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Bíblia: quem são os hebreus?

Targum do séc. XI d.C.

Sem, como sabemos, é o filho de Noé do qual derivam todos os Semitas.

Continuando a analisar a descendência, encontramos Ever, importante porque é dele que derivam todos os hebraicos. A seguir temos Terach, que é o pai de Abraão, de Nacor e de Aram.

Antes de proceder, duas curtas parênteses.

    1.
    A maior parte dos biblistas acha que Abraão nunca existiu, sendo uma invenção dos autores bíblicos. Em caso de dúvidas podem contactar o Professor Robert Wexler, PhD. da American Jewish Univerity de Los Angeles, um dos 50 rabinos mais influentes do planeta. Seja como for, a Bíblia diz que existiu, pelo que fazemos de conta que assim foi.

    2.
    A genealogia acima reportada é posta em dúvida por parte da análise efectuada sobre a Bíblia aramaica (os dois Targumin: Targum de Onkelos e Targum Yonathan ben Uzziel, ambos do 60 a.C., portanto mais antigos do que a mais antiga versão da Bíblia hoje na nossa posse) pelos estudiosos hebraicos Messod Sabbath e Roger Sabbath: a teoria deles demonstra como a tribo de Levy (os Judeus) fosse na realidade composta pelos nobres sacerdotes de Aton que deixaram o Egipto após as invasões de Nabuccodonosor. De facto, a Bíblia fala da invasão de Jerusalém, acerca da qual falta qualquer tipo de prova histórica, enquanto é comprovada a luta no Egipto. Mas, dado que a Bíblia apresenta a genealogia acima reportada, vamos fazer de conta que esteja correcta.

    Tudo bem? Então vamos.

      A herança que coube a Deus

      Portanto, após Terach encontramos nomes conhecidos: Abraão tem um filho cujo nome é Isaque e um neto que já encontrámos também, Jacob.
      Em Deuteronômio 32:8 é explicado:

      8 Quando o Altíssimo deu às nações a sua herança,
      quando dividiu toda a humanidade, estabeleceu fronteiras para os povos
      de acordo com o número dos filhos de Israel.

      9 Pois o povo preferido do Senhor é este povo,
      Jacob é a herança que lhe coube.

      Trecho bem interessante: o Altíssimo dividiu toda a humanidade, estabeleceu fronteiras para os povos e Jacob é “a herança que lhe coube”. A Jahweh não foram entregues todos os hebraicos mas só Jacob (e, claro, a descendência deste): não todos os descendentes de Sem (os Semitas), não todos os descendentes de Ever (isso é, todos os hebraicos) e nem todos os três filhos de Terach mas apenas Jacob. E isso está escrito de forma explícita em qualquer Bíblia.

      De facto, na Bíblia podemos encontrar um dado interessante que confirma quanto escrito: o Elohim que falou com Abraão não era Jahweh mas El Shaddai (אל שדי‎). Isso cria evidentes problemas, pois em teoria o Deus que tinha falado com Abraão deveria ter sido o mesmo Deus de Jacob. Mas assim não era: Abraão falava com El Shaddai, Jacob com Jahweh. Enquanto a tradução de El com “Deus” é clara, Shaddai é um termo que deixa amplas dúvidas. Será El Shaddai simplesmente um outro nome com o qual era conhecido Jahweh?

      Não. Shaddai, na verdade, era um dos Deuses da antiga religião dos Cananeus (na altura da Idade do Cobre), em cuja capital Ugarit era reconhecido um panteão (um conjunto de Deuses) denominado ‘ilhm.

      O Deus El (Idade do Cobre)

      Notada alguma similitude entre ‘ilhm e Elohim? Não é um acaso: o panteão de Ugarit tinha como nome um termo cujo significado, neste caso, indicava “Filhos de El”, isso é, “Os Filhos de Deus”. Mas de qual Deus? Não de Jahweh, pela simples razão que este já fazia parte da longa lista de divindades dos Cananeus (era o Deus das tempestades e o líder dos exércitos de Baal no Céu), tal como El Shaddai. Este último e Jahweh eram dois Deuses diferentes.

      Mas voltemos aos trechos do Deuteronômio 32:8-9. No geral é entendido que Deus (Jahweh) escolhe um povo, o seu povo, que depois é o povo de Jacob. Mas as expressões utilizadas na Bíblia são “herança” e “lhe coube”: tais expressões são idênticas à versão do Código de Leninengrado e não indicam uma “escolha” mas uma assinação.

