prazo de um par de anos. Então, o vírus continuará a espalhar-se na população humana, provavelmente para sempre. Parece uma visão aterradora mas, em boa verdade, é o que acontece com os vírus da gripe. Tal como os quatro Coronavirus geralmente inofensivos, o SRA-CoV-2 circularia constantemente, causando sobretudo infecções ligeiras das vias respiratórias superiores. Por este motivo não haverá necessidade de vacinas.

Alguns estudos apoiam esta ideia. Um deles mostrou que quando o Coronavírus 229E for inoculado em algumas pessoas, os níveis de anticorpos atingem o pico após duas semanas e após um ano continuam apenas ligeiramente elevados. Isto não impede a infecção no ano seguinte, mas nestas infecções subsequentes os sintomas são ligeiros ou ausentes.

O Coronavírus OC43 oferece um modelo interessante: este vírus também causa a constipação nos seres humanos, mas a investigação genética na Universidade de Lovaina, na Bélgica, sugere que a OC43 pode ter sido um verdadeiro assassino no seu tempo. O estudo indica que o vírus passou de vacas para humanos; e os cientistas sugerem que foi responsável por uma pandemia que causou mais de um milhão de mortes em todo o mundo em 1899-90, uma pandemia anteriormente atribuída ao vírus da gripe. Hoje em dia, a OC43 continua a circular amplamente e é provável que seja a exposição contínua ao vírus que mantém a grande maioria da população imune ao mesmo.

A chave está na imunidade: o nosso sistema imunitário é capaz de produzir anticorpos duradouros contra o SRA-CoV-2? Ainda não há respostas, mas não podemos esquecer que os vírus estão connosco desde sempre e nem a família dos Coronavirus é uma novidade. Até hoje, o nosso sistema imunitário sempre conseguiu construir as suas defesas contra os membros da família Coronavirus: não acaso, o SRA-CoV-2 consegue os seus piores efeitos apenas em pessoas com sistemas imunitários enfraquecidos, enquanto é até incapaz de atacar com sucesso as camadas mais jovens da população.

O destino do vírus SRA-CoV-2 parece já escrito.

Notas

Para os Leitores mais preguiçosos que não querem procurar, eis algumas definições da Sempre Sábia Wikipedia:

Coronavirus: Os coronavírus são um grupo de vírus de genoma de RNA simples de sentido positivo (serve diretamente para a síntese proteica), conhecidos desde meados dos anos 1960. Pertencem à subfamília taxonómica Orthocoronavirinae da família Coronaviridae, da ordem Nidovirales. A maioria das pessoas se infecta com os coronavírus comuns ao longo da vida. Eles são uma causa comum de infecções respiratórias brandas a moderadas de curta duração.

DNA: O ácido desoxirribonucleico é um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos e alguns vírus, e que transmitem as características hereditárias de cada ser vivo. A sua principal função é armazenar as informações necessárias para a construção das proteínas de ARNs. Os segmentos de ADN que contêm a informação genética são denominados genes. O restante da sequência de ADN tem importância estrutural ou está envolvido na regulação do uso da informação genética.

RNA: Ácido ribonucleico, um tipo de ácido nucleico, uma molécula polimérica linear formada por unidades menores chamadas nucleótidos. Intervém em várias funções biológicas importantes como a codificação genética e a descodificação durante a tradução de proteínas, regulação e expressão dos genes. É uma das macromoléculas essenciais para a vida, a par de DNA, proteínas, lípidos e carboidratos

SRA-CoV-2: O Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2 inicialmente denominado de “2019-nCoV”, por vezes denominado “coronavírus de Wuhan”, ou “vírus da COVID-19”, é um vírus RNA de cadeia simples positiva (genoma linear). É contagioso entre seres humanos e é a causa da doença COVID-19.

Pangolim: um bicho.

Civeta: um outro bicho.

Coronavírus  OC43: é um membro da espécie Betacoronavírus 1, que infecta humanos e bovinos. Juntamente com o coronavírus humano 229E, é um dos vírus responsáveis pelo resfriado comum.

Coronavírus 229E: é uma espécie de coronavírus que infecta humanos e morcegos. Juntamente com o coronavírus humano OC43, é um dos vírus responsáveis pelo resfriado comum.

Morcego: um bicho que voa, basicamente uma ratazana com asas.

 

Ipse dixit.