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O verdadeiro inimigo?

Surpreendentemente, a Alemanha cancelou a aquisição de [wiki title=”Lockheed Martin F-35 Lightning II”]F-35[/wiki], o caro e defeituoso avião da americana Lockheed que os Estados Unidos tentam impingir a todos os aliados. Tremendo de raiva, Zero Hedge (que será simpático mas sempre americano é) fala de “enormes consequências geopolíticas”, algo que irá agravar as relações já tensas entre Washington e Berlim:

Não sei se a Alemanha entende o que está a fazer, parece totalmente inconsciente de toda uma série de problemas que está a criar para todos, afinal de contas.

Epá, só pelo facto de não comprar um avião que nasceu mal e voa pior? Não, há algo mais. Na verdade explica Zero Hedge:

  1. com o apoio da União Europeia, a simpática Angela Merkel “está a tentar contornar as sanções dos EUA contra o Irão, que são tão importantes para Trump”, criando um sistema alternativo ao [wiki]SWIFT[/wiki].
  2. apesar das ameaças cada vez mais fortes dos EUA, o gasoduto [wiki]Nord Stream[/wiki] continua a desenvolver-se em cooperação com a [wiki]Gazprom[/wiki], que trará 70% das vendas de gás da Rússia para a Europa: deve ser concluído no decorrer do ano.

E depois, claro está, a questão dos aviões: porque “apenas o F-35 é compatível com a dissuasão nuclear táctica dos EUA” e a aeronave alemã “deve ser capaz de transportar e lançar armas nucleares dos EUA de acordo com as obrigações da Alemanha para com a Nato”:

Novas aeronaves como o Eurofighter devem ser certificados por Washington: por que razão, considerando que considera o Eurofighter obsoleto? Então a Alemanha não estará sob o escudo da Nato.

Provavelmente é mesmo isso que Berlim não quer: estar “sob o escudo nuclear” que os americanos estão a preparar no território alemão e europeu, agora que os EUA repudiaram os [wiki title=”Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário” base=”PT”]Tratados INF[/wiki] (o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, que previa a eliminação dos mísseis balísticos e de cruzeiro, nucleares ou convencionais, cujo alcance estivesse entre 500 e 5500 km e que permitia a qualquer das partes inspeccionar as instalações militares da outra) e, portanto, querem preencher o Velho Continente de mísseis atómicos. Mísseis de novo tipo, forçando os “aliados” da Nato a carregar as novas atómicas nos nossos bombardeiros.

Os EUA, de facto, começaram a produzir bombas atómicas de “baixo potencial”, uma modificação do [wiki title=”W76″]W76-2[/wiki] (a cabeça dos mísseis [wiki title=”Trident (míssil)”]Trident[/wiki]) reduzida em 95% da sua potência: de 100 kilotons para 5, isto é, um terço da bomba de Hiroshima. Uma maneira de “banalizar” a arma nuclear e criar uma área cinzenta na distinção entre arma “nuclear” e arma “convencional”. Segundo Washington, o W76-2 servirá para combater a ideia do inimigo (os russos) segundo a qual os Estados Unidos hesitariam em usar o seu arsenal nuclear pois as suas bombas nucleares são poderosas, com centenas de kilotons: grandes demais para ser usado sem provocar um grande número de vítimas civis.

Ao repudiar o Tratado INF, os EUA tencionam fazer regressar à Europa as ogivas nucleares de médio alcance (as tais de 500 a 5500 km) que anteriormente eram proibidas. É claro que o governo alemão tenta de todas as maneiras de evitar voltar a ser o grande palco da III Guerra Mundial, como nos dias da Guerra Fria. Abandonar os F-35 é uma decisão séria e pesada, certamente pensada: e se Trump, em retaliação, colocasse taxas aduaneiras sobre os produtos da Alemanha? BMW, Mercedes, por exemplo? O risco de um rearmamento deve ter sido considerado pior. E há uma frente em Berlim (e não só aí) que continua a ver a Rússia não como inimigo mas como o “sócio” natural da União Europeia.

Objectivo: Rússia ou China?

Ideia: e se o verdadeiro objectivo de Washington não fosse a Rússia mas a China?

Donald Trump considera [wiki]Xi Jinping[/wiki] muito mais perigoso (especialmente a longo prazo) de Vladimir Putin, do qual afinal é amigo. Forçado a levar em conta os permanentes instintos anti-russos do Pentágono e de grande parte do mundo político dos EUA, ao mesmo tempo não perde de vista o espectacular crescimento das capacidades militares da China.

E aqui reside o principal problema. Os americanos têm uma longa experiência no relacionamento com os russos: desde o tempo da extinta União Soviética, sempre conseguiram chegar a um acordo, porque a base é uma “mentalidade imperial” comum que permite que ambos, por assim dizer, consigam assumir o papel do adversário e entender os movimentos deles.

Com a República Popular a situação é diferente. Mesmo nos heróicos dias de Mao Zedong, a China era um grande mistério. E este mistério não desapareceu depois das aberturas de Deng Xiaoping e a transformação do imenso País numa espécie de híbrido social-capitalista na gestão política e económica. Ninguém alguma vez conseguiu explicar completamente o mistério que está enraizado na mentalidade particular dos chineses e na sua longa história. Vale a pena lembrar que a China é talvez o País mais impermeável nas operações de inteligência: eles conseguem espiar, muito e bem, mas concedem pouco aos sistemas de espionagem estrangeiros.

Entretanto, e em poucas décadas, a República Popular da China substituiu as antigas forças armadas super-ideologizadas por um aparato militar projectado especificamente para o futuro, com a intenção de amplificar a sua influência no exterior. Em vez do [wiki title=”O Livro Vermelho”]Livro Vermelho[/wiki] que os soldados levantavam aos tempos [wiki]Lin Biao[/wiki], são agora os mísseis de última geração a subir de importância, numa militarização do Mar da China Meridional que Pequim considera “a sua coisa”. E tudo isso sem deslocar um só soldado fora das fronteiras.

Os americanos entendem amplamente a estratégia de Putin, pois falam a mesma língua: mas o mesmo não pode ser dito no caso de Xi Jinping. Para dar apenas um exemplo, ainda não está claro qual é o verdadeiro papel da China na Coreia do Norte e quais são as reais margens de independência de [wiki title=”Kim Jong-un”]Kim Jong-Un[/wiki].

Em conclusão, falar sobre “nova Guerra Fria” pode ser enganador. Os chineses são muito diferentes tanto dos russos quanto dos antigos soviéticos e a actual Administração dos EUA (que já por si não é formada por raposas) está a tentar entender o que fazer, recorrendo entretanto a medidas pesadas como a roptura do Tratado INF. No fundo está a vontade de desacelerar e, talvez, bloquear o processo de crescimento económico e financeiro da China; o que, ao mesmo tempo, também permitiria interromper a expansão militar. A dúvida, no entanto, é que esta seja apenas uma ilusão piedosa: tarde demais.

 

Ipse dixit.

Fontes: Zero Hedge, Defense News, Bloomberg, RT News, Remocontro