      Dito de forma mais simples: “alguém” conta os seus, divide as terras e os povos e assina a Jahweh não todos os hebreus mas Jacob e a descendência dele. Jacob é a herança de Jahweh, Jacob é a parte que “lhe coube”.

      Se aceitarmos a ideia de que Jahweh escolheu os hebreus (todos os hebreus), as consequências são dramáticas porque, mais tarde, Jahweh decide ampliar os territórios dos hebreus e manda exterminar os outros povos (e fala-se explicitamente de extermínio, incluindo mulheres, idosos e crianças. Hoje o termo seria “limpeza étnica”). Mas qual o sentido? Qual a culpa daqueles povos que, segundo a Bíblia estavam aí porque tinha sido o mesmo Jahweh a posiciona-los naqueles territórios?

      Se Jahweh é o único Deus, porque quando decide ampliar o território não se limita a apresentar-se aos outros povos (aqueles que Ele tinha posicionado, segundo a Bíblia) e dizer “Pessoal, muito prazer, eu sou o Verdadeiro Deus, a partir de agora vou tratar das vossas famílias, tá bom”? Ou, no mínimo, “Pessoal, sou o Verdadeiro Deus e decido o seguinte: é tempo de mudar, vocês têm que procurar uma outra casa”? Nada disso: Jahweh manda exterminar os povos próximos dos hebreus, povos cuja única culpa era aquela de ter sido aí postos por Jahweh.

      Faz sentido? Nem por isso. Jahweh esquece até o facto de ser Deus: em vez de assinar-se também aqueles povos, manda os hebreus (de Jacob) massacra-los.

      As guerras fratricidas 

      Mas há pior do que isso.
      Quem são os povos inimigos de Jacob, os que devem ser exterminados? São os Moabitas, os Amonitas, os Amalequitas, os Edomitas, os Midianitas.
      Problema: eram todos parentes.

      Os Moabitas são descendentes directos de Lot que é o sobrinho de Abraão.
      Os Amonitas são descendentes directos de Lot que é sobrinho de Abraão.
      Os Amalequitas são os descendentes directos de Esaú que é o irmão de Jacob.
      Os Edomitas são os descendentes directos de Esaú que é o irmão de Jacob.
      Os Midianitas são os descendentes directos de Abraão por parte de mãe.

      Resumindo: a “epopeia bíblica” é uma luta entre tios, netos, sobrinhos para conquistar pedaços de terra. Se já fazia pouco sentido antes, que dizer agora?

      A Palestina perto do 800 a.C.

      A não ser que seja aceite a teoria pela qual Jahweh era um dos vários Elohim. Aí as coisas ficam mais
      claras: cada Elohim tem o seu povo e, com o tempo, tenta ampliar o território de competência à custa dos outros Elohim (e dos respectivos povos assinados). Então é possível encontrar um sentido: Jahweh era apenas um entre os vários Elohim e nem o pior deles.

      Na Estela de Mesa (ou Pedra Moabita, 840 a.C.), Mesa (rei dos Moabitas, citado também na Bíblia) conta duma batalha contra os hebreus e afirma ter capturado “os de Jahweh” (tradução dos docentes pontifícios, portanto nada de dúvidas) e exterminado 7.000 deles (incluídos mulheres e criadas) como oferta ao Elohim dele, Quemós. Cada povo tinha o seu Elohim e nenhum era melhor do que os outros do ponto de vista moral (e parabéns à potência de Jahweh, derrotado por um “falso deus” qual deveria ser Quemós…).

      Em Juízes 11:24 (a propósito: o termo hebraico para o Livro dos Juízes é Shoftim, que significa isso mesmo, “Juízes”, no plural. Mas não era Elohim o plural de Juiz?), o comandante das forças hebraicas diz ao comandante dos Moabitas:

      24 Acaso não tomas posse daquilo que o teu deus
      Quemós te dá? Da mesma forma tomaremos posse do que o Senhor, o nosso
      Deus, nos deu.

      Portanto, é tranquilamente reconhecida a existência de outros “Deuses”: e estes outros “Deuses” têm as mesmas prerrogativas do Deus Jahweh. Mais uma vez, podemos pensar que os hebreus falem em nome do Verdadeiro Deus enquanto os outros acreditem apenas em ídolos, em falsos deuses.

      A este propósito é interessante observar a atitude de Salomão que, como sabemos, foi o homem mais sábio alguma vez existido. Salomão fez construir locais de culto dedicados aos vários Elohim, isso é, os Deuses dos povos vizinhos. Jahweh repara nisso, fica zangado e ameaça retirar-lhe o reinado.
      Aqui os casos são dois: ou Salomão não era sábio mas um perfeito idiota que não tinha noção de estar a falar com o Verdadeiro Deus enquanto fazia construir altares dedicados a ídolos inexistentes; ou Salomão era sim sábio, ao ponto de entender que a coisa melhor era manter calmos os vários Elohim da região, porque nunca se sabe.

