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A Sagrada Ciência

Vi há pouco uma reportagem no telejornal: uma igreja alemã onde a hóstia era entregue aos fieis pelo padre, escondido atrás duma ecrã de plexiglass, e nas mãos em vez que directamente nas bocas.

De facto, nas últimas semanas surgiu um elemento que, por si só, poderia parecer insignificante, ou mesmo folclórico, e passar quase despercebido no enorme caos em curso. Mas, em vez disso, tem uma importância longe de ser marginal, especialmente para compreender a natureza dos processos em curso.

Depois das indicação das habituais “mentes pensantes da ciência”, nesta grotesca fatia de loucura distópica que vivemos, surgiu a necessidade de modificar o rito da Eucaristia da Missa católica, de limitar o contágio da terrível COVID-19.

Agora, assumindo que sou ateu (ou melhor: que tenho a minha própria religião) e que não tenho qualquer simpatia pela Igreja Católica nem pelos seus ritos, quero apresentar algumas reflexões. Pelo que é uma espécie de grande promoção: lêem um artigo e levam algumas reflexões. Melhor aproveitar.

Era uma vez a ciência

A ciência está a transformar-se, em parte deliberadamente, num culto fanático, numa verdadeira religião. O que é exactamente o contrário de qualquer princípio científico: o fanatismo distorce todos os aspectos probatório e assume as características de uma fé com tanto de demónios como à caça à unção (uma criança saudável) e ao herege (o doutor contrário ás vacinas).

Do dogma inquestionável até a oração ritual, passando pelas poções mágicas (medicamentos e vacinas) e às fórmulas sobrenaturais, não falta nada. O Homem ficou órfão do pensamento mágico, encarnado nas religiões durante trezentos mil anos (pelo menos) e varrido em poucos séculos pelo advento do pensamento lógico-científico. O verdadeiro, entendo, não este híbrido formado por idiotas aterrorizados que temos hoje.

E o resultado final está diante dos olhos de todos: a ciência torna-se A Sagrada Ciência e, como qualquer outra religião, deve necessariamente destruir a concorrência. É a natureza das religiões: são explicações cosmológicas, explicam tudo, não apenas alguma coisa, e devem ocupar todos os cantos e expulsar toda e qualquer competição. Como a religião cristã, como qualquer outra religião no decorrer do tempo, varreu, absorveu e transformou todos os vestígios dos cultos anteriores, também A Sagrada Ciência comporta-se da mesma forma. É por isso que o pormenor da Eucaristia é significativo: A Sagrada Ciência tem de limpar a Eucaristia, transformá-la na mente dos seus fiéis num risco, num acto perigoso e perverso. É preciso destruir todos os rituais católicos, a começar pelos mais importantes, os mais significativos.

Tenho a minha própria religião, como já afirmado, mas isso não me torna cego e surdo às exigências espirituais. Pelo contrário: talvez precisamente porque não participo neles, reconheço o seu poder e a importância. E se no plano pragmático observo há vinte anos um processo muito preciso e claro de constante, progressiva e crescente ofensiva contra os direitos do indivíduo, da família, do Estado e de qualquer outra expressão de soberania, no plano espiritual tudo isto assume uma forma ainda mais assustadora se possível, porque não configura a afirmação de uma posição contra outra, mas um ataque directo e constante ao próprio espírito do ser humano.

E o Papa? Nada, silêncio: assiste sem falar, sem actuar, sem qualquer reacção. Estão e destruir-lhe um dos supremos actos do credo religioso e ele permanece imperturbável. O que não admira: o verdadeiro Papa é o outro, este não passa duma operação de marketing. Tenho a certeza de que um João Páulo I, por quanto obtuso, nunca teria aceite uma afronta como esta.

Neste ponto de vista, o ataque à Eucaristia não é apenas um sinal de luta entre cultos religiosos, o declínio da religião católica e o avanço do fanatismo científico, mas um sinal perturbador de quão impiedosamente anti-humana é a actual ofensiva. O que pode mudar ao passar a hóstia na boca ou na mão? Tudo muda, porque isso torna a hóstia apenas um pedaço de pão que transporta germes e vírus, a boca que o recebe apenas a parte inicial do órgão digestivo. O fiel já não se abandona para receber o Corpo de Cristo, para receber o espírito Dele, para reconciliar-se com Ele, mas recebe-o nas mãos e só depois o põe na boca. A hóstia como um comprimido. O corpo de Cristo? Aniquilado com um gesto de raiva: contos de fadas infantis. Os adultos devem ajoelhar-se apenas perante os tubos de ensaio do laboratório.

Estão a roubar os últimos e fracos vestígios do pensamento mágico, porque querem substituí-los pelo abraço gelado e mecânico de A Sagrada Ciência. Não lhes basta terem feito da religião pouco mais do que uma narrativa simbólica, uma espécie de compêndio de comportamento cívico virtuoso. Não lhe basta ter esvaziado os rituais e símbolos de toda a força profunda, tê-los privado de todo o poder literal. Agora querem mesmo destruí-los: desmontá-los e voltar a montá-los, transformá-los em gestos mecânicos e sem alma. Impor o domínio do pensamento racional sobre os últimos vestígios do pensamento mágico.

E o alvo, como sempre, somos nós. Querem indivíduos espiritualmente abandonados, desesperados, indefesos. Querem retirar todo o respeito pela Comunhão, o gesto simbólico que deveria libertar do Mal, forçar todos a adorar a seringa e procurar nela a salvação. Agora estão a dizer nas nossas caras, o mais claramente possível, que querem substituir o corpo e o sangue de Cristo por uma injecção obrigatória.

Repito, poderia estar a marimbar-me, nem é a minha religião: afinal se nem o Papa se preocupa, porque deveria fazê-lo eu? Porque o elemento mágico é parte de nós, desde sempre, e retira-lo significa apagar uma parte integrante do nosso ser: significa matar a espiritualidade e a fantasia que nela nasce. Significa cancelar a magia e dizer que não, nada existe além do que A Sagrada Ciência pode provar nos seus laboratórios.

É evidente que a seringa, se funcionar, salvará os nossos corpos. Mas o espírito precisa de mais do que uma estúpida A Sagrada Ciência.

 

Ipse dixit.