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A assinatura molecular das guerras

Photo by Stijn Swinnen on Unsplash

Será que enquanto mastigava os biscoitos de manteiga durante “Boneca de Luxo” (Breakfast at Tiffany’s), Audrey Hepburn recordava a ocupação alemã da Holanda, quando tentava apaziguar as dores de fome com relva e bulbos de tulipas? As consequências daquele período, incluindo a sua saúde física precária, teriam acompanhado a actriz o longo de toda a sua vida. De acordo com a pesquisadora britânica Nessa Carey, no livro A revolução epigenética, teria sido a extrema privação de alimentos experimentada no final da guerra a determinar a estrutura esbelta que tornaria famosa a atriz; e a causar uma série de distúrbios que seriam seguidos pela morte prematura.

Afirma George Davey Smith, do Centro MRC para Análises Causais em Epidemiologia Translacional da Universidade de Bristol, Reino Unido:

Na verdade, é improvável que, neste caso específico, haja uma ligação directa entre a fome sofrida em juventude, a figura esbelta, as suas famosas dores de cabeça e o raro câncer do apêndice do qual morreu aos 63 anos.

Todavia o assunto é delicado: será que a guerra pode deixar a sua assinatura nas vítimas? Além dos reconhecidos stress traumáticos, poderá haver algo mais? Será que esta assinatura pode até ser transmitida de geração em geração?

Recolher dados acerca do assunto não é difícil porque o homem nunca faz faltar a matéria prima: há sempre guerras em curso, nem é preciso recria-las em laboratório. As situações extremas são uma constante ao longo dos tempos, o que permite destacar os importantes mecanismos moleculares para que seja possível entender melhor o impacto dos factores ambientais sobre a saúde física e mental. Diferente é a interpretação dos dados, coisa bem mais complicada.

Num desses “experimentos da história” a Hepburn entrou de verdade: a mãe da futura actriz, uma baronesa holandesa, para escapar ao risco de uma invasão alemã da Grã-Bretanha (onde tinha casado um banqueiro) teve a péssima ideia de voltar com a filha para a Holanda. Assim, a jovem Audrey encontrou-se a viver com 16 anos a “grande fome holandesa” causada pelo bloqueio de suprimentos imposto pelos ocupantes alemães. No chamado “inverno de fome”, entre o Outono de 1944 e Primavera de 1945, ao frio, dor e medo foi adicionada a fome. Estima-se que matou pelo menos 18.000 pessoas. Algo semelhante, ainda mais prolongado no tempo, ocorreu com o cerco de Leninegrado (hoje São Petersburgo), que, numa população de 2.7 milhões de pessoas, causou pelo menos 600.000 mortes por fome, concentradas na maior parte durante o Inverno entre 1941 e 1942.

Nesse último caso, o trabalho dos pesquisadores foi facilitado pelo facto da a guerra não ter destruído os cartórios e os arquivos dos hospitais. A partir da composição das rações disponíveis para cada adulto ou criança, escrupulosamente registrados pelo Nazi e pela burocracia soviética, é possível obter qual a contribuição calórica média disponível por cada uma dessas involuntárias cobaias humanas, mais o conteúdo de carboidratos, gorduras, proteínas animais e vegetais. A seguir, é possível também relacionar os resultados com a saúde de quem sobreviveu e daqueles que foram concebidos durante aquele período, na fase da vida intra-uterina, quando a mãe tinha sofrido a fome.

Vários grupos de pesquisa fizeram isso. Hunger Winter Families Study, por exemplo, tem seguido ao longo do tempo a saúde dos sobreviventes à grande fome holandesa, mostrando que estes tiveram, décadas após a guerra, uma taxa de demência e de doenças coronárias superior à da população geral. A isquemia cardíaca e os enfartes, juntamente com o aumento do risco de acidente vascular cerebral e hipertensão arterial, eram mais frequentes do que o normal.

O impacto também foi forte nas crianças concebidas na Holanda durante os meses da grande fome: foi encontrada uma superior taxa de esquizofrenia, de diabetes e de obesidade. É como se o organismo, em situações de grave crise, fosse programado para favorecer a acumulação de tecido adiposo (gordura) em detrimento de outros tecidos, como o nervoso. A magra Audrey Hepburn, portanto, não pode ser considerada um caso típico neste aspecto. Além de que estava já nascida.