      Quem tinha razão? Salomão. Porque a partir duma determinada altura de Jahweh perdem-se os rastos. Quando? Quando outros Elohim, bem mais importantes, aparecem e ocupam tudo. A Bíblia, como já afirmado, é um livro de guerra: mas é uma guerra (ou melhor: uma serie de guerras) local, combatida entre parentes; nada de Epopeia, nada de choques épicos como acontecia em outras regiões do planeta (como no Egipto, por exemplo).

      Jahweh era um Elohim totalmente secundário, que tinha recebido como herança uma tribo de analfabetas, rodeada por outras tribos de analfabetas com respectivos Elohim; Jahweh nem podia imaginar pôr-se ao mesmo nível dos Elohim mais poderosos. 

      Jahweh e o seu general

      As limitações de Jahweh estão presentes também em outras partes da Bíblia.

      Em Êxodo 32 fala-se do bezerro de ouro. Como sabemos, Moisés tinha subido o monte para receber os Mandamentos e, enquanto isso, os hebreus constroem um ídolo.

      1 O
      povo, ao ver que Moisés demora­va a descer do monte, juntou-se ao redor
      de Arão e lhe disse: “Venha, faça para nós deuses que nos conduzam,
      pois a esse Moi­sés, o homem que nos tirou do Egipto, não sabemos o que
      lhe aconteceu”.

      2 Respondeu-lhes Arão: “Tirem os brin­cos de ouro de suas mulheres, de seus filhos e de suas filhas e tragam-nos a mim”.

      Obviamente, na versão original da Bíblia a frase correcta é “faça para nós Elohim”. Mas o que interessa aqui é a atitude de Arão: mesmo sendo o sumo sacerdote e irmão de Moisés, nem tenta contrariar a ideia e dá logo disposições para que seja recolhido o ouro necessário. Por qual razão? Porque os Elohim do Egipto não tinham proibido criar representações deles (e de facto representações dos Deuses egípcio não faltam), enquanto Jahweh sim.

      Jahweh vê o bezerro e fica logo enervado.
      Êxodo, 32:7

      Então o Senhor disse a Moisés: “Des­ça, porque o teu povo, que você tirou do Egipto, corrompeu-se”.  

      Não o “meu” povo, não o “nosso” povo, mas o “teu “povo. Jahweh fala sempre dos hebreus como do “meu “povo; e agora o povo, aquele que Moisés tirou de Egipto, já não é Dele? Pormenor? Nem tanto.
      Êxodo, 32:8

      Muito depressa se desviaram daquilo que lhes ordenei e fizeram um ídolo
      em forma de bezerro, curvaram-se diante dele, ofereceram-lhe
      sacrifícios e disseram: “Eis aí, ó Israel, os seus deuses que tiraram
      vocês do Egipto”.

      Mais uma vez: qual o sentido? Os Hebreus, o povo de Jahweh, saíram do Egipto pela intervenção
      directa de Deus e agora, enquanto o chefe deles está a falar com o mesmo Deus, constroem um bezerro de ouro e apresentam-o como um Elohim? E que dizer daquele “teu povo”? De repente Jahweh desconhece os hebraicos?

      Tentamos perceber com uma interpretação literal. O “teu povo” de Moisés não eram os hebreus: eram os Egípcios. São estes que constroem um bezerro e Arão não vê nada de mal nisso pois a proibição de representar Deus valia só no caso de Jahweh. São os Egípcios que mostram ao povo de israel o bezerro, apresentado-o como o ídolo que fez sair todos do Egipto.

      Egípcios? Isso mesmo. Moisés tinha trazido do Egipto uma força armada egípcia, porque sabia muito bem que boa parte dos hebreus queria voltar atrás: não eram escravos no Egipto. Moisés temia rebeliões, ao ponto que qualquer pessoa que discordasse acabava logo muito mal (é só ler a Bíblia).
      Êxodo, 32:10

      Deixe-me agora, para que a minha ira se acenda contra eles, e eu os destrua. Depois farei de você uma grande nação.

      Yahweh passa-se e decide matar todos. Mas Moisés tem uma ideia contrária:
      Êxodo, 32:11-12

      11 Moisés,
      porém, suplicou ao Senhor, o seu Deus, clamando: “Ó Senhor, por que se
      acenderia a tua ira contra o teu povo, que tiraste do Egipto com grande
      poder e forte mão?

