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Os Estados Unidos abandonam os curdos

Cedo ou tarde os curdos vão aprender. Pelo visto demora, mas vão aprender. Pegamos no caso de Trump: quando o jogo fica rijo (isso é: politicamente sério), o Presidente americano vai-se embora. Já não é tempo de disparar mísseis, já não é altura de criar false flags: com a retirada da Síria começa uma fase menos espectacular mas muito mais importante. Trata-se dum trabalho fino, que tem como objectivo criar equilíbrios numa área do planeta geneticamente desequilibrada, um cruzamento de etnias, religiões e políticas entre os mais inflamáveis do planeta.

É neste palco que Trump tinha prometido à Turquia que as milícias curdas do [wiki title=”Unidades de Proteção Popular”]Ypg[/wiki] (o exército curdo na Síria), estacionadas na zona de [wiki title=”Curdistão sírio”]Rojava[/wiki] (na Síria, mesmo na fronteira com o território de Ankara), seriam transferidas para o leste do rio Eufrates. Pegamos num mapa: desde Rojava até a margem leste do [wiki title=”Rio Eufrates”]Eufrates[/wiki] são uns 50 quilómetros. É pouco, mas é uma distância significativa porque uma vez atravessado o rio entramos no território do [wiki title=”Curdistão”]Kurdistão[/wiki], a legítima reivindicação do povo curdo. Rojava, pelo contrário, não faz parte do Kurdistão: é território da Síria, mesmo ao lado da Turquia. Do ponto de vista de Ankara, esta pode ser a base para novos atentados independentistas, que podem ameaçar até o corredor turco na margem do Mediterrâneo. É neste cenário que Trump decide ir-se embora, deixando os curdos como fáceis alvos da anunciada ofensiva turca.

A partir de Ankara, o Presidente Erdogan reitera que está pronto “a qualquer momento” para uma operação militar ao longo da fronteira: se os curdos não saírem, serão as armas a fazer limpeza porque aquela posição nas mãos dos independentistas assusta. Americanos? Russos? Alguém que defenda estes desgraçados? Não há.

Não há nenhuma novidade nisso: os curdos foram outra vez traídos pelos seus aliados. E esta é uma constante. O primeiro, em tempos modernos, tinha sido o Secretário de Estado [wiki]Henry Kissinger[/wiki] que nos anos Setenta incentivou a rebelião dos curdos iraquianos contra [wiki]Saddam Hussein[/wiki] porque então Bagdade ameaçava o aliado de Washington, o Xá do Irão [wiki title=”Mohammad Reza Pahlavi”]Reza Palhevi[/wiki]. Quando o Iraque assinou o acordo sobre a fronteira de [wiki title=”Xatalárabe”]Shatt al Arab[/wiki], os americanos abandonaram os curdos: deixaram de ser úteis.

O mesmo aconteceu nos anos ’90. Depois da guerra do Golfo de 1991, George Bush pai lançou um apelo para que curdos e xiitas se levantassem contra o ditador iraquiano. Os curdos foram massacrados, uma replica de quanto já tinha acontecido em 1988, quando Saddam tinha lançado o gás contra aquele povos curdos, provocando pelo menos cinco mil mortos na zona de [wiki title=”Massacre de Halabja”]Halabja[/wiki]. Tudo na absoluta indiferença do resto do mundo: ninguém disse nada na altura porque o Iraque estava empenhado na guerra contra a república islâmica do [wiki title=”Ruhollah Khomeini”]Imam Khomeini[/wiki].

O destino dos curdos, vinte milhões de pessoas divididas entre Turquia, Iraque, Síria e Irão (uns 40 milhões em todo o mundo), sempre não passou duma promessa. Hoje os curdos da Síria estabeleceram como objectivo ter uma sua própria região autónoma em Rojava. Ganharam este direito no campo, ao lutar vigorosamente contra o Isis. No Ocidente têm sido aclamados como heróis, mas os curdos não vão ter nada. Primeiro, a Rússia deu a Erdogan luz verde para conquistar o cantão de Afrin, onde havia as tropas do [wiki title=”Partido dos Trabalhadores do Curdistão”]Pkk[/wiki]; agora Trump está disposto a abandoná-los.

A razão mais profunda? Simples: ninguém quer um Estado curdo. Este seria uma nova entidade autónoma numa região já por si altamente problemática. Tel Avive não quer um novo Estado naquela que considera a sua área de influência. Os americanos adequam-se. A Síria não quer abdicar de parte do seu território para a criação do Kurdistão. Os russos adequam-se. A Turquia teria que abandonar muitas das suas terras para que os curdos tivessem o País deles; russos e americanos utilizam os curdos como moeda de troca.

O Estado curdo seria algo novo e imprevisível. Quarenta milhões de habitantes no total, entre os quais há muçulmanos, cristãos, agnósticos, yazdânistas, zoroastristas, judaicos. De origem indo-europeia, têm algumas afinidades com os iranianos mas a cultura curda recebeu influências de todos os vizinhos da área. Com uma sólida história rica de tradições milenárias, o Estado curdo seria mais um importante jogador no xadrez do Médio Oriente. E não podemos esquecer outro “pormenor”: as pipelines que transportam petróleo e gás na rota Oriente – Ocidente atravessariam o Kurdistão.

Pelo que aqui não há ninguém que roga o regresso daquele povo à sua terra, não há as raízes milenárias que têm que ser respeitadas, não há direito reconhecido internacionalmente. Os curdos estão sozinhos e agora começa uma outra travessia do deserto.

 

Ipse dixit.

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Imagem de abertura: Kurdistan 24

Mapa: Veterans Today