Os efeitos da nutrição durante a gravidez são mesmo aqueles que os pesquisadores mais procuram, porque é nesse estágio que o meio ambiente, o estilo de vida, o que comemos, parece deixar a marca no organismo em formação. Diz o professor Lambert H. Lumey, epidemiologista de origem holandesa da Universidade de Columbia em New York:

Através do nosso trabalho demonstrámos pela primeira vez em humanos o impacto biológico deixado pela desnutrição nas primeiras semanas de gestação. As pessoas que foram concebidas durante o inverno da fome, de facto, com sessenta anos de idade ainda tinham uma espécie de “marca” molecular que faltava nos irmãos do mesmo sexo não expostos às condições extremas durante a gestação ou entre aqueles que nasceram nesse período mas tinham sido concebidos dois ou três meses antes, quando as racções ainda eram suficientes.

Pelo que, a violência da guerra vai muito além da assinatura do armistício: há algo que fica, algo que é gerado pelo nosso corpo de forma involuntária, como maneira de maximizar as escassas hipóteses de sobrevivência. E este “algo” é uma marca molecular.

De facto, esta marca diz respeito a um gene que produz uma proteína semelhante à insulina, o insulin-like growth factor 2 (IGF2), envolvido nos mecanismos de crescimento e de metabolismo. Afinal, esta assinatura molecular não é nada mais do que grupos químicos, os metilos, que se ligam ao DNA sem modificar a sequência deste. Anexados acima dos genes, tal como um post-it, sinalizam para as células quais proteínas produzirem mais e quais, ao contrário, limitar, como numa linha de montagem que se adapta às necessidades do mercado.

A partir do grau de “metilação” do DNA, que funciona como uma espécie de memória da célula, os cientistas medem a sua história em relação aos estímulos externos aos quais foi exposta. Por enquanto os pesquisadores ainda não conseguem ler esta memória de forma tão clara. A ciência que estuda estes fenómenos, conhecida como epigenética, embora não seja nova ainda se encontra na sua infância. Estudos como o que estamos a tratar servem para dar solidez à algumas teorias epigenéticas.

Por exemplo, um dos conceitos mais revolucionários propostos pela epigenética é que as alterações que regulam a actividade do DNA (sem alterar a sequência), induzidas pelo ambiente ou pelo estilo da vida, podem passar de geração em geração, como no caso da metilação de alguns genes. É um modelo de comportamento já encontrado nos animais, mas ainda não plenamente aceite para os seres humanos.

Paradigmático, a este respeito, tem sido um trabalho realizado em sobreviventes dos campos de concentração alemães. O trauma permaneceu impresso no DNA, mesmo naqueles que conseguiram esconder-se ou fugir para escapar à deportação. Explica Rachel Yehuda, da Mount Sinai School of Medicine de New York:

Estudamos o grau de metilação de um gene ligado ao aumento da taxa de cortisol, a hormona do stresse, em quarenta sobreviventes e nos filhos deles. Sessenta anos após o fim da guerra, encontramos nos sobreviventes uma metilação superior do gene em comparação com os que estavam fora da Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, em crianças, houve um fenómeno oposto: uma metilação menor.

Portanto, a informação indica a possibilidade de um efeito a longo prazo do stresse físico e psicológico, mas ainda é precisa cautela: as coisas são complicadas e não tão claras. Tomemos por exemplo o caso das 49 mil crianças abrigadas pelo governo finlandês, sempre durante a Segunda Guerra Mundial, na neutra Suécia, onde famílias de vários níveis socioeconómicos ofereceram apoio. Una vez regressadas em casa e depois de décadas, entre 1971 e 2011, o risco de internações psiquiátricas nessa população não era significativamente maior do que o dos irmãos que não tinham sido expostos ao mesmo afastamento da família. Até para os homens o risco era um pouco menor. Mas dividindo os dados em relação aos vários transtornos mentais e ao sexo, verificou-se que nas mulheres havia uma maior taxa de hospitalização psiquiátrica: as mulheres são mais vulneráveis ​​ao afastamento da família?