      12 Por que diriam os egípcios: ‘Foi com intenção ma­ligna que ele os
      libertou, para matá-los nos mon­tes e bani-los da face da terra’?

      Eh?!? Os Egípcios? Mas porque raio Moisés ou Jahweh deveriam preocupar-se do que pensam os Egípcios? Segundo a narração tradicional, os Egípcios tinham deixado que os hebreus continuassem o caminho deles depois do episódio do Mar Vermelho. Ponto, é água passada (literalmente).
      Deveriam ser os hebreus, eventualmente, a queixar-se de Jahweh: antes fez sair todos do Egipto, depois muda de ideia e mata todos no meios dos montes. Não é simpático.

      Agora donde saem estes “egípcios”? Saem das milícias de Moisés, das quais falámos antes. O diálogo entre este último e Jahweh é mais do tipo: “Olha só aqueles que trouxeste do Egipto (o “teu povo”) que caos que fazem até entre o meu povo, agora vou lá e mato-os todos”. E Moisés diz: “Não, tu não matas ninguém”.

      E de facto é assim: Jahweh não mata ninguém.
      Êxodo, 32:14

      Então o Senhor arrependeu-se do mal que dissera que havia de fazer ao seu povo.

      Espantosamente, Jahweh muda de ideia e segue a “sugestão” de Moisés. A razão? Jahweh precisa de Moisés. Sem um “general de campo” como Moisés, Jahweh não conseguiria levar o seu plano até o fim. E o plano é simples: formar um povo de guerreiros para conquistar terras. Isso explica as dezenas de anos no deserto: o tempo para que se formasse uma nova geração, treinada para combater. Tudo isso aconteceu com a mediação de Moisés entre Jahweh e o povo judeu. O qual, repetimos, no Egipto não estava nada mal.

      A origem dos hebreus

      Quando, após as pragas, Moisés vai a falar com o Faraó, Jahweh diz-lhe “diz para entregar-te todo o
      ouro que puderem”. Os escravos fogem e pedem também ouro? Não é demais?

      Na verdade, os hebreus tinham vendido os bens deles (pois escravos não eram) e, como explica a Bíblia, saíram do Egipto com 1.200 quilogramas de ouro, 7 toneladas de metais e bem equipados. Os hebreus não eram escravos fugidos.

      Se depois considerarmos a versão aramaica da Bíblia, os tais Targumin e a análise de Messod Sabbath e Roger Sabbath, tudo faz ainda mais sentido: os hebreus eram egípcios, Moisés era um sacerdote poderoso. Então não admira que o povo “hebreu” possuísse ouro e outros metais preciosos, não admira que Moisés trouxesse algumas tropas fieis consigo, não admira ter sido precisa uma geração para tornar um grupo de cidadãos (comerciantes, sacerdotes, etc.) num povo paramilitar à procura de novas terras.

      Mas será esta a verdade? A dúvida existe (contrariamente à Bíblia que dá tudo como certo), porque na realidade a mesma identidade dos hebreus é desconhecida. Se Moisés tivesse sido egípcio, o episódio do bezerro faria bem mais sentido quando lido de forma literal e não interpretado. Mas há outros sinais que põem em dúvida esta origem e o discurso é bastante complicado.

      Os rabinos afirmam que a identidade israelita é o fruto dum processo que durou séculos e no qual podem ser encontrados semitas, não semitas, nómadas, semi-nómadas, habitantes das cidades de Caanan e “outros” que chegaram do exterior. Portanto, a identidade semítica inicial não existe.

      Segundo as análises dos Sabbath, a sair do Egipto foram só Egípcios e foram estes que mais tarde implementaram o Estado hebraico na zona da Palestina.

      Mas há outra possibilidade: que o povo hebreu fosse de descendência directa sumera. Neste aspecto é interessante realçar como a Bíblia cite todos os povos do Oriente Médio mas nunca os Sumérios. Pode fazer sentido ao considerar a Bíblia como obra de origem sumera: os autores falam de todos os outros povos, não dos Sumeros simplesmente porque eles mesmos são Sumeros. Também esta é uma possível explicação.

      Neste último caso, todavia, o discurso é infinitamente mais complexo e traz-nos para águas desconhecidas que ficam muito, muito longe. Águas perigosas, que têm a ver com a origem dos Sumeros e da actual civilização. São as águas nas quais navegaremos nos próximos episódios.

      Ipse dixit.

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