Um estudo posterior, publicado recentemente e realizado na mesma população, confirma que a diferença entre os sexos é mantida mesmo na geração seguinte: as filhas de mulheres que em crianças passaram pelo menos dois anos com as famílias suecas hoje apresentam um risco de internamento psiquiátrico duas vezes superior e, no caso da depressão, quase cinco vezes maior  em comparação com as filhas de não evacuados e independentemente do facto ter sofrido problemas mentais que causaram internamento.

Certo, estes estudos são limitados aos casos extremos: mas parecem demonstrar que a guerra tem consequências directas que perduram durante gerações. A diferença de género permanece sem explicação e poderia indicar outros fenómenos biológicos que ainda não foram descobertos. Mas se a alta taxa de transtornos pós-traumáticos naqueles que regressam da guerra ou cresceram lado ao lado coma violência não é surpreendente, diverso é o discurso acerca de outros tipos de sequelas douradoras nos indivíduos, nas gerações seguintes e, portanto, na sociedade.

Importante é, como é óbvio, a faixa etária. Se um adulto consegue fazer-se uma razão dos eventos e filtra-los com o raciocínio complexo, então pode conseguir ultrapassar situações críticas. Mas nos jovens pode ser diferente. Theresa Betancourt, da Harvard School of Public Health, uma das mais conceituadas peritas mundiais sobre estas questões:

Um estudo realizado com 529 jovens que regressaram do conflito em Serra Leoa mostrou que a maioria deles poderia melhorar ao longo do tempo, mesmo na ausência de apoio especializado.

O 11% deles, no entanto, não conseguiu recuperar e piorou com tempo. Houve dificuldades para aproveitar as oportunidades de recuperação e o re-emprego oferecidos: não é preguiça, é algo mais como acha a Betancourt, porque o trauma tem impacto no córtex pré-frontal do cérebro, que nos jovens ainda está em fase de desenvolvimento.

Una revisão de 17 estudos sobre quase 8.000 crianças crescidas durante a guerra em Bósnia, Camboja, América Central, Médio Oriente e Ruanda mostra que, em cenários muito diferentes, situações extremas de stresse, perigosas para a saúde mental de uma criança, são frequentes e estão associadas a altas taxas de transtorno de stresse pós-traumático, depressão e ansiedade.

Mesmo que um mecanismo biológico directo de transmissão, de geração em geração, dos efeitos de um trauma não fosse confirmado, sabe-se que os filhos de veteranos de guerra têm, em média, um risco de transtornos mentais acima da média e que, nas famílias em que um dos pais sofre de um transtorno de stresse pós-traumático, as crianças podem desenvolver sintomas semelhantes. Continua Betancourt:

As pessoas que sofreram violência muitas vezes têm um estilo de educação mais duro, mais punitivo, e no caso de mães que estavam deprimidas ou traumatizadas é difícil que consigam entrar em sintonia com o diálogo dos olhares, das vozes e dos gestos duma criança.

Há milhões de crianças e adolescentes que hoje vivem em zonas de guerra, cada vezes mais estão envolvidas em primeira pessoa nos combates ou são forçadas a fugir. Hoje existe a suspeita de que as situações de forte crise obriguem os nossos cérebros e corpos a tomar medidas extremas em prol da mera sobrevivência; o lado primitivo e animal dos combatentes despoleta a reacção animal e primitiva das vítimas. O problema é que tais medidas podem ter consequências nas gerações sucessivas, dumas forma que ainda não percebemos. A guerra pode ser até pior de quanto imaginado até hoje.

 

Ipse dixit.

Fontes: Natural History – Beyond DNA: Epigenetics; International Journal of Epidemiology – Epigenetics for the masses: more than Audrey Hepburn and yellow mice?;- Cohort Profile: The Dutch Hunger Winter Families Study; Research Gate: Long-Term Health Consequences Following the Siege of Leningrad; Jama Psychiatryc – Association of the World War II Finnish Evacuation of Children With Psychiatric Hospitalization in the Next Generation; PMC – Trajectories of internalizing problems in war-affected Sierra Leonean youth: Examining conflict and post-conflict factors